Retrato do padre-poeta

Caleb Faria Alves

  • Anchieta parece minúsculo sobre a longuíssima faixa de areia na qual escreve os 5.732 versos do seu famoso “Poema à Virgem”. Está voltado para si mesmo, inspirado, e usa uma vara como pena. A praia está tão a perder de vista que parece que sua escrita faz parte do solo, como se fosse um esqueleto que sustenta a areia sob seu corpo. Mas há um elemento que paira no limiar entre o plano divino e o firmamento, que domina os ares, que fazem também conexão com a areia: as gaivotas. Elas vêm de muito longe, como se formassem uma fila desordenada no céu. A princípio, parecem muito difíceis de distinguir; depois vão ganhando contornos cada vez mais claros e bem definidos à medida que se aproximam do jesuíta.

    Foi assim que Benedito Calixto de Jesus (1853-1927) retratou a presença de Anchieta logo no início da colonização no Brasil. Os índios tamoios que o observam na imagem eram tidos como selvagens tanto pelos contemporâneos do pintor quanto pelos do missionário, apesar dos séculos que os separam. Isso, principalmente por causa dos seus hábitos sexuais e da prática da antropofagia. No quadro, no entanto, eles não só parecem inofensivos, como dão a impressão de estar entediados, cansados ou admirados da profunda introspecção de seu refém. Eles estão logo abaixo da cruz, atrás do beato, e são, ao mesmo tempo, sua inspiração e sua missão. Calixto adorava colocar elementos contrastantes em suas pinturas, e por meio deles às vezes compunha narrativas complexas.

    A vida de Anchieta tem várias passagens que poderiam ter sido retratadas em telas (e algumas o foram). Um exemplo é a missa que ele rezou no dia 25 de janeiro de 1554 numa choupana pequena e humilde, e que marca a fundação da cidade de São Paulo. Há também a marcha de quinze dias que ele fez até Vitória – depois de enfrentar um naufrágio no Espírito Santo –, onde ajudou a erguer uma igreja em homenagem a São Tiago. Também poderiam servir de tema para obras artísticas as pregações que fez entre os índios até o fim de seus dias, enquanto renegava o conforto e o poder dos cargos burocráticos que lhe foram oferecidos.

    Quando Calixto realizava um trabalho, investigava a história da personagem ou do evento a ser pintado e, consequentemente, se deparava com várias alternativas. A solução final alcançada quase sempre levava em consideração outras telas, textos históricos e a opinião de amigos de profissão e historiadores. Era frequente também que quem lhe encomendava um quadro já tivesse uma opinião bem formada sobre que elementos deveriam fazer parte da pintura. A opção que o artista fez pela imagem da praia reflete, de alguma forma, como ele imaginava que uma tela sobre Anchieta seria bem recebida por esse grupo, aquela que seria a melhor maneira de representar suas qualidades e sua importância para a História do Brasil.

    Uma vez escolhido o episódio, restava ainda a decisão sobre o momento exato que deveria ser retratado, que gesto, que ação ou atitude, e essa passagem da vida de Anchieta ensejava muitas possibilidades. Ele fora inicialmente enviado, junto com o padre Manoel da Nóbrega, para servir de refém enquanto era negociada a paz entre os índios tamoios – aliados dos franceses – e os portugueses. Em cinco meses de cativeiro, ocorreram várias passagens de intenso perigo, que puseram à prova a coragem e a determinação do religioso. Houve um momento, por exemplo, em que os párocos descobriram que os nativos queriam matá-los, pois desconfiavam que os portugueses tinham exterminado membros da sua tribo. Os dois acabaram fugindo para a montanha onde ficava a cabana de Pindobuçu, um dos principais chefes tamoios, mas com quem mantinham boas relações e que aparentemente poderia protegê-los (uma outra tela de Calixto retrata essa cena). O caminho foi difícil: num dado momento, Nóbrega ficou ferido, e durante a travessia de um rio, Anchieta teve que carregar o companheiro nas costas. Esse foi um esforço enorme para alguém que sofria da coluna a ponto de viver enfaixado para controlar as fortes dores que sentia.

    A escolha de Anchieta escrevendo na areia provavelmente se deveu a dois  fatores: as possibilidades oferecidas pela sua composição pictórica e aquilo que o pintor concebia como verdades históricas maiores. Naquela época, o critério para a avaliação de uma boa pintura era o fato de a cena estar apoiada em documentos que comprovassem o fato retratado (segundo critérios do conhecimento positivista), mas também que o momento escolhido, entre os vários tidos como verdadeiros, fosse particularmente uma síntese dos valores morais que se queria difundir ou consagrar. Calixto, de fato, pintou uma série de telas que retratavam grandes momentos históricos, sendo que a mais conhecida é “A Fundação de São Vicente”, uma das que mais aparecem nos livros de História do Brasil – ao lado de “Primeira Missa do Brasil”, de Victor Meirelles (1832-1903), e de “Independência ou Morte”, de Pedro Américo (1843-1905). Nela aparecem Martim Afonso de Souza, Tibiriçá, João Ramalho e outras personagens importantes dos primórdios da presença portuguesa no Brasil. A Igreja e seus membros, no entanto, são representados de forma muito discreta. O destaque da pintura é o mar ao fundo, o que permite determinar a localização exata do ponto onde Martim Afonso ancorou sua nau e desembarcou.

