“Um verdadeiro antro! Nele se reúne uma multidão de prostitutas que, com sujeitos desclassificados, passam noites e noites a beber na maior vadiagem”. Assim era o Café Flor da Noite, pelo menos na descrição feita pelo Jornal do Recife em outubro de 1926.
Na capital que se pretendia moderna e civilizada, a licenciosidade da vida noturna era vista com horror pelos defensores da moralidade e dos valores familiares. Mas o escândalo durava só até o sol raiar. Ao amanhecer, a vida da cidade ia, aos poucos, voltando à rotina do trabalho.
Na segunda década do século XX, a cidade despontava como um dos mais importantes centros políticos e econômicos do país, em função do seu peso na balança nacional de exportações de açúcar. No auge da influência cultural europeia, com os ventos da modernidade soprando de Paris, a capital pernambucana foi beneficiada por projetos de melhorias urbanísticas à semelhança do que ocorria no Rio de Janeiro. Reformas no porto e em bairros inteiros, demolições, calçamento de ruas, implantação de um sistema de saneamento, embelezamento de praças e construção de mercados públicos mudavam as feições do antigo Recife.
Cosmopolita por vocação, a sedutora cidade litorânea tinha todos os ingredientes para ser um paraíso dos boêmios. E, de fato, era. Inúmeros cafés, bares, botequins, pensões e cabarets atraíam a clientela com uma variedade de shows artísticos e musicais em convívio harmonioso com a prostituição e a jogatina. Se em princípio havia os cafés tidos como “respeitáveis”, destinados a públicos seletos, em oposição aos populares – conhecidos como “cafés-cantantes” ou cafés-concerto” –, à noite, nas ruas, ao menos por algumas horas, as distâncias sociais diminuíam.Cafés considerados refinados e elegantes eram também frequentados por prostitutas, que protagonizavam escândalos nas colunas policiais, e por personagens que ganhavam a vida com atividades ilegais. Por outro lado, figuras respeitáveis da sociedade, julgando-se protegidas pelas sombras da noite, desafiavam as normas estabelecidas e passavam as madrugadas nos cafés populares, misturando-se aos que classificavam como “desordeiros”, “malandros” e “mundanas”. “Quem são aqueles cidadãos incontestavelmente respeitáveis, pela atitude educada que mantêm que, todas as noites, (...) passam de 7 às 11 da noite a chupar (...), calmamente, garrafas e mais garrafas de cervejas? E aquele outro, quase sempre de fraque, pequeno anel de brilhante no dedo, pérola na gravata, que grita tanto, dá altas gargalhadas, bate fortemente com o bozó sobre a mesa?”, recriminava o Jornal Pequeno em 1921.
As reclamações contra os cafés e os pedidos de providências por parte das autoridades eram constantes. Afinal, a conversa alta, o barulho, as brincadeiras, brigas e discussões agrediam os padrões de civilidade vigentes, que recomendavam silêncio, discrição, impessoalidade e retraimento no espaço público.
Da diversão para a criminalidade era um pulo. Palco de ocorrências diversas, causadas por embriaguez e por disputas envolvendo o sexo feminino, os cafés estavam sempre nos livros de queixas das delegacias e nas páginas policiais da imprensa. Em julho de 1922, o Café Chile, na Praça da Independência, foi alvo de uma batida policial que flagrou a venda de cocaína em sua tabacaria. O caso virou escândalo nas páginas do Jornal do Recife, em furo de reportagem: “A polícia apreendeu grande quantidade de frascos de cocaína em poder do estrangeiro Abílio, proprietário da tabacaria do Café Chile, o qual os vendia por bom preço ao meretrício”.
As prostitutas eram quase sempre responsabilizadas pela entrada dos moços no mundo do vício, e os bordéis eram vistos como ambientes de devassidão, acusados de “desencaminhar os jovens”. O jornal detalhava o processo: “As mulheres das pensões vivem constantemente sob a ação do tóxico, provocando cenas de escândalo ao lado de rapazes, muitas vezes pertencentes a distintas famílias e que se desviam para a vida perdida do lupanar”.
O episódio levou a imprensa a discutir o crescimento do consumo de drogas na capital, advertindo que a cocaína era considerada “há muito tempo, o tóxico chic do meretrício desta cidade. A polícia só louvores merecerá se conseguir extirpar do nosso meio os chamados ‘vícios elegantes’, pois não é pequeno o número de vítimas entre nós dos terríveis efeitos da cocaína, morfina, éter, ópio, etc”. O “tóxico chic” dos bordéis levou o proprietário do Café Chile a responder a inquérito policial, manchando a propaganda da casa, que apregoava “instalações modernas e serviços de qualidade refinada”, uma das poucas a oferecer iluminação elétrica, conforme caprichado marketing do estabelecimento publicado na imprensa local.
