Rastros ancestrais

Walter A. Neves / Fabio Parenti / Giancarlo Scardia / Astolfo Araujo / Bilal Khreishat / Fareed Al-Shishani

  • Reconstituição a partir de fósseis do crânio do Homo Erectus, considerado o primeiro hominínio exclusivamente terrestre e o primeiro a sair do continente africano há 2 milhões de anos. (Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos - USP / Foto: Henrique Bianchi)As últimas cinco décadas testemunharam um aumento significativo das pesquisas sobre as origens da linhagem hominínia, à qual pertencem nossa espécie, bem como nossos ancestrais bípedes. Isto ocorreu, sobretudo, na África. Mais especificamente, no leste desse continente.

    Alguns pontos cruciais sobre nossa evolução já foram elucidados. Os primeiros bípedes surgiram há cerca de 7 milhões de anos. Ainda mostravam uma grande capacidade de trepar em árvores, pois estavam em um contexto de florestas e bosques, e não nas savanas. O primeiro hominínio é representado pelo Sahelanthropus tchadensis, e a evolução da espécie ficou restrita ao continente africano até cerca de 2 milhões de anos atrás.

    Nossos primeiros ancestrais não eram caçadores de grandes presas, mas sim carniceiros. As primeiras ferramentas de pedra lascada surgiram por volta de 2,6 milhões de anos atrás, na Etiópia, portanto antes do surgimento do gênero Homo: foram produzidas por alguma linhagem tardia do gênero Australopithecus, sendo o candidato mais provável o Au. garhi.

    Também é consenso entre os especialistas que há entre 3 e  2 milhões de anos a linhagem hominínia passou a ser representada por várias sub-linhagens, e que muitas delas conviveram, mantendo suas identidades fenotípicas – entre elas a Australopithecus afarensis, a Australopithecus anamensis, a Australopithecus ghari, a Kenyanthropus platyops, a Australopithecus africanus, a Australopithecus sediba, a Paranthropus aethiopicus, a Paranthropus boisei e a Paranthropus robustus.

    Uma questão fundamental a ser respondida é de qual dessas linhagens teria surgido nosso gênero. A abundância de fósseis e de espécies contribui para um debate instigante sobre a evolução a partir de 3 milhões de anos, com diversos cenários possíveis. Duas espécies disputam o papel de ancestral de Homo: o Au. garhi e o Au. sediba, este último encontrado e descrito apenas recentemente. Pesa a favor do primeiro, descoberto na Etiópia, o fato de ter sido encontrado, em princípio, associado a ferramentas de pedra lascada e a ossos de grandes mamíferos com marcas de corte. Mas apresenta dentição megadôntica (com enormes dentes molares), típica da linhagem dos Paranthropus e bastante diversa daquela encontrada nos primeiros Homo.

    Quanto ao Au. sediba, encontrado na África do Sul, ele tem grande similaridade morfocraniana com o Homo habilis. Neste caso, o gênero Homo teria surgido na África do Sul e não no leste daquele continente. A cronologia, entretanto, complica esse cenário, pois os fósseis de Au. sediba até o momento encontrados são posteriores (1,9 milhões de anos) aos fósseis dos primeiros Homo (2,3 milhões de anos).

    E quem seria o primeiro representante do gênero Homo? A ideia mais comum é que seriam o Homo habilis e o Homo rudolfensis. Para alguns autores, no entanto, esses hominínios deveriam ser defenestrados do gênero Homo e alocados nos gêneros Australopithecus e Paranthropus, respectivamente. Assim, o primeiro representante do gênero Homo seria o Homo erectus, o primeiro hominínio bípede estritamente terrestre. A proposta parece fazer sentido, mas estudos recentes realizados pelo Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP com colegas argentinos, sobre a morfologia craniana desses hominínios, não apoiam a ideia de retirar de nosso gênero o Homo habilis e o Homo rudolfensis.

    Organizar taxonomicamente os primeiros representantes do gênero Homo tem sido um dos maiores desafios da paleoantropologia moderna. A maioria dos autores concorda que esses hominínios podem ser classificados em várias espécies, como o Homo habilis, o Homo rudolfensis, o Homo ergaster e o Homo erectus. Alguns acreditam que não se deve diferenciar ergaster e erectus. Muito recentemente, David Lordkipanidze, da República da Georgia, apresentou uma proposta radical, reduzindo as quatro espécies a apenas uma: Homo erectus. Afinal, sua variabilidade morfológica não seria maior do que aquela encontrada nos chimpanzés, nos bonobos e na humanidade atual.

