Reconhecimento lento e gradual

Fábio Franzini

  • Raízes do Brasil chegou a ser criticado por conta da condenação que fazia à "cordialidade" dos brasileiros.Em dezembro de 1936, os leitores do Boletim de Ariel, uma das mais prestigiosas revistas de crítica literária da época, foram informados por uma pequena nota, não assinada, do aparecimento de um livro com título bem peculiar: Raízes do Brasil. Escrita por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), jovem até então pouco conhecido fora dos círculos modernistas, a obra inaugurava a Coleção Documentos Brasileiros, publicada pela Editora José Olympio e dirigida pelo sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) – tão jovem quanto Sérgio, mas àquela altura já famoso por Casa-Grande & Senzala, lançado três anos antes pelo selo Maia & Schmidt.
    Apesar do pequeno espaço para a resenha, o redator se empenhara em demonstrar sua empolgação com o texto e com o autor. Para ele, Raízes do Brasil abordava “questões de grande preeminência na vida nacional”, graças ao destemor de Buarque em “levar o seu inquérito o mais longe possível, socorrendo-se de todos os livros e de todos os elementos de observação direta que o habilitassem a desobrigar-se de honrosa tarefa”. Por isso, não restava dúvida de que existia “no Sr. Sérgio Buarque de Holanda um espírito com que a cultura brasileira deve evidentemente contar”.

    Vários outros críticos importantes da época concordaram com esta avaliação: de Eloy Pontes a Austregésilo de Athayde, de Rubens Borba de Morais a Octavio de Faria, os elogios foram eloquentes, demonstrando uma receptividade extremamente favorável ao trabalho. E não faltou quem se arriscasse a prever o futuro, como Jayme de Barros, para quem Raízes do Brasil era um livro destinado a figurar “ao lado daqueles que mais fundamente penetraram no nosso passado e melhor iluminaram os desvãos obscuros da história da formação nacional”.

    Entretanto, o tom geral das apreciações não impedia que se percebesse certo incômodo entre os comentadores. O mesmo Boletim de Ariel trouxe em fevereiro de 1937 uma minuciosa análise de V. de Miranda Reis sobre o livro que, sem deixar de elogiar a inteligência e a erudição do autor, deixava claro que aquelas raízes eram “agridoces, algumas mesmo duras de roer”. Os três capítulos finais – “O homem cordial”, “Novos tempos” e “Nossa revolução” –, exigiam “bons dentes”, pois neles “há verdadeiras concreções pedregosas”, numa significativa mudança de sabor e de textura.

    Para esse gourmet, o que incomodava o paladar era a crítica que Raízes do Brasil apresentava ao “desejo brasileiro de intimidade” e ao “nosso apego aos valores da personalidade”. Uma crítica de implicações profundas, uma vez que se voltava à nossa formação sociocultural de modo agudo. Outro leitor de Sérgio Buarque, o escritor Limeira Tejo, notava que o livro representava justamente aqueles tempos, retratando uma geração “que foi forçada a olhar para baixo e descobrir que tinha pés de pavão”.

    Desafi(n)ando o coro das interpretações otimistas sobre o Brasil, pouco a pouco a tão elogiada obra sumiria do debate. Muito distante do nacionalismo político-cultural que imperava sob o governo Vargas (1930-1945) e envolta em um ambiente intelectual dominado por literatos, ela se mostrava mesmo muito mais “difícil” do que outros trabalhos contemporâneos, a começar pelo próprio Casa-Grande & Senzala, tido à época como a mais inovadora e importante explicação acerca da formação histórica da sociedade brasileira. Não por acaso, quando Raízes do Brasil mereceu uma segunda edição, em 1948, o primeiro livro do sociólogo pernambucano já caminhava para sua sexta, publicada em 1950.

    Nesse relançamento, Sérgio Buarque notou que, embora não se tratasse de uma revisão radical do texto, ele não hesitou “em alterá-lo abundantemente onde pareceu necessário retificar, precisar ou ampliar sua substância”. Entre as modificações, a mais evidente era a reformulação do capítulo originalmente denominado “O passado agrário”, que deu lugar a dois outros: “Herança rural” e “O semeador e o ladrilhador”, num formato que definiu a obra tal como a conhecemos hoje.