Ainda mais famoso que o Chile era o Café Continental, localizado na esquina da Rua do Imperador com a 1° de Março, vizinho à charutaria e loja de cigarros da fábrica Lafayette – pelo que ficou conhecido na época como “Café da Lafayette” ou “Esquina da Lafayette”. Seu público cativo era composto de membros das elites econômica, política e cultural. Com eles conviviam vendedores de bilhetes de loteria, engraxates, agiotas, ambulantes, passadores do jogo do bicho e distribuidores do pule do dia (boleto de apostas do turfe) que por lá ganhavam a vida negociando e prestando serviços aos freqüentadores do Café.
Era um bom refúgio para se debater o mundo e as últimas tendências da arte e da literatura, discutir política, fechar negócios, contar piadas, escrever versos ou apenas mexericar sobre a vida alheia. Pela proximidade com as redações dos principais jornais da cidade – Diário de Pernambuco, Jornal de Recife, Jornal do Commercio, Jornal Pequeno, entre outros –, o Continental congregava boa parte da intelectualidade local. O memorialista Souza Barros consagrou o grupo por meio do epíteto “Cenáculo da Lafayette” – amigos que se sentavam em torno das mesas da “Esquina da Lafayette”, espalhadas pela larga calçada, à sombra dos oitizeiros.
Câmara Cascudo, José Lins do Rego e Gilberto Freyre integravam a confraria. Entre um gole e outro de chope ou de “leite pingado”, atravessavam madrugadas em intermináveis discussões acerca dos mais diversos assuntos. Saboreavam temas como os novos modelos literários e artísticos que chegavam com as ideias modernistas, a expansão dos ideais socialistas e sua influência nas greves operárias que ocorriam na cidade, inclusive a alta dos preços dos gêneros de primeira necessidade. Todos alimentavam uma característica comum: a vontade de rediscutir os padrões estabelecidos, numa época em que as polêmicas culturais e políticas fervilhavam. “Havia uma agitação não só nos quadros literários, mas igualmente nos políticos e sociais (...). Para muitos, o protesto não era só contra as fórmulas verbais de expressão, era contra toda a estrutura”, afirmou Souza Barros.
Não ficavam de fora, claro, comentários sobre a vida mundana, como o vencedor da última regata realizada no Rio Capibaribe ou a chegada da mais nova “beldade” em um dos bordéis da Rua das Flores. O ferino jornalista e sociólogo Abdias Moura lembra que as reuniões da tertúlia eram um “perpétuo meeting onde se discutem os fatos palpitantes e se submete a língua ao exercício ginástico de falar da vida alheia, como convém a todos os cavalheiros que não cuidam da própria vida”.
Certa vez, o encontro de dois ilustres jornalistas na Esquina da Lafayette causou apreensão entre os freqüentadores do lugar. Mário Melo e Eugênio Coimbra haviam se desentendido, e os amigos temeram que partissem para a agressão física. Mário meteu a mão no bolso do paletó, parecendo que ia sacar uma arma. Depois de um breve instante de suspense, ele retirou dali uma caneta e disse, para alívio geral: “Esta é a arma do jornalista! Puxe a sua...”. A risadaria tomou conta do Café.
Mulheres “de respeito” não passavam nem perto da calçada do Lafayette, com exceção de algumas poucas precursoras, como a escritora Rachel de Queiroz. Levada pelo marido, José Auto, presença habitual nos encontros vespertinos, Rachel compareceu a algumas reuniões dos intelectuais na Esquina da Lafayette no início dos anos 1930.
Conflitos, troca de ideias, convivência entre indivíduos de mundos diferentes... Tudo podia acontecer quando senhores “respeitáveis”, bêbados, estudantes, prostitutas, atrizes, jogadores e toda sorte de atores sociais encontravam-se nos cafés. Esquecida da rígida separação proclamada pelas elites econômicas, Recife aproximava seus habitantes. Ao menos durante a noite.
Sylvia Costa Couceiro é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco/Recife e autora da tese “Artes de viver a cidade: conflitos e convivências nos espaços de diversão e prazer do Recife nos anos 1920” (UFPE, 2003).
Saiba Mais - Bibliografia:
PARAÍSO, Rostand. A Esquina do Lafayette e outros tempos do Recife. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2001.
SETTE, Mário. “Os antigos cafés”. In: Maxambombas e maracatus. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1981.
SOUZA BARROS. “Joaquim Cardoso e o ‘Cenáculo’ da Lafaiete”. In: A década de 20 em Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1985.
VELOSO, Mônica Pimenta. “Os cafés como espaço da moderna sociabilidade”. In: LOPES, Antônio H. (org.). Entre a Europa e a África: a invenção do carioca. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
Recife brilha à noite
Sylvia Costa Couceiro