Repressão daltônica

Angélica Fontella

  • Glenda Mezarobba, cientista política e consultora da Comissão Nacional da Verdade, fala à produção da TV Senado sobre o trabalho da CNV. (DIVULGAÇÃO / FOTO ROGÉRIO ALVES)“Já está certo que os chineses eram membros do grupo de estrangeiros que estava preparando as guerrilhas para dominar o sertão daquele Estado e os demais próximos”, um “dispositivo vermelho que tinha apoio no ex-presidente”. A edição de 4 de abril de 1964 do jornal O Globo tornou público o “caso dos nove chineses”: acusados de envolvimento numa sublevação comunista, dois jornalistas, quatro feirantes e três comerciantes daquele país foram presos no Rio de Janeiro. Após um ano de torturas, acabaram expulsos do Brasil.
     
    Este é um dos três casos apresentados no novo documentário Em busca da verdade – Parte II, produzido pela TV Senado, com estreia agendada para 29 de agosto. Assim como a primeira parte, lançada em junho, o novo filme baseia-se em relatórios das Comissões da Verdade entre 2012 e 2014. A diferença é que enfoca exclusivamente casos de tortura envolvendo relações internacionais.
     
    A direção é de Deraldo Goulart, coordenador do núcleo de documentários da TV Senado. “Mesclamos depoimentos das audiências das Comissões e entrevistas, como a concedida pelos autores do livro O caso dos nove chineses (2014), Ciça Guedes e Murilo Fiuza”, explica. Para Murilo Fiuza, aquele foi o primeiro escândalo internacional na ditadura militar: “Mais de 90 países enviaram protestos contra o governo brasileiro, pedindo a soltura dos chineses. Foi um grande constrangimento para o regime”. Os estrangeiros vieram a convite do governo Jânio Quadros, que adotou política externa independente com a intenção de ampliar as relações comerciais do país. Os nove chineses compunham uma missão comercial. O caso foi retomado pela Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e o decreto de expulsão que impedia o retorno dos chineses ao Brasil foi revogado apenas em dezembro passado.
     
    Entrevista que integra o “caso Stuart Angel” no Em busca da verdade – parte I. Hildegard Angel, jornalista e irmã de Stuart, falou sobre o notório desaparecimento do irmão. (DIVULGAÇÃO)O documentário também aborda a Operação Condor – cooperação entre países sul-americanos para a prisão de opositores aos seus regimes autoritários – e narra o caso específico de um músico desaparecido no âmbito dessa articulação internacional. “Tenorinho era o pianista dos artistas Toquinho e Vinicius de Moraes. Depois de show em Buenos Aires, ele saiu do hotel para comprar cigarro e nunca mais voltou. Foi pego pelo aparato de repressão argentino e morto”, explica Goulart, ressaltando a importância do depoimento de Toquinho para o filme: “ele estava no lugar errado, na hora errada, só fazia tocar”, lembra. A suspeita é de que tenha sido confundido com um guerrilheiro.
     
    “Inicialmente, a pesquisa era para apenas um documentário a partir das Comissões da Verdade no Brasil. Mas nos deparamos com uma infinidade de material: documentos, depoimentos gravados em audiências – de agentes da repressão e de vítimas – não coube num filme só. Ouvimos 1.116 depoimentos”, conta Lorena Maria e Silva, que dirigiu o primeiro filme com Deraldo Goulart e produziu o segundo. 
     
    A primeira parte mostra a pluralidade de pessoas afetadas pela repressão no Brasil, a partir de casos de violação de direitos de índios, camponeses e setores pobres e ricos de centros urbanos.