Renato Janine Ribeiro elevou uma dedicatória a título de livro quando publicou Ao leitor sem medo, uma de suas obras mais conhecidas. Esse tom de desafio não foi usado à toa. Ele simboliza uma trajetória marcada por perguntas difíceis, muita polêmica e o desejo de falar diretamente com o público sem ideologias ou rótulos pré-fabricados. Filósofo, professor titular da Universidade de São Paulo e ex-diretor da Capes, Ribeiro adquiriu cedo, como ele mesmo diz, “uma vontade muito grande de questionar as coisas, os valores estabelecidos”.
Nem todo mundo sabe, mas Ribeiro chegou a pensar em se tornar advogado. A Filosofia, no entanto, falou mais alto. Quem o pegou pela cabeça foi Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII. Ainda na faculdade, em plena ditadura militar, o estudante se viu fascinado pelos argumentos de Hobbes e pela dificuldade de associá-los a um grupo ou classe específicos. Acabou escrevendo sobre isso. Uma obra o levou a outra, e a outra... Entre elas estão A marca do Leviatã (1978), Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo (1999), e A sociedade contra o social (2000), ganhador do Prêmio Jabuti 2001.
Em conversa com a RHBN, ele falou da paixão pela Filosofia e pela História. Para o nosso entrevistado, é até complicado traçar limites rígidos entre uma área e a outra. Esta, aliás, é uma das críticas que faz às universidades brasileiras, mais empenhadas nas especializações do que na versatilidade de seus alunos. Conversa vai, conversa vem, Ribeiro ainda afirma que o PT é um partido que se normalizou, destaca vazios na historiografia nacional, lamenta o radicalismo que tomou conta do debate político e reforça a necessidade de se levar o conhecimento para o nosso dia a dia. “A História tem uma coisa fabulosa: ela é gostosa, é algo que, em geral, as pessoas se entusiasmam de ler”.
REVISTA DE HISTÓRIA De onde vem seu interesse pela Filosofia?
RENATO JANINE RIBEIRO Em geral, isso tem muito a ver com os professores que você teve. E eu tive muita sorte neste quesito. Fui aluno, por exemplo, de Marilena Chauí. Estudei numa época em que o colégio público era muito bom. Lembro que nós tivemos que fazer um seminário na escola sobre as virtudes. Eu escolhi a Justiça e fui ler Nietzsche, logo o Assim falava Zaratustra [1883-85]. Não foi fácil, mas o que eu entendi ficou comigo para sempre: uma vontade muito grande de questionar muitas coisas. Na ocasião, eu pensava em fazer Direito, mas a Filosofia me pareceu um campo mais proveitoso, que me permitiria questionar os valores estabelecidos. Outra leitura marcante pra mim foi o Leviatã [1651], de Thomas Hobbes.
RH Isso já na universidade?
RJR Sim, na USP. Fiz uma disciplina sobre Hobbes e outros filósofos políticos. O Leviatã me entusiasmou muito. Vale lembrar que eu li o livro durante a ditadura, no período do Ato Institucional nº 5. E o Hobbes era um autor que falava da necessidade de repressão. Então, essa obra de baixo efeito ideológico me fez ver na filosofia política um tipo de pensamento muito explícito, muito lúcido, muito pouco empenhado em disfarçar seus argumentos. Veja bem: ao longo da teoria política, a preocupação em trazer o elemento ideológico é fabulosa, porque você tenta persuadir o seu leitor de que aquele mundo que você propõe será um mundo maravilhoso. Existe isso em Aristóteles, em Locke, em Montesquieu, nos liberais modernos, etc. Você não tem isso em Maquiavel, nem no Hobbes. Ou tem muito pouco.
RH Hobbes não expressava as ideias de um grupo ou classe específicos.
RJR Isso é fascinante! Qual é o vínculo dele com os grupos em conflito? Ele é monarquista ou republicano? Hobbes é um autor que você não consegue situar em um grupo específico, mesmo lendo História pra burro. Hobbes consegue ser antipático a todas as classes, o que é fabuloso. É como Maquiavel. Ninguém diz: “sou do Partido Maquiaveliano Brasileiro”. Quando escrevi sobre Hobbes, a minha questão inicial era: de onde ele fala? Em que base ele está? Qual é o seu grupo social, suas fundações intelectuais? E acabei intitulando o meu livro de Ao leitor sem medo, porque senti que não dava para dizer de onde ele fala, mas apenas para quem ele fala.
RH Esse livro se desmembrou em outra obra, sobre a etiqueta no Antigo Regime, não é?