    Apesar de seus esforços, Raízes do Brasil continuaria à margem das discussões nativas. À exceção de uma breve polêmica com o escritor Cassiano Ricardo (1895-1974) por conta da interpretação da cordialidade do brasileiro, mais uma vez o livro pouco repercutiu no momento. Talvez porque o próprio Sérgio, em sua resposta a Ricardo, confessasse não se sentir à vontade em esgrimas literárias: “Sou capaz de largá-las ao meio do caminho por impontualidade, por preguiça ou por inépcia”. Porém, o mais provável é que as raízes continuassem amargas para o gosto do período, algo que se estenderia às décadas de 1950 e 1960, mesmo com as reedições de 1956 e 1963.

    A partir de 1969, elas passariam a ser apreciadas de modo completamente diferente, graças à publicação de sua quinta edição, pela José Olympio. Não tanto pelo texto, agora considerado definitivo, e sim pelo prefácio que o acompanhava, assinado por Antonio Candido de Mello e Souza. Professor da Universidade de São Paulo, crítico literário e grande amigo de Sérgio Buarque, Candido já havia apresentado a edição anterior, excepcionalmente lançada pela Editora da Universidade de Brasília, mas agora se mostrava muito mais empenhado em explicar aos leitores “o significado de Raízes do Brasil”, como dizia o título de seu artigo. Com sua clareza característica, a extensa análise se organizava em três partes: a primeira, um exercício de memória com pretensões de testemunho intelectual de uma época; a segunda, um exercício crítico, verdadeira exegese da obra, discutindo capítulo por capítulo; finalmente, a terceira, a síntese da importância do livro, com o balanço de suas inovações metodológicas, teóricas e interpretativas.

    Verdadeiro ensaio sobre o ensaio buarquiano, a exposição de Antonio Candido dissecava com fôlego e com precisão toda a complexidade do livro. E foi como chave privilegiada para a sua leitura e compreensão que ela contribuiu de modo decisivo para uma nova recepção crítica, num momento muito diferente daquele em que surgira, tanto em termos políticos quanto intelectuais. Afinal, o nacionalismo da ditadura militar não era o mesmo da ditadura varguista, nem a crítica de formação universitária seguia os mesmos referenciais pelos quais se orientavam os literatos da primeira metade do século.

    A ponte entre essas duas épocas, que garantia a permanência e a atualidade do texto, não era outra senão a própria geração à qual pertencia o autor do prefácio, como ele mesmo fazia questão de notar logo de saída: “Os homens que estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinquenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado e em função de três livros: Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., publicado quando estávamos na escola superior.”

    Reavaliadas em perspectiva histórica, as raízes até então um tanto indigestas passavam a ser servidas junto a outros pratos, tornando-se mais palatáveis três décadas depois de seu aparecimento. Coincidência ou não, novas edições se sucederam rapidamente daí por diante: somente entre 1971 e 1979 foram publicadas oito, de 1979 a 1987, seis, e nos últimos vinte anos, outras quatorze, incluindo o alentado volume comemorativo de seus 70 anos, lançado em 2006. Mas o encaminhamento da obra para o futuro provocou também a distorção do seu passado. Segundo Antonio Candido, o “êxito de qualidade” de Raízes do Brasil fora imediato “e ele se tornou um clássico de nascença” – afirmação desde então aceita sem crítica.

    Não foi bem assim, já sabemos. O próprio crítico também, já que ele afirmara em seu primeiro prefácio, o de 1963, que o livro, “publicado faz quase trinta anos, atravessou facilmente o período mais transformador dos estudos sociais no Brasil e se tornou um clássico”. Entre “nascer” e “tornar-se” há uma grande diferença, que mostra muito bem como esse processo nada tem de natural. Mas, com esse tempero de Candido, as raízes puderam – e continuam a – ser cada vez mais saboreadas pelos leitores de Sérgio Buarque de Holanda.

    Fábio Franzini é professor da Universidade Federal de São Paulo e autor de À sombra das palmeiras: a coleção Documentos Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936-1959) (Edições Casa de Rui Barbosa, 2010).


    Saiba Mais - Bibliografia

    HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição comemorativa: 70 anos. Org. Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
    MONTEIRO, Pedro Meira e EUGÊNIO, João Kennedy (orgs.). Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.
    MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro. Aventura, cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

    Saiba Mais - Documentário

    “Raízes do Brasil. Uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda”, de Nelson Pereira dos Santos, 2003.