Realmente moderno

Bruno Garcia

  • “Que tenho eu com as intrigas políticas? A minha bandeira é a da arte e só ela respeito!”, disse Eliseu Visconti (1866-1944) depois de ler o Jornal do Commercio de 6 de agosto de 1907. Naquele dia a publicação noticiara que “membros da colônia brasileira” em Paris, depois de visita ao ateliê de Visconti, pediram para que Rui Barbosa interviesse junto ao presidente da República para que fosse retirado o finado D. Pedro II de uma enorme pintura que o artista realizara. O artigo, assinado pelo engenheiro Francisco de Oliveira Passos, se queixava de que a figura do imperador, “boquiaberto ante o Maestro Carlos Gomes”, se encontrava rodeada de “pessoas na mesma atitude, entre as quais uma preta mina, com tabuleiro cheio de bananas, além de outros atributos ridículos ou deprimentes”.

    A pintura em questão estava destinada ao pano de boca do Theatro Municipal e respondia ao tema definido pela prefeitura: A influência das Artes sobre a Civilização. Naquele ano as reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro, das quais o próprio Theatro Municipal fazia parte, já estavam bastante avançadas. Elas eram o símbolo do progresso republicano, visavam, entre outras coisas, substituir o amontoado confuso do centro, em condições insalubres, por um ordenamento urbano racionalmente planejado. É compreensível que, aos olhos dos fervorosos republicanos do começo do século, a figura do imperador ou de uma negra com um tabuleiro de bananas representasse exatamente o oposto do que entendiam como progresso ou civilização. Ainda assim, Visconti não se deu por vencido: “Eu, como artista, cumpri o meu dever e tenho o espírito tranquilo... as opiniões são livres, recolho o que me interessa e o vento se encarrega do resto!”.

    Em 1905, quando recebeu em seu ateliê em Paris o convite do prefeito Pereira Passos para participar da decoração do Theatro Municipal, Visconti já era um artista reconhecido. De lá ele envia para o Rio de Janeiro, três anos depois, não só a pintura do pano de boca, até hoje a maior no Brasil, com 12 metros de altura por 13 de largura, mas também um conjunto de trabalhos que ocupam o foyer (parte do teto e os painéis laterais), o plafond (teto sobre a plateia) e o friso sobre o palco. Neles encontramos um pintor maduro, capaz de congregar diferentes referências e estilos. Enquanto o pano de boca conta uma história que inclui desde grandes civilizações, como a grega e a romana, e célebre homens, como Shakespeare e Mozart, o plafond apresenta uma pintura decorativa, definida por Visconti como um poema de alegria e luz.

    O talento e a versatilidade do pintor, capaz de se destacar em diferentes estilos, são resultado de uma trajetória notável. Nascido na Comuna de Giffoni Valle Piana, em Salermo, na Itália, Visconti veio para o Brasil em 1873, com apenas 7 anos. Depois de um período em uma fazenda em Além Paraíba, propriedade do Barão de Guararema, ele vai para o Rio de Janeiro, onde estuda inicialmente música. Incentivado pela esposa do barão, aluna do grande pintor Vitor Meireles, o menino passa a se dedicar cada vez mais às artes plásticas.

    O talento precoce é reconhecido em 1883, dez anos depois de chegar ao país, com a entrada no Liceu das Artes e Ofícios. A escola, fundada no Rio de Janeiro em 1856, se dedicava às belas artes aplicadas aos ofícios e à indústria. Mesmo tendo ingressado em outras escolas e academias posteriormente, é provável que a formação no Liceu tenha tido um grande impacto em Visconti. Sua produção dedicada ao que ficou conhecido como arte aplicada, ou decorativa, é enorme. Ela inclui selos, luminárias, artes gráficas, cerâmicas, emblemas e Ex-libris. Em grande parte, esses trabalhos, que se iniciaram nos seus primeiros anos no Liceu, são o lampejo de um interesse que teria continuidade à medida que o artista fosse descobrindo e entrando em contato com movimentos europeus dedicados a produções análogas.

    É pouco provável que seus críticos republicanos do Jornal do Commerciosoubessem, mas Visconti e D. Pedro II se encontraram ao menos duas vezes. A primeira, para surpresa do jovem pintor, aconteceu em 1884, quando o imperador, em visita ao Liceu, depois de se impressionar com uma escultura feita por Visconti, sugeriu que ingressasse na Academia Imperial de Belas Artes. A segunda, dois anos depois, quando recebeu das mãos do imperador um prêmio por um trabalho no Liceu. “Vejo que o senhor progride. Isto me causa grande satisfação. Quando entra para a Academia?”. Mal sabia ele que Visconti já havia seguido seu conselho um ano antes.

