Em pleno verão de 1883, o Rio de Janeiro era sacudido por uma série de eventos culturais. Ali, no Teatro Politeama, eram realizadas homenagens a Camões, execuções de “O Guarani”, ópera de Carlos Gomes, representações dramáticas, leituras de versos e até mesmo um inusitado show de tango. Tudo organizado e abrilhantado por jovens integrantes da geração 1870.
À primeira vista, pareciam ser jovens intelectuais entretidos com a cultura e com divagações sobre as novas doutrinas do progresso social em moda na Europa, especialmente as de August Comte e Herbert Spencer, que apregoavam o desaparecimento do mundo aristocrático e católico e a emergência de uma sociedade industrial regida pela ciência. Envolvidos nesses debates, não teriam conseguido enxergar graves problemas brasileiros que estavam ali ao lado. A escravidão, por exemplo.
Este é o diagnóstico mais corriqueiro formulado por estudiosos do período. No entanto, esta visão não permite perceber a crítica política que a maioria das atividades culturais desse tempo continha. Olhando para essa efervescência “intelectual” do ponto de vista da agenda política, é possível afirmar que o evento no Politeama foi, principalmente, uma grande manifestação abolicionista. Afinal, no Brasil oitocentista não havia uma demarcação clara entre vida intelectual e política. Assim como não havia essa demarcação nas atividades desses grupos ligados à geração 1870, sempre revestidas desse duplo caráter. Por isso, para entendê-la é preciso considerar o contexto em que apareceram.
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Nos anos 1870, os dois partidos monárquicos, o Liberal e o Conservador,cindiram-se por não conseguirem chegar a um acordo sobre o ritmo e a maneira de levar a cabo duas reformas tidas pela maioria dos políticos como fundamentais: a transição do trabalho escravo para o livre e uma reforma política para ampliar a representação das minorias. Enfezados com a lentidão e a ineficácia das sucessivas reformas eleitorais, membros de uma facção liberal radicalizou, fundando um Partido Republicano. De outra parte, uma ala do Partido Conservador iniciou um programa de modernização econômica que pôs a escravidão na agenda política, suscitando a grita dos conservadores "emperrados". Vários deles vieram a público defender a tradição imperial: a restrição da cidadania aos proprietários de terras; a imagem da identidade nacional como fusão de portugueses e índios e a manutenção da hierarquia social como expressão direta da vontade divina.
Essa crise foi, portanto, crucial para a formação do movimento reformista da geração 1870. A existência do Partido Republicano sinalizou aos grupos marginalizados pelos partidos oficiais a possibilidade de expressão independente na arena política. A reforma modernizadora do Partido Conservador proporcionou os meios ao baratear os custos para a organização de jornais independentes, que se constituíram em espaço público paralelo à vida parlamentar. Abriu, ainda, o ensino superior para jovens de fora da elite, franqueando-lhes, assim, o acesso ao debate público. Por fim, os princípios tácitos da tradição imperial, uma vez enunciados, converteram-se em temas de debate público. A crise, em suma, constituiu um pequeno espaço público no Brasil, aumentando o número de participantes do debate político e consolidando uma agenda comum de temas e problemas.
Estas condições propiciaram a expressão coletiva de membros da geração 1870 total ou parcialmente marginalizados pelas regras aristocráticas de distribuição de bens e recursos e pelas formas de representação política. Profissionais liberais urbanos, bacharéis em Direito e políticos de carreira, sem vínculo com a agrolavoura, compuseram o grupo de Liberais Republicanos liderados por Quintino Bocaiúva (1836-1912), que reclamavam da falta de oportunidades de carreira para os nascidos fora da elite. Já os Novos Liberais vinham de famílias da elite vinculadas ao Partido Liberal e em situação de decadência econômica, caso de Joaquim Nabuco (1849-1910) e de André Rebouças (1838-1898). Embora conseguissem empregos e favores por meio da corte do imperador, reclamavam de sua posição secundária no sistema político, controlado pelo Partido Conservador.
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Em situação mais difícil estavam os Positivistas Abolicionistas da Corte, de Recife e de São Paulo, jovens de famílias socialmente estagnadas e politicamente desconectadas _ caso de Miguel Lemos (1854-1917) _ , ou mesmo sem qualquer vínculo com a elite imperial, como Antonio da Silva Jardim (1860-1891). Esses jovens vinham ascendendo graças à reforma educacional, mas ainda viam suas carreiras limitadas, uma vez que o mérito era sempre suplantado por um bom nome de família nos concursos públicos.