RJR É verdade. A minha hipótese era que, entre o Antigo Regime e o século XIX, você teria a substituição da etiqueta pela opinião pública. Ou melhor, você teria a substituição do olhar do rei pelo olhar do público. A etiqueta sendo, sobretudo na corte de Luís XIV, uma grande forma pela qual as pessoas se sentem olhadas pelo rei. E depois a difusão disso para um olhar muito mais amplo, que não é o de todo mundo, não é do povo em geral, é muitas vezes o da mídia, mas que assume uma legitimidade que é subtraída do rei. Eu achei interessante ver como era isso. E mais até: os estudos sobre a teatralização do poder era algo mais ou menos iniciante, pouca gente tinha trabalhado.
RH Hoje eles emplacaram?
RJR Muito. Como você faz um espetáculo e como esse espetáculo cativa, conquista, domina? O espetáculo é um fator de dominação. O que, por sinal, está me levando hoje a uma indagação nova: a questão da vaidade. É claro que esse espetáculo tem a ver com a vaidade. É claro que o rei é extremamente vaidoso e que isso não é um traço psicológico. É uma estratégia política. Agora, o curioso é que a vaidade é um tema relevante para a Filosofia, desde os gregos até o século XVIII. Depois ela some. Não se tem mais estudos sobre a vaidade.
RH Por que é um tema importante atualmente?
RJR Hoje, o que teríamos de mais próximo do que era um rei são o artista popular e a celebridade. São os dois tipos mais próximos. Então, o artista popular, durante todo um tempo, era o sucessor da vaidade do rei. Mais recentemente, este artista vem sendo substituído por uma coisa mais esquisita, que é a figura da celebridade. Geralmente são pessoas que não têm nenhuma importância para a sociedade. Você tem até mesmo esse concurso de celebridades, que passa no primeiro trimestre do ano. As pessoas vão ser celebridades só porque vão ser celebridades.
RH Como este cenário se relaciona com os séculos XVII e XVIII?
RJR Ora, a teatralização do político é uma sacada genial nos séculos XVII e XVIII. Então, se você estudar o marqueteiro político sem conhecer a corte do Rei Sol... é bizarro. Da mesma forma, pensar as celebridades sem ter nenhuma noção do que era a corte de Luís XIV ou de Luís XV e Luís XVI é uma coisa limitada. Há certos aspectos da História que são muito ricos. Por isto, é importante pensar temas como este a partir de diversas disciplinas.
RH Os seus trabalhos costumam apostar nessa articulação das Humanidades.
RJR Claro. É o velho ecletismo, que foi uma marca, sobretudo, das Humanidades no Brasil na primeira metade do século XX. Antes, até a fundação das grandes universidades brasileiras, esse ecletismo foi muito contestado. Isso porque você tinha um médico que conhecia muito bem Racine, recitava Racine, conhecia todas as peças de Racine, mas nunca fazia um trabalho sobre Racine. Então, neste sentido, a gente teve um avanço muito grande com o desenvolvimento das áreas, embora elas tenham criado fronteiras entre si.
RH Em que sentido?
RJR O que eu constatei lecionando é que muitas vezes os alunos se especializam em um pequeno setor – pode ser da Filosofia, da História. O aluno passa toda a sua vida acadêmica voltado para o mesmo setor, sem ter a oportunidade de conhecer outra coisa. Então, eu acho que existe um risco extraordinário de as pessoas errarem de rumo. Não é o que você é mais capaz. Esse é um primeiro ponto. O segundo ponto, o principal, é que as Humanidades podem abordar um mesmo fenômeno de maneiras muito diversificadas. Se eu quiser tratar da política atual, provavelmente vou chamar um cientista político. Um antropólogo, um sociólogo ou um filósofo trabalharão o tema de maneiras diversas. É como se tivéssemos colocado uma ligação entre um objeto e um tipo de tratamento desse objeto. O caso da História, neste sentido, é interessante.
RH Por quê?
RJR Porque se trata de uma área interdisciplinar por natureza. Não dá para ser um historiador da tradição dos Annales sem conhecer etnologia ou economia mesmo. É muito complicado você dizer que “esse trabalho não é História”. Como seria negar a um trabalho a característica de História? É complicado. Aliás, acho que existem alguns vazios em nossa historiografia.
RH Quais?
RJR Eu poderia citar alguns aspectos. Um deles é a história do Grão-Pará, ainda muito pouco estudada. O Grão-Pará é como um buraco negro na nossa História. Creio que a maior parte da população não sabe o que é uma colônia diferente da brasileira. Outro ponto cego são as histórias que fogem dos centros – não exatamente as regionais. É o que o Evaldo Cabral de Mello chama de “riocentrismo”. Veja o caso da revolta contra os Aciólis, lá no Ceará, uma coisa muito pouco estudada. Aliás, este é o terceiro vazio historiográfico: as muitas rebeliões populares do Brasil. Outra coisa que eu achava importante era limpar a Guerra do Paraguai. Se a gente conseguisse fazer um grupo dos quatro países estudando a Guerra do Paraguai...
