Para onde vamos como nação e como cultura? Para responder a isso, precisamos saber de onde viemos, quais as bases em que nos formamos. Fundamentalmente, foi deste raciocínio que Sérgio Buarque partiu para escrever um dos mais importantes livros sobre o Brasil, reeditado agora por conta das comemorações pelos 70 anos de seu lançamento.Sérgio Buarque descende da geração dos artistas-pensadores do modernismo de 1922 que repensaram o Brasil e seu lugar na modernidade. Foi um dos primeiros a se dedicar à pesquisa sistemática desse tema. O Brasil era agora um problema de estudo – da História, da Sociologia, da Psicologia social – e não mais apenas de “figuração”. Ensaio sintético inspirado nas teorias modernistas sobre a necessidade e os impasses da modernização nacional, Raízes do Brasil compõe, com as obras de Caio Prado e Gilberto Freyre, a trinca das grandes interpretações do Brasil surgidas com a mentalidade modernizadora nos anos 1930.
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As Raízes do Brasil, segundo seu autor, estão fincadas na cultura ibérica e na forma da colonização, que criaram na América uma civilização particular. Do mundo ibérico os brasileiros teriam herdado o culto à personalidade e a ausência do culto ao trabalho. Entre nós predominou sempre o privado em relação ao público, o talento em lugar do esforço, a cultura vista como um ornamento que não se envergonhava de adaptar – freqüentemente de maneira esdrúxula – as idéias importadas, malandramente modificadas para uso interno. É por isso que conseguíamos nos declarar “modernos” e “liberais” mesmo mantendo a escravidão. É por isso que ainda hoje falamos em ingressar no “Primeiro Mundo” contando com nossos computadores, celulares e viagens à Disneylândia. Sérgio dizia que desde sempre nos esforçamos por criar “asas para não ver o espetáculo detestável que o país” nos oferece, mantendo a mais brutal desigualdade social do mundo...
O homem brasileiro era o “Homem Cordial”, o mais discutido conceito criado por Sérgio Buarque. Mas aqui “cordialidade” não tem significado positivo. Ela é a marca de nosso individualismo e nossa alienação dos destinos nacionais. O homem cordial se orienta pelo primado das relações pessoais e conduz seus interesses a partir da estruturação de uma rede de favorecimento e de dependência. O homem cordial pode ser afetuoso e violento conforme ele queira, e pode variar entre a regra e a exceção segundo sua vontade. Mas as justificativas para essas idas e vindas, para essas aparentes “contradições”, são sempre pessoais e sentimentais. Talvez a melhor tradução dessa cultura tenha sido dada na canção “Fado Tropical” (1972), de Chico Buarque (filho de Sérgio) e Ruy Guerra, que parodia o típico discurso luso-brasileiro “cordial”: “Sabe, no fundo eu sou um sentimental/ Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo/ Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...”.
O historiador acreditava naquele momento que o processo de urbanização, a cidade grande com suas regras e ordens, iria decretar a morte lenta dessa mentalidade. Era a “nossa revolução”. Aqui talvez resida o que há de mais ultrapassado no trabalho de Sérgio Buarque. De lá para cá, o Brasil se tornou predominantemente urbano sem que isso tivesse reduzido nossos “vícios de origem”. Ao contrário, a urbanização brasileira mais excluiu do que incluiu, e no início do século XXI, sobretudo depois do abandono (ou da falência) do projeto desenvolvimentista que começou a ser gerado na época de Sérgio Buarque (e que ele sem dúvida antecipou e cujas dificuldades previu), acabou por transformar a maioria dos brasileiros (cordiais ou não) em “desterrados em nossa terra”, como ele mesmo disse.Ainda assim, Sérgio Buarque nos ensina neste livro que será o povo, e não a elite (que ele nos mostra como pensa e como tende sempre a virar as costas para o destino do país), que poderá ou não nos tirar dessas raízes e nos lançar a um futuro melhor. E é por isso que este ensaio de 70 anos ainda é uma das mais impressionantes fortunas críticas para que possamos pensar quem somos e para onde vamos.
Francisco Alambert, Professor de História Social da Arte e História Contemporânea na USP.
Raízes do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda