Quando a Justiça parecia um caos

Ironita Policarpo Machado

  • Ler processos judiciais de época é maçante e confuso, mas paradoxalmente é também instigante, seja pela natureza da fonte, seja pela memória caótica, ou pela diversidade de possibilidades interpretativas. 
     
    Em 2004, deparei-me pela primeira vez com um acervo quantitativamente significativo do Judiciário: eram 6 mil peças de um período em que reinavam o poder do mando, a rede de compromissos coronelíticos, a conciliação de frações de classe, a troca de favores e os confrontos de forças partidárias. 
     
    Surgiu o primeiro obstáculo a ser vencido: identificar o conflito social que promoveu e levou aos tribunais tantos litígios e, consequentemente, refletir sobre o significado do Judiciário na Primeira República rio-grandense (1889-1930). O caos estava instalado. As fontes judiciais deveriam ser lidas, classificadas e compreendidas, e eu estava diante do desafio do desconhecido etimológico e epistêmico. Era preciso enfrentar o embate do diálogo entre história e direito, com minha a experiência de vida e indagações intelectuais relativas à vivência presente. 
     
    Uma luta de gigantes se travava. De um lado, minhas dúvidas e inexperiência no campo do direito, em face também da complexidade quantitativa. Do outro, as memórias materializadas nos processos judiciais. A exaustão dos primeiros contatos me fez abandonar o arquivo já nos primeiros dias de investigação. Mas, pouco a pouco, como batalhas de uma grande guerra, o trabalho de pesquisa avançou. Árdua tarefa, a de ler memórias que eram desconectadas e fragmentadas, mas ofereciam uma multiplicidade de imagens que me colocava no lugar e no tempo daqueles sujeitos. Eram diversos os caminhos possíveis para interpretação, mas a pesquisa exigia um recorte mais preciso, pois o questionamento permanecia. 
     
    De certa forma, eu esperava encontrar situações conflitantes em torno de questões políticas, eleitorais, da presença explícita do governo-autoritário ou das lideranças locais. A primeira surpresa foi identificar que a problemática predominante nas ações judiciais girava em torno da terra. Os sujeitos dos litígios eram ora indivíduos, ora grupos, ora homens de posse, ora pequenos agricultores.
     
    Percebi, com isso, que o caos tem uma dialética própria. As memórias judiciais materializavam uma experiência histórica singular e múltiplos sentidos. À medida que progredia na leitura dos processos, identificava situações específicas que aparentemente corroboravam as interpretações clássicas sobre o problema fundiário e agrário brasileiro. Isto causou um certo déjà vu. Mas o questionamento sobre o peso quantitativo da questão no Judiciário permanecia. Com o avanço do trabalho, desenhou-se uma teia de conflitos entre justiça e lucro na constituição do Estado, com resquícios existentes ainda hoje.
     
    A pesquisadora vencia mais uma batalha contra o caos. E imprimia-lhe inteligibilidade rumo a outros caos. É nessa trilha de desvendamentos que se lança luz no passado e nos constituímos enquanto pesquisadores que somos.
     
    Ironita Policarpo Machado é professora da Universidade de Passo Fundo e autora de Entre Justiça e Lucro: Rio Grande do Sul 1890 a 1930 (Ediupf, 2012).