A sala de aula não estava entre as principais preocupações de Marc Bloch e Lucien Febvre. A produção destes dois historiadores franceses, que trouxeram grandes contribuições para sua área em diversos países do Ocidente, não dedicou grande atenção à questão do ensino de história, seus conteúdos e métodos. Mas será que isto nos impede de aproveitá-los como inspiração para o ensinar e o aprender?
Se entendermos o aprendizado histórico numa perspectiva mais ampla, relacionada com as funções e os usos da história na vida pública, encontraremos nesses autores um fértil terreno para a reflexão e a prática de ensino.Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) pertencem a uma geração que vivenciou profundas mudanças na produção do conhecimento histórico. Nas décadas de 1920 e 1930, a história consolidou-se na França como disciplina científica, produzida a partir de universidades e centros de pesquisa, e os dois franceses foram peças centrais dessa engrenagem, tanto no aspecto metodológico quanto no institucional. Mas o enfoque na pesquisa acadêmica não os afastou completamente da reflexão sobre os sentidos do fazer histórico, ou seja, sobre as relações entre pensamento histórico e vida prática.A preocupação com o ensino de história, com sua organização propriamente dita, é mais visível nos escritos de Marc Bloch. Já Lucien Febvre dedicou-se mais às metodologias de pesquisa, embora não tenha se furtado de refletir, por exemplo, sobre a limitação dos manuais de história disponíveis para os jovens franceses, ou sobre os concursos de seleção de professores. Principal projeto acadêmico conjunto dos dois autores, a revista Anais de história econômica e social foi concebida para circular não apenas entre historiadores profissionais: Bloch e Febvre queriam que sua publicação chegasse a professores das escolas de educação básica e às bibliotecas de diversas instituições de ensino, não só as universitárias.Duas questões que atravessam os sentidos do fazer histórico de Lucien Febvre e Marc Bloch contribuem ainda hoje para o diálogo entre pesquisa acadêmica e ensino de história: a problematização do passado e a compreensão da diversidade. É bastante conhecida na comunidade de historiadores a abordagem metodológica da história-problema, desenvolvida por eles: a investigação realiza-se a partir de um questionamento, da elaboração de perguntas partindo de interesses presentes sobre o passado. A mesma ideia aparecia na reflexão dos autores sobre o ensino. Em texto-manifesto de 1937, a dupla francesa afirma que em uma concepção de história-ciência é possível que se trate a análise da fonte histórica como uma atividade de laboratório. E essa vivência seria relevante não apenas para o historiador: importaria também para o estudante. Assim como proporcionam as outras ciências, para eles a História poderia permitir a seus estudantes frequentarem o laboratório, terem a experiência de analisar um documento, de colocar-lhe problematizações.Essa discussão mantém-se importante, pois ainda refletimos sobre os usos de uma “metodologia da investigação” em sala de aula. Esse método não deve ter como objetivo a mera reprodução da atividade historiadora. A proposição do uso de documentos na sala de aula não busca confundir os estudantes com historiadores profissionais. Não é este o foco hoje, tampouco era o foco de Bloch e Febvre. Tratar os estudantes como produtores de conhecimento histórico pode camuflar a complexidade e o rigor teórico-metodológico tão importante para a disciplina. Por outro lado, utilizar a investigação, “colocar o estudante no laboratório”, permite o aprendizado por meio de perguntas dotadas de significados, motivadas pelo contexto dos próprios alunos. Nesse caso, o acesso aos conteúdos não se dá pela leitura simples de um texto acabado, mas por um processo complexo de desconstrução e reconstrução de discursos, com críticas às fontes apoiadas nos textos didáticos. Não menos importante, é capaz de proporcionar a construção de uma síntese de conhecimentos que retoma a questão-problema.Outro aspecto atribuído a Marc Bloch é o tratamento da história como entretenimento. O crescente interesse contemporâneo por temas históricos passa por esta dimensão da diversão. Como isso repercute no terreno do ensino? Em sua importante obra póstuma, A Apologia da História, Bloch parte de um questionamento de seu jovem filho para se colocar a questão: para que serve a história? Não é a primeira vez que o autor se debruça sobre o tema. E entre as muitas respostas que apresenta está a capacidade que a história tem de divertir, de entreter – como uma de suas funções, não a primordial.
O autor claramente concebia um valor pedagógico para a História. Ainda nos anos 1920, reconhece que seu ensino é, em alguma medida, uma preparação para a vida política. Não significa afirmar o aprendizado a partir do exemplo. Nem Bloch nem Febvre apregoam uma ideia de história “mestra da vida” em um sentido tradicional, de se mirar nos heróis e aprender com os fatos passados para repeti-los ou evitá-los no futuro. O aprendizado de que trata Bloch é o da diferença, da mudança. Entendida como o conhecimento da mudança, a História permitiria a compreensão das diferenças no presente. Pode-se associar essa compreensão à do teórico alemão Jörn Rüsen (1938-), que define o aprendizado histórico como um processo de orientação cultural.Há nesse entendimento características primordiais para a reflexão sobre o ensino de história hoje. Quanto aos conteúdos, parece já bastante clara e difundida, na pesquisa e também no ensino, a importância da pluralidade temática de abordagens. Estuda-se e pesquisa-se da história política à social, da econômica à cultural. Após quase um século, já não lidamos com os mesmos problemas presentes nos manuais de história que Lucien Febvre tanto criticava por sua abordagem restritiva. Mas ainda cabe questionar: até onde alcança essa diversidade? Em que medida a pluralidade de abordagens não continua bastante circunscrita a um espaço-tempo? Não é a nação, ainda, o recorte preferencial? Não teríamos ampliado o leque de abordagens dentro de um espaço muito fechado?Para Marc Bloch e Lucien Febvre, importava muito que a pesquisa histórica e o ensino oferecido aos jovens se desprendessem de um recorte excessivamente nacionalista e que fossem trabalhados temas alheios ao universo francês. Há nesses autores uma preocupação com um sentido de história universal. É claro que é preciso questionar que "universal" é este e em que medida conseguiram realizá-lo. Mas sem dúvida eram sensíveis à alteridade. Para Bloch, por exemplo, seria muito mais importante para um futuro cidadão francês aprender um pouco da história da Índia ou do Islã do que conhecer profundamente o passado diplomático da França do século XVIII.O sentido de identidade, de reconhecimento, parece mais ser o norteador do ensino, e mesmo da pesquisa histórica, do que o sentido da diversidade. Não se trata de negar à consciência histórica a dimensão de constituição de identidades, mas de questionar se ela não deveria estar mais fortemente alicerçada nessa dimensão fundamental para a compreensão do diferente, da alteridade.Para ficar na temática da nação, basta observar que o ensino de história da África só recentemente vem sendo discutido e implementado no Brasil. E ainda assim porque se trata de uma população que compõe a identidade nacional brasileira. O que dizer do ensino de história asiática? O que oferecemos aos nossos estudantes sobre história da China? O que sabem nossos docentes sobre os países árabes? Ao que parece, estamos distantes de uma história descentralizada. O ensino de história de caráter multiversal ainda é um ideal a ser perseguido. Assim como o foi para Marc Bloch e Lucien Febvre.Sabrina Magalhães Rocha é autora de Lucien Febvre, Marc Bloch e as ciências históricas alemãs (1928-1944), (Edufop/Ppghis, 2012).Saiba maisBARCA, Isabel; SCHMIDT, Maria Auxiliadora & MARTINS, Estevão (orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.BITTENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2011.BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o Ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Questionar-se com mestres
Sabrina Magalhães Rocha