Famoso personagem de Machado de Assis, o Conselheiro Ayres dizia que “as coisas só são previsíveis quando já aconteceram”. Se a frase espirituosa carrega alguma verdade, ela estaria em anunciar que, com frequência, o acaso se transforma em certeza e premeditação.
A máxima iluminaria várias situações presentes em nosso calendário pátrio e cívico, mas é ainda mais direta quando se trata da Independência do Brasil, em 1822. O que foi um jogo político, uma maquinação das elites centradas no Rio de Janeiro, restou na memória nacional como conta de dois mais dois; resultado certo e sem contestação. O fato é que, diferentemente do que determinam certas interpretações históricas oficiais, a emancipação monárquica não se apresentava como a única saída; existiam outras, guardadas em bolsos distintos.
Comparado ao restante da América, o modelo defendido para o Brasil era uma exceção em meio a um contexto marcado pela Doutrina Monroe, enunciada pelo presidente dos Estados Unidos, James Monroe (1758-1831), que defendia “a América para os americanos”, opondo-se ao colonialismo europeu e a favor dos regimes republicanos. A “via brasileira” implicou um movimento conservador, que evitou medidas radicais que provocassem convulsões ou abalassem pilares estáveis, como o latifúndio monocultor e a mão de obra escrava.É certo que não existe História do “se”, mas é sempre possível refletir sobre como se “naturalizam” certos destinos. As representações pictóricas de acontecimentos históricos, por exemplo, evidenciam as estratégias para fazer parecer natural o que não passa de escolha política. Toda tela relê, traduz e sugere significados, ainda mais quando se trata de pinturas históricas financiadas pelos próprios governantes. É este o caso da obra “Proclamação da Independência”, de autoria de François-René Moreaux (hoje pertencente ao Museu Imperial, em Petrópolis, no Rio de Janeiro). O quadro não foi realizado no calor da hora. Tampouco resultou da observação direta. Ao contrário, foi pintado em 1844, fato atestado pela assinatura e pela data na tela.
Moreaux nasceu em 1807 em Rocroy, na França, e se especializou como pintor de História e de paisagismo. Os dois gêneros eram bastante estimados na Academia de Artes francesa. Conviviam de maneira até harmoniosa no contexto do século XIX, marcado pelo romantismo e pela exaltação das particularidades nacionais. O gênero de História era considerado moralmente mais elevado, uma vez que retornava às virtudes clássicas e se dedicava a temas nobres. Contudo, a paisagem e os álbuns pitorescos entravam em voga. A viagem transformava-se numa saída para o europeu em busca de novos repertórios artísticos, sociais e culturais. A paisagem brasileira exótica servia, portanto, como grande chamariz.
A trajetória de Moreaux seria semelhante à de outros pintores franceses que, a exemplo da colônia de artistas que chegou ao Brasil em 1816, viram nesse país tropical a oportunidade de “fazer a América” e conseguir algum dinheiro, mas também de ampliar perspectivas e paisagens. O país tinha fama de ser um paraíso natural, e de, por conta do sistema monárquico, guardar certa calma, sobretudo diante da “anarquia” reinante entre os vizinhos latino-americanos. Por outro lado, a posição de “pintor da Corte” era conhecida e estimada. Não poucos estrangeiros engalfinharam-se para conseguir tal honraria e distinção, mesmo nessa monarquia tropical.
O pintor chega ao Brasil em 1838, junto com seu irmão Luís Augusto, no ano de fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e no contexto final da revolta da Sabinada na Bahia. Moreaux se estabelece primeiro na província de Pernambuco, depois se instala na Bahia, e em 1841 chega finalmente ao Rio de Janeiro, destino de boa parte dos artistas estrangeiros que aportavam no país. Na Corte teriam mais chance de se capitalizar e até de se transformar em pintores da Casa Imperial.
Nesse mesmo ano, o artista teria a oportunidade de assistir ao ritual de Sagração e Coroação de D. Pedro II, famoso pela pompa e ostentação. De 1841 a 1844, o artista testemunharia as estratégias do Segundo Reinado para se enraizar e garantir certa unidade. Em 1842, é assinado na Itália o casamento do imperador com Teresa Cristina de Nápoles. Em 1843 se dá o matrimônio, no Rio de Janeiro, de D. Francisca, irmã de D. Pedro, com o príncipe de Joinville (François d’Orléans). A chegada da imperatriz Teresa Cristina ocorreria no mesmo ano. Em 1844, D. Januária, outra irmã de D. Pedro, passa a assinar como esposa do conde D’Aquila: um Bourbon das Duas Sicílias e irmão de Teresa Cristina. A monarquia brasileira tornava, assim, mais sólidos os vínculos com as demais realezas europeias e se tingia de ocidental, a despeito de reinar num país de mestiços.
