Não se sabe ao certo como o reggae chegou ao Maranhão. É provável que os primeiros discos tenham sido trazidos na década de 1970 por marinheiros vindos da Guiana Francesa. Sem dinheiro, usavam os vinis como moeda de troca por comida e bebida ou com as prostitutas no Porto do Itaqui, em São Luís. É possível ainda que o DJ Riba Macedo tenha sido o primeiro a tocar o ritmo jamaicano nas festas da capital na mesma década. Ele procurava “música estrangeira lenta” para o público dançar junto em suas festas de lambada, merengue e salsa, quando comprou os primeiros vinis de reggae no Pará. Há ainda uma terceira hipótese: o ritmo teria chegado através das ondas curtas das rádios amadoras, que captavam sinais de diversas regiões das Américas, incluindo o Caribe. As opções não se excluem e, por isso, é plausível que os acontecimentos tenham sido concomitantes. Independentemente do caminho, o reggae fez uma pequena revolução no estado desde sua chegada: a transformação de Atenas em Jamaica.
Naquela época, a capital do Maranhão carregava o apelido de “Atenas brasileira”, pela evocação de um passado glorioso, de grandes nomes da literatura, artes e ciências, encarnado por jovens filhos de comerciantes e produtores agrícolas, que retornavam de seus estudos na Europa trazendo os costumes e a cultura letrada do velho continente. Assim, a alcunha foi sustentada com orgulho por gerações de intelectuais maranhenses.
Essa situação só foi possível graças à rápida ascensão econômica do Maranhão ligada à alta na produção do algodão e da cana-de-açúcar em meados do século XIX. A época em que o estado se tornou um dos maiores exportadores mundiais desses produtos coincidiu com um aumento notável no número de estudantes e com os períodos nos quais se formaram gerações de intelectuais de destaque no Brasil, como Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Odorico Mendes, Aluísio e Arthur Azevedo.
No entanto, um “incômodo” aparece quando a cidade passa a ganhar destaque na mídia local e nacional não mais associada às origens europeias, mas a uma Jamaica negra e pobre. E o responsável por essa mudança é o reggae.
O estilo surgiu na ilha caribenha após uma sequência histórica de mistura musical na década de 1960 – que vai do mentho, um tipo de música folclórica jamaicana, com influências do calipso e das antigas canções folk inglesas, passando por estilos como rhythm and blues, ska e rock steady. A partir dos anos 1970, quando o ritmo que ganhou o mundo na voz de seu maior ícone, Bob Marley, chegou ao Maranhão, sua popularidade disparou no local. Logo, São Luís ficaria conhecida como a “capital brasileira do reggae”. A cidade tem centenas de salões de festa espalhados, principalmente nas periferias, onde um público fiel dança “agarradinho”. Aliás, São Luís é o único lugar do mundo onde se dança reggae coladinho todos os fins da semana. É difícil estar na cidade e não ouvir o ritmo jamaicano.
As disputas pela “classificação cultural” de São Luís ganharam visibilidade nos jornais nos anos 1990. Artigos raivosos foram publicados execrando a alcunha ligada ao reggae, como “ritmo estrangeiro” e “cultura importada”. Não era possível admitir que, em lugar da Atenas brasileira, a cidade passasse a ser conhecida como Jamaica brasileira, como defendeu o professor de língua portuguesa Ubirajara Rayol em artigo no jornal O Estado do Maranhão, em 1991: “Não se conhece na história da Jamaica feitos nos campos das letras, artes e ciências (...). Por outro lado, a Grécia antiga continua sendo um ponto de referência para a cultura ocidental (...). Eis que a ignomínia parece contagiar a cidade, profanando a sua cultura, maculando um passado fastígio literário e artístico (...) Protesta-se contra o insulto à memória maranhense”.
Apesar dos protestos, a “Jamaica” foi ganhando força. Divulgada entre os fãs do ritmo, nas festas, nos salões e nos clubes de reggae, e massificada pelos programas de rádio e de TV especializados (arrendados por empresários do ramo), a expressão foi sendo incorporada à gramática do ludovicense (o nascido em São Luís), adotada pelos demais meios de comunicação de massa, pelo discurso turístico e pelos órgãos governamentais. De acordo com levantamento feito pela Secretaria Municipal de Turismo em 2008, existiam oito programas de rádio que somavam 52 horas de programação semanal, de domingo a domingo; dois programas de televisão, com duas horas por dia, de segunda a sexta-feira; e cerca de 60 radiolas de reggae em São Luís, além de bandas e cantores maranhenses que fazem reggae cantado em português, com influências locais.
Os argumentos contra uma suposta jamaicanização também foram enfraquecendo. Por meio de pesquisas acadêmicas, o reggae em São Luís deixaria de ser concebido como “cultura importada” e começaria a ser encarado como um elemento cultural adaptado pela população local, de início, principalmente pela juventude negra concentrada nos bairros pobres da capital. Anos depois, o ritmo foi conquistando diversas camadas sociais, possibilitando sua expansão para além das periferias.
O ritmo estrangeiro passou a ser em definitivo do maranhense e, nos anos 1980, foi incorporado ao leque de opções rítmicas dos compositores locais, que começaram a visitar salões de periferia em busca desta nova “informação musical”. Na mistura com os ritmos locais, como bumba meu boi e tambor de crioula, foi se concretizando, paralelamente aos reggaes jamaicanos tocados nas radiolas. A Tribo de Jah foi a primeira banda e é até hoje a mais famosa – com shows no Brasil e em vários outros países, com letras que tratam de problemas sociais, que falam de Jah e remetem ao rastafarianismo pregado na filosofia regueira jamaicana.
