Relação abaixo de zero

Rosana Barbosa

  • Selma Cherin tinha 23 anos quando chegou ao Brasil, em 1896, com um grupo de canadenses recrutados em Montreal para trabalhar nas fazendas de café paulistas. Enquanto esperava por uma oferta de emprego na Hospedaria dos Imigrantes, no bairro do Brás, Selma foi rejeitada pelo sistema de colonização. O motivo: seu marido, Joseph, havia morrido durante a viagem, e um dos requisitos para a colocação dos imigrantes no campo era que viessem em família. Não se sabe o que aconteceu com Selma depois disso. Não há documentos que registrem seu retorno à terra natal. Se ela permaneceu aqui, foi por conta própria.

    Desde o século XIX, diversos eventos aproximaram as histórias do Brasil e do Canadá, mas a maioria deles são relatos incompletos, como o caso de Selma. Sabe-se muito pouco desses episódios, mesmo quando envolvem figuras públicas notórias ou relações políticas e comerciais bastante curiosas.

    O Brasil Colônia já desfrutava uma iguaria importada das águas do Atlântico Norte. Quantidades consideráveis de bacalhau eram trazidas de Nova Escócia, Newfoundland e Quebec – colônias que mais tarde integrariam o mesmo país –, abastecendo engenhos de açúcar e áreas de mineração. O produto canadense continuou em nossas mesas depois da independência de cá (1822) e de lá (1867), até o início do século XX, quando o Brasil começa a preferir um bacalhau de melhor qualidade, importado de outras regiões.

    Por muito tempo, o nobre peixe foi praticamente pauta única no comércio entre os dois países. No século XIX, nosso café e nosso tabaco eram comprados apenas pela colônia de Nova Escócia, enquanto adquiríamos madeira canadense. Em 1866, prestes a se declarar independente, o Canadá decidiu enviar uma missão comercial, com representantes de várias colônias, para visitar alguns países das Américas. Depois de passar por Cuba, Haiti e Porto Rico, a delegação chegou ao Brasil para uma estada de cinco semanas. A proposta era estabelecer uma troca direta: eles comprariam produtos como café, açúcar, tabaco e borracha, e nos venderiam farinha, peixe e mais madeira. O Canadá também se julgava preparado para suprir nosso mercado com um produto até então importado dos Estados Unidos: gelo natural! Esse era transportado nos porões dos navios e poderia ser usado para a produção de sorvetes, o que era uma novidade em meados do século XIX.

    A boa receptividade demonstrada por D. Pedro e pela imperatriz Teresa Cristina deixou os visitantes animados. Amante das viagens e do conhecimento científico, o monarca deve ter surpreendido a comitiva ao mostrar tanto interesse por aquele país distante, enchendo-a de perguntas sobre o clima, a agricultura, as estradas de ferro, o comércio e o que mais lhe ocorreu. De volta ao Canadá, a comissão apresentou um relatório ao Parlamento, mas a visita não rendeu qualquer acordo. A conclusão foi de que o mercado canadense era muito pequeno para justificar um comércio direto com o Brasil.

    No ano seguinte, com o British North America Act, as províncias de Ontário, Quebec, Nova Escócia e Nova Brunswick se uniram na Confederação Canadense e passaram a ter certa autonomia, como um primeiro-ministro próprio e outras instituições: era um primeiro passo rumo à independência do Reino Unido.  

    Dez anos depois, D. Pedro teve a chance de conhecer pessoalmente as frias terras ao Norte da América, ainda que brevemente. Em 1876, depois de visitar os Estados Unidos e antes de se dirigir para a Europa, ele passou pelo Canadá. A chegada de um imperador causou certo frisson naquela jovem República. “Em poucos minutos, duzentas pessoas haviam se amontoado junto ao vagão. Os retardatários subiam sobre carros e caminhões para melhor poderem ver. Os mais afoitos esborrachavam o nariz de encontro à janela do compartimento para inspecionar-lhe o interior. A curiosidade da massa popular foi motivo de grande divertimento para o casal de imperadores”, narrou O Jornal, do Rio de Janeiro, num artigo de 1944, escrito pelo embaixador canadense no Brasil, lembrando a histórica visita.