Havia, por fim, dois grupos distantes do cerne do mundo monárquico, sem conexões sociais com a corte do imperador nem ligações políticas com os partidos oficiais, e tampouco vínculos econômicos com a lavoura de café do Vale do Paraíba. Os Federalistas Positivistas do Rio Grande do Sul eram bacharéis em Direito, de famílias de estancieiros independentes, vivendo à margem da economia nacional, como Júlio de Castilhos (1860-1903). Já os Federalistas Científicos de São Paulo eram profissionais liberais urbanos e bacharéis em Direito vinculados à nova economia do café da província, como Luiz Pereira Barreto (1840-1923) e Alberto Sales (1857-1904). Esses grupos provinciais reclamavam do sistema de deliberação política, que os alijava, e da morosidade da modernização econômica, que atrapalhava seus negócios.
Os grupos eram diferentes entre si no tocante a profissão, origem regional e extração social. Em comum tinham a marginalização _ em diferentes graus _ em relação às principais posições de poder político do império. Temos bons exemplos em Bocaiúva, Nabuco, Castilhos, Barreto e Silva Jardim, que viram suas candidaturas a deputado malograrem por não terem padrinhos políticos que os bancassem.
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A marginalização política deu aos grupos um antagonista comum: o status quo imperial. Para externar sua insatisfação, buscaram espaços de protesto na nova imprensa e procuraram doutrinas que os ajudassem a criticar a situação desvantajosa que vivenciavam e que legitimassem seus anseios de mudança de maneira alternativa à tradição imperial.
Foi por essa razão que esses membros da geração 1870, esses jovens contestadores, passaram a incorporar seletivamente idéias e formas de ação estrangeiras. O amplo leque de doutrinas disponíveis _ especialmente os diversos evolucionismos _ foi visto como um farto repertório, do qual recolheram conceitos, argumentos e explicações capazes de atender às suas necessidades práticas, sem se preocuparem com a consistência teórica desses elementos entre si. Interessaram-se mais por escritos de políticos e de doutrinadores sociais do que por grandes teóricos. E privilegiaram duas grandes matrizes. Da “política científica” francesa _ idéias disseminadas numa ampla gama de autores _, tomaram uma teoria evolucionista da história, organizando as sociedades numa escala de desenvolvimento econômico; complexidade social; secularização; expansão da participação política, e uma teoria da mudança política, recomendando a racionalização das tarefas político-administrativas e a delegação do poder político a uma elite ilustrada.
Dos escritos da geração 1870 portuguesa, especialmente de Teófilo Braga e Oliveira Martins, eles adotaram uma especificação desses processos abstratos: o Brasil estaria vivendo uma crise de decadência, a desagregação da ordem sociopolítica colonial. Houve também uma recuperação seletiva da própria tradição política e intelectual brasileira. Dessa maneira, foi incorporada a retórica inflamada dos panfletos políticos da Regência e retomados, como manifestações autênticas da nação, personagens (Frei Caneca e Tiradentes) e eventos (a Praieira) expurgados da história oficial do Segundo Reinado.
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Foram essas as fontes incorporadas pelos contestadores para discutir os temas quentes da agenda política. Em seus livros, panfletos, opúsculos e artigos de jornal, enunciaram um mesmo esquema interpretativo. Reinterpretaram os processos de formação do Estado e da nação brasileiros, identificando seus fundamentos socioeconômicos e suas instituições políticas como herança colonial.
O Brasil estaria vivendo a crise de decadência de pelo menos um dos dois principais legados coloniais: o complexo econômico baseado na tríade latifúndio-monocultura-escravidão e o caráter estamental das instituições políticas imperiais. Essa causa profunda da crise teria viciado as demais dimensões da vida social: instituições; hierarquia social e racial; cidadania; relação Igreja/Estado; definição da identidade nacional; relação público/privado. Daí sua incompatibilidade com o progresso e a civilização moderna.
Assim, os livros se uniam clamando por um imediato e amplo programa modernizador: a reforma das instituições políticas (fim dos cargos políticos vitalícios; independência do Poder Judiciário; ampliação da representação política; federalismo); a reforma do Estado (descentralização político-administrativa e tributária e liberalismo econômico); a secularização das instituições (sobretudo a separação Igreja/Estado); a universalização de direitos civis (fim da escravidão); políticos (voto universal masculino) e (para parte dos grupos) sociais.
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Eram estes, portanto, os assuntos de obras como A Questão Social (1879), de Quintino Bocaiúva; O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco; Apontamentos para a Solução do Problema Social no Brasil (1880), de Teixeira Mendes, Anibal Falcão e Teixeira de Souza; A Pátria Paulista (1887), de Alberto Sales; A República Federal (1881), de Assis Brasil.
Havia, de fato, variações de ênfase em determinadas temáticas, de acordo com os grupos. Os Novos Liberais e os Positivistas Abolicionistas priorizavam as reformas sociais, enquanto as políticas eram sublinhadas pelos Liberais Republicanos, Federalistas Científicos de São Paulo e Federalistas Positivistas do Rio Grande do Sul. Entretanto, o sentido geral dos escritos da geração 1870 era a contestação dos valores e das instituições da ordem imperial e a proposição de reformas estruturais, especialmente a modernização econômica e a liberalização política. Por conta desta ênfase nas reformas é que chamei o movimento de “reformismo”.
