Quanto riso, quanta alegria

Andrea Carvalho Stark

  • Baile de máscaras no Teatro Lírico do Rio de janeiro, em desenho de Guerave (1883). A prática iniciada pela cantora italiana Delmastro se difundiu com sucesso.

    Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1846. Às oito e meia da noite, os primeiros mascarados chegavam ao Teatro de São Januário, nas bordas da Praia de D. Manuel (atual Praça XV). Quem não vinha de casa fantasiado poderia se aprontar no próprio teatro. Para entrar no salão, pagava-se uns dois mil-réis, fora o camarote. Animados por quadrilhas, valsas e polcas, os máscaras vararam a madrugada dançando, bebendo cerveja e refrescos e comendo frango, tortas e doces.  

    Os foliões da capital carioca até já haviam participado de bailes de máscaras em hotéis e sociedades, mas era a primeira vez que esses festejos de carnaval aconteciam num teatro. E ainda por cima, organizados por uma cantora lírica da Itália. Antes de desembarcar no Rio, em fevereiro de 1844, Clara Delmastro Eckerlyn pertencera ao elenco da ópera do Teatro São Carlos, em Lisboa. Contratada pela companhia lírica italiana do Teatro São Pedro de Alcântara, o mais importante da corte de D. Pedro II, a mezzosoprano cantou obras de Bellini, Donizetti e Rossini, e dividiu com a soprano Augusta Candiani (1820-1890) a preferência do público. Dois anos depois, caiu no carnaval da cidade, produzindo – com muito sucesso e lucro – os concorridos bailes.

    Como os espetáculos de ópera, esses bailes também viraram um divertimento para um novo público – comerciantes, fazendeiros, capitalistas, ministros, deputados do Império e suas respectivas famílias. A folia elegante, nos moldes das que ocorriam na França e na Itália, era uma espécie de “evolução” no gosto da nossa sociedade, que até então só conhecia o jogo do entrudo. Desde os tempos coloniais, essa brincadeira de carnaval – em que se jogava e molhava as pessoas com uma mistura de água, urina, trigo ou polvilho – era praticada tanto pelos escravos nas ruas como pelas famílias no ambiente doméstico.

    Mesmo com as proibições e a vigilância policial, o entrudo tornava-se cada vez mais incontrolável, “bárbaro” e violento. Por isso, para a imprensa da época, as festas de máscaras podiam representar uma alternativa saudável de diversão carnavalesca. Tanto que o dramaturgo Martins Pena questionava em 16 de fevereiro de 1847, na sua coluna “A semana lírica”, no Jornal do Commercio, se as mascaradas seriam capazes de “substituir o entrudo e fazê-lo desaparecer dos nossos costumes”. Mas logo concluía que essa era “uma questão difícil de responder-se”.

    Depois dos bailes produzidos por Clara Delmastro no carnaval de 1846, esses festejos viraram mania na cidade, e em qualquer época. Naquele mesmo ano, mascaradas animaram a Quaresma no Teatro São Pedro de Alcântara, entre os dias 11 e 14 de abril. Em 1847, todos os teatros cariocas em funcionamento, como o Tívoli, o São Pedro, o São Januário e o São Francisco, armaram seus bailes. O pré-carnavalesco da Sociedade Constante Polca, realizado em 23 de janeiro de 1847, também contou com foliões mascarados. E até mesmo o ator e empresário teatral João Caetano (1808-1863) organizou uma dessas reuniões mascaradas em 1851, quando dirigia o Teatro São Pedro de Alcântara. Da capital do Império, elas se espalharam para outras províncias. Há notícias de bailes em São Paulo, Recife e Porto Alegre. Na década de 1850, por exemplo, os paulistas se divertiam mascarados no Hotel das Quatro Nações, no Tívoli Paulistano e no Teatro São José.  

    Quase sempre os ingressos para essas folias custavam o mesmo preço dos espetáculos de ópera. No Rio, uma pessoa pagava dois mil-réis por uma entrada geral, com exceção dos escravos que estivessem a serviço de seus senhores. As mulheres, de início, também tinham que comprar seus bilhetes, mas logo sua entrada tornou-se gratuita. E quem provocasse as esposas e filhas das “famílias distintas” tornava-se um alvo certo da intervenção policial. Para maior comodidade e proteção das famílias, eram oferecidos camarotes. Aqueles que quisessem ocupá-los desembolsavam mais cinco mil-réis por um de primeira ou segunda ordem e três mil para os de terceira.

    A charge de Ângelo Agostini, na Revista Illustrada (1881), mostra como as bisnagas d'água ainda promoviam a molhadela nas ruas nas últimas décadas do século XIX.Enquanto os “máscaras” do salão usavam fantasias mais jocosas, os “sem máscara” das áreas reservadas preferiam ficar à distância, assistindo aos dançarinos embalados por duas orquestras. Em seu folhetim sobre o carnaval de 1847, Martins Pena descreveu o espetáculo “brilhante e extraordinário” que se avistava do alto dessas cabines do Teatro de São Pedro. Girando pelo local, admirava “todas as idades e povos”, com “os mais extravagantes e fantasiados trajes, as mais disparatadas anomalias”. E “toda essa aglomeração informe agita-se, corre, salta, brada, forma grupos que representam séculos, e o mesmo espírito a anima e a lança no turbilhão da dança”.

