Reescrevendo a História

Karina Ribeiro Caldas

  • Você já teve a impressão de que a História que aprendeu na escola é bem diferente daquela que é contada em livros, filmes, revistas ou programas de televisão? E já se perguntou por que há tantas interpretações para um mesmo fato? Não há dúvida de que aquilo que aprendemos poderá, a qualquer momento, ser questionado pelas novas descobertas científicas, por documentos que acabaram de ser encontrados ou por inovações tecnológicas e teóricas. A situação fica ainda mais patente quando pensamos nos livros didáticos que interpretam os fatos históricos de novas maneiras.

    O material escolar impresso no período que corresponde à Primeira República e à Era Vargas certamente reverenciou personagens e efemérides que tiveram sua importância questionada nos anos que se seguiram. O 7 de Setembro é um exemplo. Desde o início, o episódio da Independência esteve cercado de incertezas e foi alvo de várias disputas políticas. Alguma vez você já se perguntou por que foi escolhida a data de 1822? Para alguns, o 7 de Abril de 1831, dia em que D. Pedro I assinou a abdicação em favor de seu filho, celebra o momento em que o último português ocupou a posição de dirigente da nação. Se o que se pretende é escolher uma data que comemore o nascimento da nação brasileira, por que não escolher o momento em que a presença portuguesa é extirpada definitivamente?

    D. Pedro I decidiu abdicar do trono para disputar o reino português com seu irmão, D. Miguel. Esta escolha, por si só, já seria motivo suficiente para derrubar toda a mitologia construída em torno do herói da Independência, perpetuada com pompas e louros pela literatura didática do início do século XX. A mágoa e o rancor diluídos em livros escolares do período, como os de João Ribeiro e os de Rocha Pombo, e naqueles que Jonatas Serrano escreveu na década de 1940 explicam-se pelas incertezas que voltaram a cercar esse evento histórico.

    A abdicação gerava insegurança pelo fato de a nação estar diante de diversos projetos políticos. De um lado estava o grupo de exaltados, cujas propostas radicais de implantar uma República faziam lembrar o período de independência da América espanhola, que fora marcado por guerras e revoltas. Do outro, havia um príncipe muito jovem (com apenas cinco anos de idade) que, teoricamente, daria continuidade à monarquia e ao projeto de unidade social, impedindo que o Brasil se resumisse a um grupo de pequenas repúblicas independentes. Dessa maneira, quando a literatura didática do começo do século XX relembra o episódio, ela deixa transparecer que, apesar de ter se sentido traída pelo príncipe D. Pedro I, ainda lhe conferia os louros por sua participação no processo de Independência, pela instauração da monarquia e por impedir que o Brasil passasse por experiência semelhante à da América Latina.

    É interessante perceber, nos livros didáticos do início do século passado, que o conjunto de fatos que marcaram o 7 de Abril de 1831 é geralmente apresentado ao leitor como uma revolução. O conceito de revolução pressupõe uma transformação na estrutura de toda uma sociedade, mas esses mesmos manuais relatam o episódio como um fato que surpreendeu a nação, uma vez que se esperava a substituição do ministério que ajudava D. Pedro I a governar, e não a sua saída espontânea. Seria isso uma contradição do texto escolar?

    Quando os vários manuais das três primeiras décadas do século XX são comparados ao livro Na Margem da História: Histórias que não vêm na História (1930), de Francisco de Assis Cintra, encontramos algo, no mínimo, curioso. Enquanto a literatura didática do período é praticamente unânime ao colocar D. Pedro I com papel de destaque no processo de emancipação, Cintra propõe um outro herói para o 7 de Setembro: Joaquim Gonçalves Ledo. Relembrar tal personagem nas décadas de 1930 e 1940 representava, pelo menos, um convite à reflexão sobre um Brasil guiado por princípios diferentes do conservadorismo da época, que já se estruturava desde os anos 1920 e abarcou o Estado Novo de Getulio Vargas, entre 1937 e 1945. Mas para a maioria dos livros de História editados no período, Ledo era apenas o autor do manifesto de 1º de agosto de 1822, que defendia a permanência de D. Pedro I no Rio de Janeiro depois de o então príncipe regente ter declarado, no dia 9 de janeiro, que, ao contrário do que desejavam as Cortes Portuguesas, ele não retornaria a Lisboa – efeméride conhecida como o “Dia do Fico”. Por conta disso, ele estava longe de ser considerado um herói nacional.