A tela de Moreaux representa o exato momento em que o príncipe D. Pedro I proclama a Independência do Brasil. Tal qual uma estátua equestre, imóvel no gesto que procura dar imortalidade ao acontecimento datado, o futuro imperador, com a mão direita erguida, segura e agita o seu chapéu bicorne. O artista joga luz em D. Pedro e em seu cavalo, elevando ligeiramente a real figura, com o objetivo de destacá-la das demais. Ao fundo estariam os bosques que margeiam o Rio Ipiranga. No entanto, a obra deve muito mais à imaginação do que à realidade. Era fato que as pinturas acadêmicas deveriam inspirar moralmente mais do que pretender retratar a realidade objetivamente.
Mas, neste caso, o modo idealizado como a cena é retratada é quase constrangedor. O ambiente pouco se parece com o Brasil, não fossem as poucas palmeiras devidamente sombreadas no fundo da tela. A luminosidade do céu é também bastante rebaixada, a exemplo de outros pintores de formação acadêmica e de origem francesa, que manifestavam igual dificuldade em retratar o azul luminoso dos trópicos.
A população que rodeia D. Pedro I também contribui para o aspecto idealizado do quadro. Os elementos do Exército assemelham-se a estátuas, imóveis, enquanto o povo movimenta-se muito: os figurantes congratulam-se, acenam, trocam abraços, correm... sempre de forma a saudar o ato memorável de D. Pedro.
Não há negros, e muito menos indígenas, na representação pretensamente às margens do Ipiranga. Os outros personagens que compõem a cena – um menino que corre, as mulheres com seus véus negros a cobrirem os ombros, homens com bombachas e meninas com saias abauladas – assemelham-se à população rural da Europa devidamente transposta para os trópicos por Moreaux.
Com o intuito de evitar a imagem de um Império escravocrata, os cativos ficaram afastados da pintura. Também não seria possível enfatizar a ideia de um monarca “civilizado” se este aparecesse cercado de mestiços e de negros. É possível reconhecer na representação um país branco, até italiano, à semelhança dos casamentos reais promovidos pela monarquia brasileira.
No máximo, vislumbra-se um personagem um pouco moreno, que mais parece um gaúcho, ou algum tipo inspirado nos pampas argentinos, como se a representação perdesse qualquer contorno geográfico. Ao contrário, a fronteira nos parece plenamente imaginária. Os demais circundantes, sobretudo aqueles iluminados pela luz forte que o artista joga no quadro, são brancos em seus cabelos, nas cores, roupas e costumes.
A tela parece ter sido coroada de êxito. Após apresentá-la à família imperial, Moreaux se aproximaria definitivamente da Corte, e por conta de seu quadro “Coroação de S.M. o Sr. D. Pedro II” seria contemplado com o hábito de Cristo.
Diz o crítico de arte Michael Baxandall que o artista faz seu público, mas o público também faz seus artistas. Moreaux expressou visualmente, para uma população majoritariamente iletrada, a versão que as elites cariocas tinham e difundiam acerca da nossa emancipação e de nosso Império. A tela resumia as aspirações de civilização e os prognósticos de uma monarquia segura em seus destinos. Nada mais reconfortante para um império cercado de repúblicas por todos os lados: um rei branco de olhos azuis, líder de uma população negra e mestiça, devidamente camuflada. Diz o historiador Evaldo Cabral de Mello que a História é como a casa do senhor; tem muitas portas e janelas. No caso dessa tela, porém, fechavam-se todas as janelas, e só uma entrada era permitida ou mantida aberta.Afinal, tínhamos na pintura um rei altivo e destacado de seus súditos, imóvel e imortalizado, como um bom monarca seguro de si e de seu império.
Lilia Moritz Schwarcz é professora de Antropologia da Universidade de São Paulo e autora de O sol do Brasil (Companhia das Letras, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
BOIME, Albert. The Academy and French painting in the nineteenth century. Londres: Phaidon, 1971.
CAMPOFIORITO, Quirino. História da pintura brasileira no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1983.
FRIEDLANDER, Walter. De David a Delacroix. São Paulo: Cosac&Naify, 2003.
Reino da imaginação
Lilia Schwarcz