O reformismo não fez apenas a crítica teórica ao status quo imperial. Também orquestrou mobilizações coletivas de protesto contra ele. Foi, pois, um movimento político de contestação. Para isso, buscou formas alternativas de associação política e de manifestação, adotando do repertório estrangeiro não só esquemas de pensamento, mas também estratégias de ação política. Sua inspiração veio de outros tantos movimentos ocidentais pró-reformas: o abolicionismo norte-americano, o movimento pró-reformas eleitorais na Inglaterra, os republicanismos francês e português.
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Naquele tempo, os meetings (os comícios modernos) estavam se consolidando como meio de propaganda política. Os reformistas os usaram largamente, sobretudo em defesa da abolição e da República. Do mesmo modo, as passeatas e as viagens de campanha se tornaram instrumentos constantes de contestação. Silva Jardim, por exemplo, seguiu o príncipe consorte, Conde D'eu, em seu périplo pelo Norte do país, propagandeando a República. Também aderiram ao uso político de eventos culturais, como saraus e espetáculos, e sociais _ banquetes, jantares e bailes, nos quais freqüentemente havia arrecadação de fundos e chuvas de flores.
O reformismo também recuperou formas de ação da tradição brasileira, como a proliferação de clubes e associações e o lançamento de manifestos e de pequenos jornais, que tinham feito o fulgor da Regência. Todos os grupos lançaram manifestos em favor das reformas pleiteadas: a abolição, a República, a secularização dos cemitérios, a laicização do ensino, a extensão do voto. As associações e os jornais pipocavam, efêmeros.
Eram iniciativas simultâneas que os grupos abandonavam para logo criarem outras formas de ação com novos nomes, dando a impressão de grande volume. Assim, por exemplo, formavam-se clubes em torno de candidaturas eleitorais _ como o Joaquim Nabuco e o Rui Barbosa _, que em seguida desapareciam, porque seus membros iam compor novas associações. O mesmo vale para os jornais, que contavam com um ou dois redatores e, às vezes, o mesmo número de edições. Em 1883, havia 464 deles.
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Essas formas variadas de ação deram às atividades dos grupos da geração 1870 a feição de um movimento político. Isto fica claro na conexão entre os eventos por ele organizados: todos parte de uma grande contestação às bases sociais e às instituições políticas do império, que alimentou duas grandes campanhas: o abolicionismo e o republicanismo. Este caráter de movimento político fica evidente nas disputas eleitorais. Em 1884, quando um gabinete liberal chegou ao poder com um programa de abolição gradual da escravidão, todos os grupos reformistas se uniram em sua defesa, organizando manifestações de apoio por todo o país e lançando uma coligação de candidaturas ao Parlamento.
No entanto, o reformismo não chegou a se consolidar como um partido político,tendo sempre a forma de coalizões momentâneas em torno da questão mais oportuna da agenda parlamentar. Seu principal eixo agregador era a reforma social, a abolição da escravidão. Com a assinatura da Lei Áurea em 1888, o movimento se pulverizou e, entre 1888 e 1889, os grupos passaram a disputar entre si a condução da outra grande reforma, a política, dividindo-se em monarquistas e republicanos.
Embora não seja possível afirmar que o movimento reformista tenha liderado o golpe republicano, alguns de seus membros participaram diretamente do golpe de estado que derrubou o império em 1889. A República também incorporou bandeiras do reformismo, como a laicização do Estado e o federalismo, e ,ainda, alguns de seus membros, caso de Campos Sales, que chegou à presidência da República. Entretanto, como movimento, o reformismo foi mais importante na derrocada dos grandes pilares da sociedade imperial brasileira, a monarquia e a escravidão, do que na formação das novas instituições republicanas.
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O caráter contestador do movimento tinha, porém, um limite: o reformismo passou ao largo de qualquer projeto revolucionário, optando sempre pela mudança controlada e apontando seus próprios integrantes como a nova elite político-intelectual capaz de completar os processos de construção do Estado e da nação, e de modernização da sociedade nacional. Esta inclinação para um elitismo benevolente é, contraditoriamente, a marca de continuidade do reformismo em relação ao status quo imperial e seu principal legado à tradição política brasileira.
Angela Alonso é professora do Departamento de Sociologia da USP, onde concluiu mestrado e doutorado, pesquisadora do Cebrap e do Development Research Centre on Citizenship (Universidade de Sussex, Inglaterra) e autora de Idéias em Movimento: a Geração 1870 na Crise do Brasil-Império (Paz & Terra, 2002), trabalho pelo qual recebeu o prêmio de melhor tese de doutorado no I Concurso CNPq/Anpocs, em 2000.
Reforma sem revolução
Angela Alonso