RH Por que esses temas devem ser estudados?
RJR Eu acho o seguinte: embora a definição de História venha basicamente do passado, tudo isso tem uma projeção extraordinária para o futuro. Se a gente valoriza a história das regiões do Brasil pouco conhecidas, como Acre, Amapá, Rondônia, elas ganharão notoriedade, estímulos de vários níveis. E a História tem uma coisa fabulosa: ela é gostosa, é algo que, em geral, as pessoas se entusiasmam de ler.
RH E a mídia? Ela está aberta para esse tipo de debate mais especializado?
RJR Eu acho que a mídia brasileira é uma das que mais têm a participação do intelectual. Quando estava na Capes, mandei fazer um levantamento sobre os bolsistas de pesquisa de Filosofia, Sociologia, Ciência Política e Antropologia que apareciam nos quatro principais jornais brasileiros: Estado, Folha, O Globo, e, na época, Jornal do Brasil. Você tinha, se bem me lembro, em um período de poucos meses, 250 citações de antropólogos, 250 de cientistas políticos, 500 de Sociologia e, espantosamente, 1.000 de Filosofia. Agora, em todas as áreas, 80% das citações eram de quatro nomes. Ou seja, os jornais procuram poucas pessoas. Eles conseguem os pesquisadores que têm mais destaque e que acabam virando uma espécie de presença constante no jornal.
RH Como poderia ser diferente?
RJR Eu acho que a academia poderia tomar a iniciativa às vezes. Ela tem veículos para isso: a própria Revista de História da Biblioteca Nacional, a Pesquisa Fapesp, a Ciência Hoje, etc. Mas eu acho que a divulgação pela academia do que ela faz de importante é tímida. As áreas de humanas seriam fabulosas para se divulgar. E hoje vivemos um bom momento.
RH Hobbes teria algo a nos dizer hoje?
RJR Eu acredito que sim. A grande questão hobbesiana é que o poder político não é a realização da natureza humana. É o contrário do homo politicus grego. Para o grego, você só se torna plenamente humano em sociedade. Não sendo assim, você é um bicho selvagem, como Kasper Hauser. Com Hobbes, você tem a ideia de que a natureza humana, solta a si própria, levará todos a um conflito que abreviará a duração e a qualidade de nossas vidas. Isso tem muito a ver com o modelo de discurso dominante freudiano: o nosso desejo é infinito, temos que limitá-lo. Tanto em Freud como em Hobbes há esse descompasso entre o desejo humano e a possibilidade de sua realização. Veja o caso da monogamia. A monogamia não é algo natural, mas uma das melhores soluções que o ser humano inventou para evitar uma série de estresses amorosos.
RH Para Hobbes, o equivalente disso é o Estado?
RJR Sim. O Estado vai nos impedir de fazer uma série de coisas. Coisas que nós gostaríamos de fazer, mas que, caso fizéssemos, entraríamos em choque com todos. Então, o Estado estabelece uma regulação de fluxo. Como o fluxo do trânsito, não é? O que é um sinal? Sinal não tem nada a ver com moral. Por que o cara que chegou na outra pista está passando antes de mim? Não é nada disso. É apenas um regulador para os carros não baterem. Esta ideia de que a vida humana exige restrições marca o pensamento hobbesiano. E isto é algo muito próximo.
RH A virtude na política ainda é uma questão importante para a sociedade?
RJR Olha, quando a gente fala do passado, é muito difícil distinguir o espaço da virtude do espaço da aparência. Os historiadores, na medida em que estudam um certo autor, tornam-se capazes de ver no que ele foi virtuoso e no que não foi. Agora, de fato, a aparência dele supunha toda uma virtude, um comedimento, uma seriedade. A gente tem todo esse physique du rôle [adequação ao papel] do Império, da República Velha em especial, que está ligado à expressão de uma pessoa séria, alguém em quem você pode confiar. Nos tempos mais recentes, acho que isso de fato perdeu muita importância, seja a virtude ou a aparência. A própria campanha do Tiririca é a negação total disso.
RH Por quê?
RJR Era uma campanha em que realmente nada se apresentava como minimamente sério. Eram frases como: “Você sabe o que o deputado faz? Eu também não, mas me elege que eu conto”. Ou: “Crianças, façam os seus pais votarem em mim...”. Eu até achava que esse “crianças” poderia ter dado base para uma impugnação da candidatura, já que crianças não são eleitores. Estava havendo um mau uso do tempo político. Chegamos a um ponto em que não se precisa mais do elemento virtude. E, no entanto, muita gente defende a legitimidade da eleição do Tiririca dizendo: “Bom, em uma democracia, o povo elege quem quiser. Não se pode impedir uma pessoa de se eleger por ser palhaço, etc”.