    Para que se entenda a importância de Gonçalves Ledo nesse contexto, é preciso ter em mente que, na segunda década do século XIX, havia grupos diferentes com projetos políticos distintos e um objetivo em comum: a independência do Brasil. A situação ficou mais propícia a essa mudança de ares com a chegada de D. João e da família real, fato que elevou a Colônia a Reino Unido. Um desses grupos defendia um governo liberal, com uma monarquia mais democrática. A aristocracia, que era liderada por José Bonifácio e da qual se aproximou o imperador D. Pedro I, tinha uma linha mais conservadora. Os liberais, por sua vez, eram dirigidos por Gonçalves Ledo.

    Político e jornalista influente, Ledo, a partir de 1821, passou a defender suas idéias no jornal Revérbero Constitucional Fluminense, que ele havia fundado com um de seus maiores aliados, Januário da Cunha Barbosa. Na política, ele ocupou o cargo de deputado da província do Rio de Janeiro até 1835. Entre as suas várias reivindicações estava a convocação de uma Assembleia Constituinte, visando um país que estava em vias de se emancipar. Por conta da sua postura liberal, ele logo se tornou grande adversário, na política e na maçonaria, de José Bonifácio de Andrada e Silva. Para Assis Cintra, Gonçalves Ledo estava disposto a fazer qualquer coisa para consumar a independência. Se o príncipe aderisse aos seus planos, o trono lhe seria dado, mas se isso não ocorresse, “a República lhe entregaria o passaporte”. De acordo com a versão do historiador, Ledo teria tomado, se fosse necessário, as rédeas da situação e instaurado de imediato um regime republicano.

    Para a galeria dos personagens da Independência propostos pelos manuais escolares até a década de 1940, podem-se citar nomes como os de Januário da Cunha Barbosa (1822-1831) e José Clemente Pereira (1787-1854) – ambos aliados de Gonçalves Ledo. O primeiro foi um dos mais influentes políticos do Primeiro Reinado, e, além de se notabilizar como historiador, biógrafo e poeta, ajudou a fundar, em 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual posteriormente tornou-se secretário perpétuo. Já Clemente liderou as manifestações populares do Dia do Fico e foi deputado geral, ministro dos Estrangeiros, ministro da Justiça, ministro da Guerra, conselheiro de Estado, ministro da Fazenda e senador do Império do Brasil entre 1842 e 1854.

    A disposição visual com que esses nomes aparecem nos livros escolares do começo do século passado nos dá a impressão de que formam uma galeria de heróis, ordenados por grau de importância e catalogados como em um museu. Para outros autores, sua importância foi ressaltada apenas em notas de rodapé. Como herói das nossas origens e por ter sido muito radical em suas convicções republicanas, o personagem de Gonçalves Ledo acabou não acumulando força dramática suficiente para se destacar em outros enredos. Ele aparece, age, mas não provoca adesão.

    O Império, como organização política, e mesmo em termos de história e legado, tinha muito mais tradição, em 67 anos de existência, do que a recém-nascida República. Ou seja, era melhor seguir os passos de quem já trilhou um caminho do que se arriscar no desconhecido e pôr em perigo o projeto de unidade nacional, conseguido à base de um empreendimento centralizador. É por essas e outras razões que Gonçalves Ledo não consegue o papel de protagonista no drama da Independência.

    É preciso compreender que todas as sociedades carecem de símbolos de poder, os quais não se estabelecem apenas pela imposição unilateral. O que hoje se apresenta para a crítica histórica como algo épico perdurou porque conseguiu fornecer uma perspectiva otimista de nossas origens, aproximando-nos dos padrões europeus de progresso, modernidade e civilização. Os livros didáticos contribuíram decisivamente para isso, formando identidades, valores, ideias, conceitos e preconceitos. Mas é errado considerar os leitores como sujeitos passivos. Há de se criar condições para que eles possam interpretar os fatos. Para isso, é fundamental que as histórias que são escritas à margem da História oficial nunca sejam esquecidas. Os manuais escolares não devem fazer com que estudantes e estudiosos sejam apenas espectadores, mas também protagonistas investigadores.

    Karina Ribeiro Caldas é professora da Secretaria Estadual de Educação de Goiás, da Rede Municipal de Ensino de Goiânia e autora da dissertação “Nação, Memória e História: a formação da tradição nos manuais escolares (1900-1922)” (UFG, 2005).


    Saiba Mais - Bibliografia

    BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Contexto, 2005.

    CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da república do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

    FONSECA, Thaís Nívia de Lima. História e ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

    SANDES, Noé Freire. A invenção da nação: entre a monarquia e a república. Goiânia: Cegraf, 2000.