Desde então, muitos discotecários maranhenses têm viajado para a Jamaica a fim de arrematar vinis, que são trazidos para São Luís como uma exclusividade. A disputa entre as radiolas é tão grande que os donos dos acervos chegavam a riscar a capa das bolachinhas para que ninguém soubesse a autoria das músicas, que passaram a ser chamadas de “melôs”. Como a maioria dos fãs das radiolas não entendia as letras em inglês, foi preciso dar um novo sentido às “pedras”, como são chamados os reggaes que “batem”, que fazem estremecer, em referência aos graves da cozinha do reggae que fazem tremer tudo em volta das caixas de som (que, empilhadas em blocos de até seis metros, formam os famosos paredões).Assim, são os criadores dos melôs que constroem esse significado. Na maioria das vezes, eles utilizam um trecho da música que se pareça com alguma palavra em português para criar a identificação do som, através de uma adaptação fonética, como a música “White Witch”, da banda Andrea True Conection, conhecida em São Luís como “melô do caranguejo”. O refrão diz “White witch’s gonna get ya” (a bruxa branca vai te pegar). Ao escutar, o regueiro maranhense “entende” “olha o caranguejo”, o que deu origem ao nome do melô.
Na década seguinte, clubes como o Espaço Aberto abrem as portas para as classes médias, que passam timidamente a ocupar os espaços antes vistos sob o símbolo da negritude e da violência. Esta juventude que se formou ouvindo o reggae “por tabela” agora frequentava espaços de reggae e, num jogo de espelhos, novos espaços surgem para atendê-la, em locais “adequados” aos filhos da elite. Bares como Nelson e Chama Maré tocam o ritmo em locais de difícil acesso por transporte público, com preços mais elevados e público de maior poder aquisitivo. É também na década de 1990 que as políticas para transformar o Maranhão em destino turístico começam a incluir estes locais de elite como opção para seus clientes, e formatam uma nova imagem do reggae em São Luís, associada aos melôs, aos paredões de radiolas e à junção de “gente bonita” com os dreadlocks, tipo de tranças símbolo dos rastafáris jamaicanos.
Hoje, o reggae na capital é multifacetado. Os salões de periferia continuam lotados, radiolas novas nascem a cada temporada e as já tradicionais se renovam com sofisticados planos de marketing e contratação de cantores e DJs exclusivos. Os clubes para a elite também se multiplicam, vendendo a ideia de um reggae original, “de raiz”, em detrimento do que consideram uma degeneração do ritmo de Bob Marley, o chamado reggae robozinho – versão eletrônica, que dispensa muitas vezes a banda e os sons graves. Depois de 40 anos da chegada do reggae nas bandas de cá, São Luís se faz hoje Jamaica brasileira com uma cara cada vez mais maranhense, modificando-se, misturando-se, enriquecendo a diversidade da dinâmica sociocultural da ilha.
Karla Cristina Ferro Freireé jornalista e autora do livro Onde o reggaeé a lei (EDUFMA, 2012).
O rastafarianismo da filosofia regueiraO movimento, surgido na Jamaica nos anos 1920, foi iniciado por Marcus Garvey. Descendente dos maroons (escravos africanos que se refugiaram nas montanhas, formando grupos de resistência contra a dominação inglesa na Jamaica), buscou na Bíblia as ideias para a teologia rastafári: o Ocidente era a Babilônia, local de sofrimento, corrupção e decadência que deveria ser superado. Havia também o uso da maconha, com o propósito de ajudar a aguentar a realidade de opressão, além de servir para elevar as mentes e facilitar a compreensão das coisas.
Os dreadlocks nos cabelos (dread quer dizer “terrível” e expressava o medo que as pessoas brancas tinham dos negros com tranças) seriam como antenas por meio das quais os rastas receberiam a inspiração de Jah, abreviação de Jeová; e a Etiópia passou a ser o horizonte, o lugar para onde os negros rastas deveriam voltar. A opressão a que o povo era submetido fez com que as ideias se propagassem e influenciassem de forma fundamental o reggae, pois eles encontravam na teologia rastafári tanto a força para enfrentar os medos do cotidiano quanto a inspiração para a produção musical que deu origem ao reggae. Para o sociólogo jamaicano Stuart Hall (2003, p. 43), “o rastafarianismo se representou como um ‘retorno’. Mas aquilo a que ele nos retornou foi a nós mesmos”.
Saiba mais - Bibliografia
ALBUQUERQUE, Carlos. O eterno verão do reggae. São Paulo: Editora 34, 1997.
SILVA, Carlos Benedito Rodrigues da. Da terra das primaveras à ilha do amor: reggae, lazer e identidade cultural. São Luís: EDUFMA, 1995.
WHITE, Timothy. Queimando tudo: a biografia definitiva de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 1992.
Filmes
The Harder They Come, de Perry Henzell, 1972.
Marley, de Kevin Macdonald, 2012.
Para ouvir
“White witch” (Melô do Caranguejo), Andrea True Conection
“Regueiros guerreiros”, Tribo de Jah
“Are we a warrior” (Hino dos regueiros de São Luís), Ijahman Levi
“400 years”, Bob Marley
Quando Atenas vira Jamaica
Karla Cristina Ferro Freire