Durante anos a África do Sul foi sinônimo de discriminação racial. O apartheid, adotado legalmente em 1948, previa a segregação de negros e mestiços, além da concentração de poderes políticos nas mãos da minoria branca. A prisão violenta dos líderes de oposição, como Nelson Mandela, e o empobrecimento da maioria da população foram algumas das conseqüências dessa política opressora.
Um dos exemplos mais marcantes da desigualdade racial era a existência de locais exclusivos para brancos e negros. Cinemas, restaurantes, clubes e até banheiros públicos tinham o acesso diferenciado por questões de cor. Por lei, um negro teria que dar passagem a um branco de qualquer idade em uma calçada, não podendo sequer cruzar o seu caminho.
Na década de 1980, o mundo passou a discutir o uso de sanções econômicas contra a África do Sul, numa tentativa de forçar o governo a pôr fim à segregação racial. O último presidente da época do apartheid, Pieter Botha (1978–1989), teve que conviver com o crescente isolamento diplomático causado pela permanência do regime racista.
Em resposta às críticas internacionais, as embaixadas sul-africanas de todo o mundo passaram a publicar panfletos destinados a melhorar a imagem do país e evitar a imposição das sanções econômicas. Em sua Divisão de Obras Gerais, a Biblioteca Nacional guarda um panfleto em língua portuguesa intitulado Perfil da África do Sul. Publicado em 1987, o texto apresenta em suas 48 páginas diversos argumentos que supostamente salvariam o país da “perseguição” internacional. A estratégia do documento é apresentar ao leitor uma África do Sul tão injusta e dividida quanto a maioria dos países do mundo, mas que, ao contrário de muitos, caminha para uma lenta reforma política, social e econômica que abalaria as bases legais do racismo no país.
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Logo na introdução do panfleto, numa tentativa nítida de mascarar os abusos cometidos pelo apartheid, os defensores do regime afirmavam: “No Ocidente, a África do Sul é apresentada freqüentemente como sendo pior que a União Soviética, mas nesse mesmo Ocidente encontramos uma tolerância geral para com o muro de Berlim e para com a tirania comunista no Afeganistão, na Polônia e em outros países da Europa Oriental”. Para os criadores do documento, o regime sul-africano estava sendo injustiçado por outras nações opressoras. Ao contrário de grande parte dos países europeus, a África do Sul, com apenas cinqüenta anos de formação, não teria condições de fazer as reformas sociais que a Europa levou séculos para realizar. A História passa a servir como testemunha de defesa de um regime racista que estava sendo “injustiçado” pela opinião pública mundial.
Um dos argumentos mais impressionantes do panfleto é a manutenção de um “ódio histórico dos povos não-brancos do mundo contra os brancos...”. Essas palavras são atribuídas ao próprio presidente Pieter Botha em discurso ao Parlamento e estão logo na primeira página do Perfil da África do Sul.
Sobre a situação dos negros no país, as páginas seguintes do panfleto se mostram mais sutis do que a introdução. Os negros, de acordo com o regime de apartheid, tinham sua participação política restrita a instâncias menores, podendo exercer seus direitos políticos somente na esfera local. Isto implica dizer que jamais os negros (cerca de 70% da população) poderiam chegar à Presidência.
Se o objetivo do panfleto era suavizar a imagem segregacionista do país, em que momento os negros aparecem no documento? A resposta é simples. Em tom ameaçador, o texto destaca que, em caso de sanções econômicas à África do Sul, a principal vítima dessas medidas seria a própria população negra e não o governo dos brancos. Como a parcela mais pobre da sociedade, eles seriam diretamente afetados pela restrição econômica, argumento que tem como objetivo transferir a responsabilidade pela situação miserável e subalterna dos negros para a comunidade internacional.
Ao longo da década de 1990, o apartheid foi abolido. Mas o documento que está no arquivo de obras gerais da Biblioteca Nacional não deixará o mundo esquecer que poucas décadas atrás o racismo era lei.
(Por Murilo Sebe Bon Meihy)
Quando o racismo era lei
Murilo Sebe Bon Meihy