Queima (quase) total

Juliana Barreto Farias

  • Em 1890, Rui Barbosa acreditava que destruindo documentos iria apagar as memórias da escravidão. O tempo e os historiadores mostraram o quanto ele estava enganado. Só que, ainda hoje, muitos políticos continuam achando que o passado pode desaparecer em fogueiras. Em Goiás, prefeitos de pequenas cidades, assim que deixam o governo, queimam manuscritos de todo tipo. Graças à determinação de alguns moradores, nem tudo acaba consumido pelas chamas.

    No norte do estado, a cerca de 280 quilômetros de Goiânia, a escritora Sinvaline Pinheiro já conseguiu resgatar muitos documentos da cidade de Uruaçu e de municípios vizinhos, como Crixás, Pilar e Niquelândia. Nesses locais, ex-prefeitos queimaram correspondências, livros de registros e balancetes. Considerada “reduto de grileiros e das torturas”, segundo a escritora, a região é marcada por disputas pela posse de terras.

    Durante a reforma de um museu de Uruaçu, Sinvaline soube que manuscritos jogados num canto da prefeitura seriam descartados. No exato momento em que o administrador da cidade e os vereadores se preparavam para incinerá-los, ela pediu para ler e guardar a documentação. “Fiquei com esse material pra lá e pra cá, carregando aos poucos no meu carro. Das queimadas periódicas restaram manuscritos sobre a matança de ciganos na época da colonização, os feitos do desbravador Bernardo Sayão e da Colônia Agrícola de Ceres. O presidente João Goulart possuía uma fazenda aqui, caçava, pescava, fazia amigos. Há muitos depoimentos e correspondências arquivadas que mostram um pouco da trajetória final de seu governo”, conta a escritora. Para evitar que tudo isso se perdesse, ela decidiu levar parte dos registros para o Memorial da Serra da Mesa, complexo cultural e ambiental que vem recuperando a história da região. “Está ainda sem dedetizar, mas, pelo menos, guardado. Esperamos recursos para dar um tratamento especial, só que está sendo dificílimo consegui-los”, afirma.

    Nem todas as cidades contam com moradores tão dedicados. Mas histórias como esta parecem se repetir por todo o estado. “Quando levei esse caso a uma reunião em que se encontravam pessoas de várias cidades goianas, percebi que o caso de Uruaçu não é isolado, todas têm algo parecido. É urgente tomar providências para a conservação desses últimos documentos, porque, a cada reforma de uma prefeitura, parte da história vai para o fogo ou para o lixo”, constata Sinvaline.