    D. Pedro cruzou a fronteira canadense no dia 4 de junho, nas famosas cataratas do Niágara. No dia seguinte, partiu de trem para as cidades de Hamilton e Kingston, em Ontário. Dali embarcou no navio Spartan em direção a Montreal, de onde pretendia seguir para Quebec. Mas teve que interromper a viagem na metade. O estado de saúde precário da imperatriz o fez voltar aos Estados Unidos, provavelmente para D. Teresa Cristina descansar, à espera da inauguração da Exposição Universal na Filadélfia, a ser realizada pelo imperador junto com o presidente Ulysses Grant no dia 4 de julho, celebrando o centenário da independência americana.

    Aparentemente, não houve relação entre os dois fatos, mas é curioso que, no mesmo ano da visita de D. Pedro, tenha ocorrido uma tentativa de colonização canadense na província do Pará. Recrutado pelo cônsul brasileiro em Nova York, um grupo de trabalhadores daquele país se estabeleceu, em fevereiro de 1876, na colônia de Benevides, perto de Belém, onde já moravam franceses, italianos e outros europeus. Os canadenses somavam entre 250 e 277 colonos, a maioria de origem francesa. Mas Benevides não progrediu, e dois anos depois o núcleo colonial já havia desaparecido. Não se sabe absolutamente nada sobre o que aconteceu com esses imigrantes, mas é possível que alguns tenham ficado no Brasil.

    Colonização para valer ocorreu no final daquele século. No dia 15 de setembro de 1896, o navio Moravia partiu do porto de Montreal com destino a Santos, levando a bordo quase 500 moradores daquela cidade, recrutados como imigrantes pelo estado de São Paulo. Além de canadenses, havia franceses, ingleses e irlandeses, entre outros.

    A mídia canadense deu grande cobertura ao evento. Nunca o Brasil havia recebido tanto destaque na imprensa local. O país era descrito como sujo, atrasado e cheio de febres contagiosas. O jornal Star, de Toronto, publicou, no dia da partida dos emigrantes, que “o país para onde eles estão se dirigindo é totalmente inapto para qualquer inglês viver, e, mesmo que não sejam atingidos por febre, terão poucas possibilidades de ganhar o necessário para comer.”

    A má publicidade prévia causou a desistência de mais de 300 pessoas. Para os que insistiram, depois de três semanas de viagem e mais uma estada variável na Hospedaria dos Imigrantes – onde esperavam para assinar contratos com fazendeiros –, a empreitada durou pouquíssimo. Com sérias dificuldades de adaptação, já em dezembro muitos colonos começaram a ser repatriados. Em junho do ano seguinte, a grande maioria havia deixado o Brasil.

    Em parte, os problemas foram causados pelo fato de aqueles imigrantes não serem agricultores. A maioria não tinha a mínima ideia do que era o trabalho numa fazenda de café; muitos vieram com famílias enormes, inclusive crianças pequenas. As condições encontradas em São Paulo estavam longe de favorecer o estabelecimento de colonos nessa situação. O caso foi qualificado como um “fiasco canadense” pelo jornal O Comércio de São Paulo. Quem manda prometer “mundos e fundos para os pobres canadenses”? No grupo, segundo o jornal, havia até “um surdo-mudo!” O esquema também foi um fracasso para o governo paulista, que arcou com as despesas de transporte dos imigrantes e ajudou no repatriamento.

    Ao que parece, o recrutamento em Montreal foi feito de forma rápida e descontrolada, e os agenciadores aceitaram pessoas sem a qualificação necessária. A cidade enfrentava uma crise de desemprego e não foi difícil encontrar gente disposta à emigração, que oferecia passagem paga, moradia e comida por um ano.

    Porém, o caso mais inusitado de imigração envolveu 48 brasileiros dispostos a tentar a sorte na província de Ontário. Foi em 1902, quando, numa viagem que durou meses, cruzaram o continente a cavalo e de carroça! Admiráveis pela perseverança, os brasileiros falharam no planejamento. Acabaram entrando numa fria: era início de janeiro quando pisaram no Canadá, ou seja, em pleno inverno. Perdidos e atolados na neve no sul de Ontário, foram socorridos pelo governo canadense, que deu início a um pedido de imigração. Se a história terminou com final feliz, não se tem conhecimento. A memória do caso foi soterrada pela neve do tempo. Como tantas outras idas e vindas na relação Brasil-Canadá.

    Rosana Barbosa é professora da Universidade de Saint Mary’s, em Halifax, no Canadá, e autora do livro Immigration and Xenophobia in Early Nineteenth Century Rio de Janeiro (University Press of America, 2009).

    Saiba Mais - Bibliografia

    OLGESBY, J. C. M. Gringos from the Far North: Essays in the History of Canadian-Latin American Relations, 1866-1968. Toronto: Macmillan, 1976.