Registros da liberdade

José Murilo de Carvalho

  • A batalha final contra a escravidão no Brasil travou-se no Congresso e durou seis dias, de 8 a 13 de maio de 1888. O Legislativo agiu sob intensa pressão da população, quase sitiado em suas duas casas. Essa mesma população estendeu os festejos até 20 de maio. Foram treze dias que testemunharam o mais importante acontecimento da história do Brasil independente. Escreveu-se muito sobre o que aconteceu, mas, diante da grandeza do evento, mesmo levando-se em conta as precárias condições técnicas da época, são modestos os registros fotográficos que chegaram até os dias de hoje. Mas as imagens existem, e seu número continua a aumentar.

    O Parlamento iniciou o terceiro ano da 20ª Legislatura da Assembleia Geral no dia 3 de maio, no prédio do Senado, que desde 1826 funcionava no palácio do conde da Barca, no Campo de Santana. Antônio Cândido da Cruz Machado, visconde de Serro Frio e senador por Minas Gerais, presidia a Câmara alta. A Câmara dos Deputados, que funcionava no prédio da antiga Cadeia Velha, era dirigida pelo pernambucano Henrique Pereira de Lucena. A sessão foi aberta pela princesa Isabel. Sabendo de seus propósitos abolicionistas, o povo a aclamou nas ruas, de São Cristóvão até o Senado, de cujas galerias superlotadas caiu sobre ela uma chuva de rosas.  A leitura da Fala do Trono foi recebida com uma “estrondosa salva de palmas”, vinda dos que estavam dentro e ao redor do prédio. Ao final da sessão, de uma das janelas, o deputado Joaquim Nabuco (1849-1910) falou para a multidão que se aglomerava do lado de fora.

    Quatro dias depois, João Alfredo, que presidia o Conselho de Ministros, apresentou-se às Câmaras anunciando o propósito de promover “a extinção imediata e incondicional da escravidão no Brasil”. Nabuco exortou os parlamentares a esquecerem as disputas partidárias diante da magnitude do tema, pois uma nova pátria se inaugurava. No dia seguinte, debaixo de aclamações das galerias, o governo apresentou à Câmara o projeto de abolição composto de dois artigos. Segundo o abolicionista André Rebouças (1838-1898), cinco mil pessoas cercavam o prédio. Outra testemunha ocular, o rábula Evaristo de Moraes (1871-1939), registrou que a Câmara estava sitiada pela massa popular. Os aplausos no interior do prédio repercutiam imediatamente do lado de fora.

    Devido à pressão dos deputados abolicionistas, foi adotado o regime de urgência para a votação e, com isso, foram dispensadas as exigências regimentais. Andrade Figueira, deputado pela província do Rio de Janeiro, que não era fazendeiro nem proprietário de escravos, discursou longamente, expondo as razões que o levavam a ser contra o projeto. No dia 9, o projeto foi aprovado por 83 votos a nove – 33 deputados não compareceram à votação. Dos nove opositores, oito eram representantes da província do Rio de Janeiro e o nono era pernambucano. O povo invadiu o recinto abraçando os deputados e atirando flores. Andrade Figueira permaneceu impassível em sua cadeira. Ramalhetes voaram em sua direção. O projeto ainda passou por uma terceira votação no feriado religioso do dia 10, antes de seguir para o Senado. 

    Lá, o conselheiro Dantas assumiu, logo no dia seguinte, a defesa da proposta, enfrentando a oposição do barão de Cotegipe e de Paulino José Soares de Sousa. A tramitação foi tão rápida quanto na Câmara: no dia 12, o projeto foi aprovado em segunda votação por 46 votos a seis, e foi registrada a ausência de apenas oito senadores. Uma terceira votação ainda foi feita no dia 13. Nesse dia, Nabuco anotou em seu diário: “O povo em delírio no Senado”. Avisada, Isabel desceu de Petrópolis e marcou para as três da tarde, no Paço da Cidade, a recepção da comissão do Senado que lhe entregaria os autógrafos da lei. Era domingo, e a multidão acompanhou os líderes da campanha pelas ruas até o palácio, carregando-os nos ombros e parando em frente às redações dos jornais abolicionistas – como O Paiz, de Quintino Bocaiúva, a Gazeta da Tarde, de Ferreira de Menezes, e A Cidade do Rio, de José do Patrocínio. Este último, ao ser carregado em triunfo pelos manifestantes, ouviu de um amigo: “Que belo dia para morreres, Patrocínio!”Anos mais tarde, em 14 de maio de 1893, Machado de Assis escreveu na Gazeta de Notícias: “Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto”.