    O repertório era a típica música de salão: quadrilhas, valsas e polcas. A partir da década de 1860, também foram incorporadas as canções que se tornavam populares com o teatro musical.  As operetas do compositor alemão Jacques Offenbach (1819-1880), “Orphée aux enfers”, “Barbe Bleu” e “Les Bavardes”, por exemplo, movimentaram o baile do sábado de Páscoa que aconteceu no teatro do Pavilhão Fluminense em 27 de abril de 1867. Um ano antes, durante os intervalos de uma “mascarada” no Teatro São Pedro de Alcântara, sinfonias clássicas eram ouvidas no meio do salão. Mas o comum mesmo era que os foliões aproveitassem essas horas de descanso para beber refrescos e cervejas, comer doces e salgados.

    Em torno desses locais festivos, havia uma diversificada rede de atendimento. Cafés e hotéis ficavam abertos até a madrugada, oferecendo ceias quentes e frias. Nos arredores da Praça da Constituição (atual Praça Tiradentes), os “máscaras” podiam alugar quartos para trocar de roupa e guardar suas coisas. Cabeleireiros apresentavam-se para pentear senhoras. E toda sorte de máscaras, perucas, barbas e flores era vendida nas lojas da região. Na Rua do Ouvidor, por exemplo, a loja “As 10.000 máscaras” oferecia máscaras de arame, veludo e cera e outras confeccionadas com cetim, arame e cartão para o carnaval de 1854.  

    Também na década de 1850, os “máscaras” dos bailes foram deixando os teatros e ocupando as ruas da capital carioca, no compasso de duas organizações carnavalescas. O Zé Pereira, iniciativa de um sapateiro português da Rua São José, desfilou pela cidade em 1852 com tambores, máscaras e personagens dos salões, que seguiam modelos europeus e eram herdeiros do teatro da commedia dell’arte italiana do século XVIII. Arlequim, Colombina, Pierrô e Dominó apareciam pela primeira vez no carnaval, ao lado de foliões vestidos de Diabo ou de Velho. Pouco tempo depois, nasciam as sociedades carnavalescas, que também lançaram seus modelos de desfile. No domingo de carnaval de 1855, o Congresso das Sumidades Carnavalescas saiu do Largo de D. Manoel até o Teatro São Pedro de Alcântara (ou seja, da Praça XV à Praça Tiradentes), com banda de música e foliões vestindo fantasias luxuosas.

    Como previam muitos cariocas, o entrudo acabou desaparecendo ainda no século XIX. Mas em meio aos “passeios” das sociedades e do Zé Pereira, as bisnagas d’água continuaram promovendo a molhadela nas ruas. Só não se sabe como Clara Delmastro terminou seus dias. Se voltou para Portugal ou para a Itália. Ou se morreu anonimamente no Brasil. Desde que se tornou produtora das primeiras “mascaradas”, seu nome sumiu dos elencos das óperas e passou a figurar apenas como empresária nos anúncios das reuniões dançantes.

    Ainda assim, os festejos inaugurados por Delmastro resistiram por um bom tempo. De 1932 a 1975, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi o último espaço importante a promover bailes com mascarados. Compositores populares do século XX, inspirados pelos personagens dos bailes, criaram clássicos do carnaval carioca, como “Mascarada” (Elton Medeiros e Zé Kéti), “Noite dos Mascarados” (Chico Buarque), “Pierrô Apaixonado” (Noel Rosa e Heitor dos Prazeres) e “Máscara Negra” (Zé Kéti e Pereira Passos). E hoje, liberados de palcos e salões, pierrôs, colombinas e outros personagens ainda colorem ruas e praças do Brasil durante o reinado de Momo.

    Andrea Carvalho Stark é professora de Língua e Literatura e autora da dissertação “Augusta Candiani (1820-1890) – História de uma cantora lírica e atriz no Brasil” (Escola de Teatro, UNI-RIO, 2004).


    Saiba Mais - Bibliografia

    CUNHA, Maria Clementina (org.). Carnaval e outras frestas – ensaio de história social da cultura. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2002.
    FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
    GÓES, Fred (org.). Brasil, mostra a sua máscara. Rio de Janeiro: Editora Língua Geral, 2007.

    Saiba Mais - Internet

    ASSIS, Machado de. “Um dia de entrudo”. Jornal das Famílias. Rio de Janeiro, 1874.  In: ASSIS, Machado de. Contos Avulsos. Editora Civilização Brasileira/Companhia Brasileira de Livros, 1956. www.migre.me/f99Q

    PENA, Martins. “Os bailes mascarados”. Jornal do Commercio, “A Semana Lírica”, 16 de fevereiro de 1847. In: PENA, Martins L. C. Folhetins. A Semana Lírica. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1965, pp. 142-148.
    www.migre.me/fbdi