RH O que acha disso?
RJR Não tenho uma opinião formada a respeito. O que eu posso dizer é que a importância da virtude decaiu. E é claro que havia muita falsidade por trás dos chamados “virtuosos”. É o caso de um grande herói americano, Thomas Jefferson. Ele dizia: “brancos e negros não podem conviver. Um dia temos que dar liberdade a eles e mandá-los para a África”. Enquanto isso, Jefferson fez um monte de filhos mulatos, que não foram reconhecidos por ele. Daí a condenar Jefferson duzentos anos depois, fora de contexto, vai uma distância. Mas daí também a celebrá-lo como uma pessoa extremamente virtuosa...
RH É possível dizer que o Brasil tem se tornado um país mais democrático e republicano?
RJR Democrático, eu acho que sim. Acho que democracia, para nós, passa necessariamente pela agenda social da redução da desigualdade. Não tenho certeza se mais republicano. Essa separação entre o público e o privado não ocorreu. Nós temos a mistura, vários partidos misturam o que é público com o que é privado, com o que é do próprio partido.
RH Há dez anos o senhor chamou o PT de democrático e o PSDB de republicano. E hoje?
RJR Antes de mais nada, é importante observar que democracia para os gregos é um termo não só positivo, mas também pejorativo. E quando ele é pejorativo, é porque se refere à ralé, que quer ter mais e tirar dos ricos. O que vários pensadores gregos acham ruim. Mas se a gente olhar pelo outro lado, a reivindicação popular natural é essa, quer dizer, os carentes querem ter mais, querem acesso ao franguinho do Fernando Henrique ou à geladeira do Lula. Acho que o PT teve que refrear o elemento democrático quando entrou no governo. O partido não podia jogar todas as laranjas para o alto e esperar que elas se organizassem sozinhas. O elemento democrático do PT estava muito vinculado à vida de oposição. Entrando no governo, isso mudou muito. Eu não poderia dizer hoje que o PT é democrático no sentido de dez anos atrás. É um partido que se normalizou em vários pontos. A questão que se tem que colocar hoje ao PT é a do custo-benefício: valeu a pena abrir mão de certos valores? Por essas e outras, tenho pensado se não estaríamos vendo um esgotamento do mundo político.
RH Por quê?
RJR Eu acho que o mundo político já não é mais a maneira pela qual a sociedade pensa em si própria. Isso é curioso porque a democracia parece ter alcançado mundialmente o seu mais alto hit. E então, neste exato momento, as pessoas começam a se desinteressar dela. É como se a democracia não trouxesse todas as promessas que esperávamos. Mas isso é uma dúvida que eu tenho. Por isso, acho importante a democracia incorporar o elemento afetivo. Um afeto voltado para a subordinação ao chefe, ao ditador. Há um certo prazer nisso. Agora, o que seria o afeto democrático? Geralmente o pensamento político diz: a democracia e a república são conquistadas com grande esforço racional. A nossa tendência natural seria não a democracia, mas a parcialidade.
RH Já se disse que determinados filósofos sentiam medo por terem feito perguntas perigosas. E o senhor?
RJR Os medos são normais. Já tive medo da repercussão de declarações ou de afirmações, mas isso passou. O que eu sinto é o seguinte: as opiniões, sobretudo no que tange aos valores políticos, estão extremamente divididas no Brasil. Então, se você faz uma declaração que não entra em nenhum dos dois clubes, tucanos radicais ou petistas, você acaba despertando uma grande hostilidade. Outro dia, publiquei um post no Blog do Nacif falando que a política devia se fazer sem demonizar o outro. Houve 38 comentários, só dois a favor. Foram 36 contra, e furiosos, até porque eu disse que tinha votado na Dilma. As pessoas diziam: “Quem ele pensa que é para votar na Dilma e vir com esse discursinho tucano?”
RH Existiria, então, um certo radicalismo?
RJR Eu diria que sim. E esse radicalismo vende. Existem grupos que se articulam em torno do fanatismo. Blogs, revistas e órgãos de imprensa se articulam nesse fanatismo. Isso eu acho uma grande pena. Está muito difícil haver maturidade no país para aceitar discussões democráticas. As pessoas não querem lidar com a realidade. Até porque, quando você lida com a realidade, não dá para dizer “a única solução é essa”. Entende? Isso mais me preocupa do que me amedronta.
Renato Janine Ribeiro
Rodrigo Elias e Nelson Cantarino