    Depois de uma série de premiações, tanto pelo Liceu quanto pela Academia, une-se a um grupo de estudantes e professores autodenominados “novos” ou “modernos”. O grupo se manifesta em 1890, um ano após a proclamação da República, em favor de uma reforma que atualizasse normas defasadas, como o regimento que obrigava as aulas a acontecerem somente no edifício, não permitindo o contato com a natureza. Como forma de pressionar o governo à reforma, os modernos fundam o Atelier Livre, que funciona, a partir do seu segundo mês de existência, na rua do Ouvidor. Em novembro de 1890, o governo finalmente cede e aprova a reforma proposta pelo grupo. A antiga academia é substituída pela Escola Nacional de Belas Artes, enquanto os professores mais antigos são aposentados.

    Ao se contrapor às normatizações de uma arte acadêmica, o grupo do qual Visconti fazia parte se mostrou em absoluta sintonia com movimentos análogos na Europa. Os movimentos modernistas que confrontavam as amarras de uma arte acadêmica se espalharam na última década do XIX. Nos países de língua alemã, a cisão das formas antigas e sua estrutura administrativa foram chamadas de Secessão. O mais notável aconteceu em Viena, em 1897, sob a liderança do pintor austríaco Gustav Klimt. Diferente do Brasil, na Áustria houve uma cisão entre o antigo e o novo, e os membros da Secessão construíram seu próprio prédio. O Jugendsill (estilo dos jovens) era a versão germânica do Art Noveau francês. Um estilo de arte aplicada, que incluía arquitetura. Klimt, como Visconti, trilhou seu caminho na arte acadêmica, mas se destacou em diferentes campos, como a arte decorativa. E foi ele também o responsável pela última e mais importante pintura no Burgtheather, o último edifício construído na reforma urbana de Viena. Visconti, no entanto, tinha relações mais próximas com a França.

    Em 1892 ele vence um concurso cujo prêmio é uma viagem para estudar em Paris. Lá, além de frequentar a Escola de Belas Artes, também se inscreve na Escola Guerin, onde pode estudar com Eugene Grasset, um dos maiores nomes do Art Noveau. Segundo o crítico e historiador Frederico Moraes, pela primeira vez um artista brasileiro enviado pelo programa para a Europa se afastava dos mestres acadêmicos e se ligava ao Art Nouveau e ao simbolismo. Mais do que isso, seu trabalho foi a expressão da transição da arte brasileira para a modernidade. Na interseção de dois tempos, Visconti aprendeu e adaptou-se às formas clássicas e acadêmicas tradicionais sem que delas se tornasse refém. Guardou para sempre a admiração e o respeito pelo seu mestre Vitor Meireles, mas ousou ir adiante.

    Em 1901, quando monta sua primeira exposição individual no Brasil, além de

    60 pinturas e desenhos, Visconti trouxe da França um conjunto de 28 trabalhos de arte decorativa que lamentou ter sido ignorado. “Olharam-me como novidade e nada mais. Cheguei a fazer cerâmica à mão, para ver se atraía a atenção das escolas e oficinas do Governo. Ninguém notou o esforço”.  Era o preço a ser pago pelo pioneirismo. Algo que ficaria ainda mais explícito em 1922. A célebre Semana de Arte Moderna ignorou todo o seu legado e contribuição. “Não foi convidado”, disse mais tarde o jornalista Pietro Maria Bardi. “Simplesmente não foi convidado pelos integrantes daquela panelinha. Assim, esqueceram o único realmente moderno de sua época”.

    A versatilidade de estilos, dominando do impressionismo à arte decorativa, já seria suficiente para consagrar o nome de Eliseu Visconti no panteão dos artistas brasileiros. Como se não bastasse a imensa obra de uma carreira de 60 anos, a ela se acrescenta o trabalho magistral do Theatro Municipal. Ainda assim, é provável que o traço mais perene de sua contribuição esteja não nos seus trabalhos, mas na marca indelével que deixa em cada pintor, em cada artista que no Brasil ousou se dizer moderno. Mesmo que a patota de 1922 tenha teimado em não reconhecer.

     

    Bruno Garciaé pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional.

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

     PEDROSA, Mário. Visconti diante das modernas gerações. In:  _____. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Edusp, 1998. p.119-133.

    VISCONTI, Eliseu. A modernidade antecipada. Cidade: Holos Soluções Artísticas, 2012.