Equilibrado sobre um tronco de árvore cheio de limo, Santos Dumont cruzou os braços e ficou admirando a paisagem. A poucos metros dele, seu anfitrião prendeu a respiração. Abaixo do tronco havia um abismo: o Salto Floriano, nas Cataratas do Iguaçu. Notando o pavor nos olhos do acompanhante, o aviador tratou de tranqüilizá-lo com uma frase que ficaria famosa: “As alturas não me perturbam, não se preocupe”.
Um simples escorregão e o Brasil poderia perder precocemente seu grande inventor naquele abril de 1916. Foz do Iguaçu, por sua vez, perderia um marco histórico para sua identidade. Mas Santos Dumont desceu do tronco e, estupefato com o que viu, foi o primeiro a defender publicamente a criação de um Parque Nacional para proteger as cataratas. Naquele mesmo ano, o governo do Paraná desapropriou a área.
O parque mesmo só seria criado em janeiro de 1939 por Getulio Vargas. Portanto, está prestes a completar 70 anos. Tudo muito recente, mas as mudanças foram tão grandes que mal dá para acreditar. O Hotel Brasil, onde Santos Dumont se hospedou, era um barracão ao qual só se chegava após quatro horas em lombo de burro, por uma picada aberta na mata. Hoje, Foz do Iguaçu é o segundo destino turístico mais procurado do país. Só perde para o Rio, desbancando capitais como Recife, Salvador e São Paulo. E as tarifas do luxuoso Hotel das Cataratas fazem com que 90% de seus hóspedes sejam estrangeiros.
A proximidade do aniversário do parque está estimulando uma série de ações para recontar a história das Cataratas e de Foz do Iguaçu. Uma história feita de turismo, natureza e... fotografias. Este é o mote do projeto “Memória das Cataratas”, conduzido desde o final de 2007 pela agência de publicidade L3 em parceria com o parque. O objetivo, a princípio, era fazer uma convocação pública para que antigos moradores doassem fotos de seu acervo pessoal. Elas seriam escaneadas para compor um acervo digital e resultariam em uma exposição. Na base do boca a boca, a pesquisadora Mônica Laurito saiu a campo para procurar antigos moradores. Foi quando se deu conta do tamanho da empreitada. Até agora, o projeto já recebeu mais de 2.300 fotos, enviadas por mais de 120 pessoas.
E a pesquisa teve que dar um passo adiante. “Peguei um caderno para anotar informações básicas sobre quem estava doando”, conta Mônica, que a partir de então virou historiadora em tempo integral. Suas conversas viraram entrevistas e a levaram a resgatar as histórias familiares até o primeiro ascendente a chegar em Foz. Já está completando o segundo caderno (daqueles grandes, de espiral), anotando tudo à mão.
Resultado: à exposição se juntarão um documentário com depoimentos de moradores e um livro sobre os 70 anos do parque. Um dos aspectos que mais chamam a atenção é justamente a quantidade de fotografias que veio à tona. O motivo parece óbvio: é impossível conhecer as cataratas e não querer registrar aquela visão impressionante. Exemplo extremo é o da educadora Aglael Morgenstern. Nos anos 1950, ela se mudou para Foz, vinda de Curitiba, para capacitar professores locais. Ia ficar um mês. Casou-se e lá ficou até 1973. Nessas duas décadas, não cansava de levar amigos e visitantes para conhecer as cataratas. No verso de cada foto revelada, escrevia odes à natureza e à força das águas. E foram dezenas, centenas de fotos. Todas com poemas no verso.
A fotografia foi um dos primeiros serviços do primitivo turismo da região. Harry Schinke e Franz Kohlenberger estão entre os grandes propagadores das imagens das cataratas pelo Brasil e pelo mundo. Imagens que logo atraíram visitantes ilustres ao Hotel das Cataratas, do qual, por sinal, Franz foi o funcionário número um, onde começou como barman e virou gerente. “Poor Niagara”, escreveu a primeira-dama americana, Eleanor Roosevelt, ao vislumbrar a majestosa equivalente brasileira das “pobres” cascatas de seu país. Explorador por natureza, Franz não parava de inventar atrativos para os hóspedes, como passeios de barco e a cavalo. Em plena década de 1950, tudo era ainda muito rústico.
Até a década de 1960, não havia agências de viagem em Foz do Iguaçu. Casa de câmbio, com todo aquele potencial turístico e em região de fronteira, havia uma. Até que despertou o voraz tino capitalista de Laurindo Ortega, que uniu as duas áreas de negócio e virou um dos pioneiros da hotelaria local. Ficou milionário. Descendente de espanhóis, ele já havia sido jangadeiro, trabalhara para madeireiros na época da devastação geral, chegou a viver por dois anos com uma índia no meio do mato. Quando a sorte lhe sorriu, virou cambista. Começou “informalmente”, batendo de porta em porta. Enriqueceu a tal ponto que logo tinha contatos poderosos no governo. O jeito de legalizar sua atividade era ter uma agência de turismo. Foi assim que inaugurou “a primeira agência de turismo do Brasil”, ao menos a primeira da recém-fundada Embratur, em 1970. Da Agência Ortega para o Hotel Ortega, e dele para vôos fretados com estrangeiros ansiosos para conhecer as cataratas, Arlindo tornou-se magnata antes da concorrência. Hoje dá expediente num dos quartos abandonados de seu hotel fechado. Senta-se ali e não tem muito o que fazer, a não ser relembrar os tempos áureos e queixar-se das traições e de transações mal-sucedidas, inclusive o divórcio, que lhe tirou o pouco que restava – devido a “intrigas” de que seria mulherengo.
Dramas pessoais à parte, o fato é que nas últimas décadas a exploração do turismo em Foz cresceu tão depressa que nada mais poderia ser como antes. A própria relação dos moradores com as cataratas – antes íntima e aberta a visitas e churrascadas à beira do cartão-postal — agora é cercada de formalidades. As fotografias de hoje têm sotaque estrangeiro.
Mas poderia ser diferente? Difícil. Os atuais 300 mil habitantes de Foz respiram turismo, e o Parque Nacional do Iguaçu é um oásis de preservação ambiental numa região que foi devastada pelas madeireiras e pela soja, e inundada por Itaipu (cujo lago fez sumir outro ponto turístico histórico: as Sete Quedas). Talvez seja o melhor exemplo da tão propalada “sustentabilidade ambiental” no país: em Foz, a economia não resistiria sem natureza. E parece que só o parque descobriu isso. O setor hoteleiro faz que não é com ele.
Aos 32 anos, Márcio Bortoli pode ser uma nobre exceção. Gerente de hotel, formado em Gestão Ambiental, ele fundou com amigos um ONG que limpa os rios da região e fiscaliza agressões ao meio ambiente, inclusive dentro do parque, em troca do livre acesso para praticar esportes como caiaque, wakeboard e rapel. Mário e seus amigos da Associação de Desenvolvimento de Esportes Radicais e Ecologia (Adere) são mais alguns excelentes personagens para o documentário e o livro.
As cataratas são pura história: suas águas nunca param de passar.
Quem te viu, quem te vê
Lorenzo Aldé