    No Paço, houve cenas quase patéticas, como a que foi protagonizada pelo mesmo Patrocínio, que se atirou aos pés da regente para lhe agradecer a assinatura da lei. Do lado de fora, a multidão, que Evaristo de Moraes estimou em mais de cinco mil pessoas, aguardava o anúncio da assinatura, que foi feito por Nabuco de uma das sacadas do palácio. Seguiram-se inúmeras celebrações no Rio e em Petrópolis que duraram até o dia 20, quando houve a “marcha cívica geral”, que uniu todas as sociedades do Rio. Rebouças foi ovacionado por seus alunos da Politécnica no dia 15 e carregado ao longo do pátio interno do edifício do Largo de São Francisco. No dia 17, houve uma missa campal na Praça D. Pedro I (Campo de São Cristóvão), e no dia seguinte foi realizada uma procissão cívica das escolas públicas.

    Até agora, foram descobertas e identificadas vinte e cinco fotos referentes a todos esses acontecimentos. Quinze delas, de autoria de Antônio Luiz Ferreira, foram localizadas por Pedro e Bia Correa do Lago na Coleção Princesa Isabel e publicadas em 2008. Essa coleção ainda contém outros nove registros das festas que celebraram a Abolição: três de Augusto Elias, três de A. Breton, um de Lindemann, um de Luiz Stigaard e um de Marc Ferrez. Todos eles – com exceção de dois – se referem aos acontecimentos no Rio de Janeiro. O de Lindemann ilustra as celebrações em Penedo (Alagoas). Muito curioso e interessante é o de Stigaard, feito no povoado de D. Isabel, onde hoje fica a cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Nele vemos dezenas de imigrantes, alinhados em uma rua sem calçamento, festejando o fim da escravidão. Marc Ferrez era fotógrafo da Marinha Imperial e registrou a festa no Clube Naval. Por fim, Augusto Elias e A. Breton captaram a comemoração nas ruas do Rio.

    Mas, dentre todas as imagens feitas nesses dias de festa, as mais representativas são as que fazem parte da série de Antônio Luiz Ferreira, que foram por ele ofertadas à princesa Isabel. Algumas delas são bem conhecidas, como as que mostram a missa no Campo de São Cristóvão e o povo diante do Paço da Cidade à espera da assinatura da lei. Outras, no entanto, só vieram à tona recentemente, como a da multidão em frente ao Paço depois da assinatura da lei – aglomeração muito mais densa do que a mostrada naquela que registra o momento anterior à assinatura. Mas a grande novidade é a foto da sessão da Câmara do dia 10, em que foi aprovada a lei. É um documento precioso e raríssimo, de que só se conhecia a cópia existente na Casa de Rui Barbosa, e ao qual agora se dá ampla divulgação. A foto mostra um plenário cheio e atento, tribunas e galerias apinhadas, confirmando os testemunhos oculares de Nabuco, Rebouças e Evaristo de Moraes. 

    Mesmo não se tratando de uma fotografia, vale a pena mencionar, pela raridade, o quadro do pintor Zeferino da Costa, de propriedade da família Nabuco, que retrata a sessão de 10 de maio na Câmara. Certamente encomendado, o quadro mostra Joaquim Nabuco fazendo o que Rebouças chamou de “o mais lindo discurso”. Dúvidas quanto à localização da foto de Ferreira – se na Câmara, se no Senado – são eliminadas por este quadro, que mostra o mesmo salão.  

     

    José Murilo de Carvalhoé professor aposentado da UFRJ e autor de Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi (Companhia das Letras, 1987).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    LAGO, Pedro e Bia Correa do. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de Janeiro: Capivara, 2008.

    MORAES, Evaristo de. A campanha abolicionista (1879-1888). Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1924.

    NABUCO, Joaquim. Diários. Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi; Recife: Massangana, 2005.

    REBOUÇAS, André. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.