    O Oriente Médio deve ter desempenhado um papel fundamental para a dispersão do gênero Homo para fora da África, em direção à Ásia e possivelmente à Europa. Os fósseis de Homo mais antigos fora do continente africano foram encontrados na República da Georgia, no Cáucaso, e datados em 1,8 milhões de anos. Isto significa que ocupações hominínias mais antigas deveriam ser encontradas no Oriente Médio. Entretanto, até o momento, o sítio arqueológico mais antigo encontrado na região, em Ubeidiya, Israel, está datado entre 1,4 e 1,6 milhões de anos.

    O Vale do Rio Zarqa, no planalto central da Jordânia, mostrou-se uma região extremamente rica em artefatos de pedra lascada. Prospecções efetuadas a partir de 1996 colocaram em evidência também fósseis de equídeos, de bovídeos e de elefantídeos. Infelizmente, hominínios fósseis não foram encontrados. De qualquer forma, a fauna encontrada indica que os níveis antrópicos (relativos ao homem) mais antigos do Alto Vale do Rio Zarqa têm ao menos cerca de 1 milhão de anos. Embora pouco se conheça sobre os vales médio e inferior do Zarqa, uma rápida inspeção nessas áreas, em outubro de 2013, revelou uma impressionante quantidade de afloramentos disponíveis, muito semelhantes aos encontrados no alto vale do mesmo rio, o que faz da região um dos lugares mais favoráveis para a pesquisa paleolítica de todo o Oriente Médio.

    A viagem à Jordânia foi apenas a visita preliminar de uma pesquisa financiada com recursos da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP e do Instituto Italiano de Paleontologia Humana de Roma. No longo prazo, o objetivo principal é mostrar que o vale do rio Zarqa foi um importante corredor de expansão do gênero Homo a partir da África em direção à Ásia, inserindo as jazidas pleistocênicas da Jordânia central no debate científico sobre o primeiro povoamento do Velho Mundo.

    Para os dois primeiros anos os objetivos são modestos. Pretende-se intensificar as prospecções geológicas, arqueológicas e paleontológicas no Alto Vale do rio Zarqa, caracterizando as indústrias líticas pleistocênicas, com ênfase naquelas do Paleolítico Inferior, e estabelendo uma cronologia confiável para as distintas ocupações hominínias da margem oriental do Jordão. Tambem serão feitas prospecções geológicas, arqueológicas e paleontológicas nos Vales Médio e Baixo do Rio Zarqa, até o momento praticamente desconhecidos.

    A datação por paleomagnetismo, única técnica que pode ser aplicada para os sedimentos continentais da formação Dauqara, repousa sobre o seguinte princípio: hoje, o polo magnético da terra coincide com o Polo Norte. Mas nem sempre foi assim: no passado houve períodos em que o polo magnético do planeta coincidia com o Polo Sul. No primeiro caso, os períodos são denominados de “normais”, no segundo os períodos são denominados “invertidos”. Já se conhece bem quando os períodos de inversão ocorreram. Medindo a polaridade das partículas magnéticas encontradas nos sedimentos e nas rochas, é possível saber se elas estão alinhadas com o Polo sul ou com o Polo Norte, o que permite sua datação.

    A pesquisa no Vale do Rio Zarqa incluirá o treinamento de alunos brasileiros num ambiente de pesquisa internacional. Esta é a primeira missão paleoantropológica do Brasil no Velho Mundo e poderá gerar conhecimentos imprescindíveis para a compreensão da primeira saída do homem da África e a colonização da Ásia e da Europa.

    Walter A. Nevesé pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos-IB da USP, Fabio Parenti é pesquisador do Istituto Italiano di Paleontologia Umana e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Giancarlo Scardia é pesquisador do Instituto Oceanográfico da USP, Astolfo Araujo é pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Bilal Khreishat é pesquisador do Queen Rania Institute of Tourism & Heritage, Hashemite University, Zarqa, Jordânia e Fareed Al-Shishanié pesquisador do University College of London, Doha, Qatar.

    A pesquisa no Vale do Rio Zarqa é a primeira missão paleoantropológica do Brasil no Velho Mundo e poderá gerar conhecimentos imprescindíveis