    Os religiosos nas telas de Calixto, portanto, podiam aparecer com imenso destaque ou como personagens bastante secundários. O contexto em que o pintor viveu explica esse peso diferenciado. “A Fundação de São Vicente” foi pintada apenas doze anos depois da instauração da República, que ainda titubeava na tentativa de definir seus heróis. Enquanto isso, o estado de São Paulo buscava uma posição condizente com sua importância política e econômica recém-adquirida. Um forte investimento do governo central, de colecionadores, de institutos históricos e de outros agentes ajudaram nesse esforço. Dois colaboradores foram o historiador Affonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), que escreveu a história das bandeiras e foi nomeado diretor do Museu do Ipiranga em 1917, e o pintor Almeida Júnior (1850-1899), que ficou imortalizado ao pintar a figura do caipira. O Museu foi, aliás, seu principal comprador. Taunay, o primeiro grande historiador das bandeiras, encomendava telas a Calixto com detalhes bastante precisos sobre o que queria e com vistas à formação de um acervo que ressaltasse os grandes nomes da história paulista e a importância do bandeirante para a construção da nação. Calixto foi, na verdade, o primeiro artista paulista a estudar na França sem passar pela Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro e sendo financiado diretamente pelos barões do café. Ficou um ano na Académie Julian (1883), em Paris, e, ao voltar, estava capacitado a responder com maior maestria às expectativas desse grupo.

    Calixto está envolvido, assim, nesse grande projeto de construção da história paulista, e suas telas são, em parte, produtos desse movimento. Ao pintar Anchieta na praia, o artista deixava o planalto para os bandeirantes e evitava lidar com o conflito entre os propósitos de conversão dos jesuítas e os de escravização dos índios dos bandeirantes. Embora tivessem intenções bem diferentes, essas duas ações revelavam um aspecto expansionista e dominador da Coroa portuguesa que teve consequências desastrosas para os povos indígenas.

    A imagem do jesuíta escrevendo poemas na areia deixa algumas questões no ar. Não se sabe para quem Anchieta estava escrevendo, o porquê de ter sido feito, e as razões que tinha para escrever um poema à Virgem e em latim. O quadro, por si só, não esclarece o significado dos versos em latim. Mas é possível entender que motivações Calixto teve para pintar essa cena. O que chama logo a atenção do bom observador é a presença exuberante da natureza brasileira, que pode servir como um mero pano de fundo, como o cenário do encontro entre povos tão distintos, ou fazer o papel de agente central da ação. Seria ela a grande inspiração do missionário, representando a manifestação da presença de Deus?

    Em primeiro lugar, devemos observar que as personagens dos índios e do religioso são pequenas em relação ao cenário, o que indica que a paisagem tem mais importância do que poderia parecer. Mas os nativos têm as faces e os corpos pouco definidos, apenas sugeridos pelas pinceladas. Já o corpo de Anchieta é mais bem trabalhado e mantém uma relação especial com as gaivotas, o que indica que a natureza está em harmonia com o beato, e não com os índios, como se o poema fosse produto da graça que o jesuíta sente em ser um instrumento de Deus no seu desígnio de promover a comunhão do homem com a terra.

    A criatividade de Calixto não pode ser medida por padrões modernos, mas pela maneira como ele deu conta dos desafios a que se propôs. Apresentar Anchieta escrevendo o poema à Virgem na praia não faz referência apenas a uma verdade histórica. A praia é o suporte de uma palavra quase divina, uma exaltação profundamente inspirada na Virgem Maria. O litoral é apresentado como primeira e última morada do poema; se a areia permitiu que as ondas do mar roubassem os versos, foi apenas para se ver banhada eternamente por elas no vaivém das marés. Calixto mostra um ambiente santificado que convida o homem a engrandecer-se, seja pela difusão da palavra divina, seja por sua aceitação. Ao glorificar a natureza e a obra que se desenha sobre ela, o pintor nos convida, ao mesmo tempo, ao futuro. O paulista não aparece maculado pela colonização, pela corrupção da cidade. Ele é o homem do interior, mantido íntegro pela comunhão que estabeleceu com essa natureza que contém uma mensagem divina, que ele deve ouvir e cumprir. O futuro do Brasil está ali, adormecido, e não nas cidades que o português construiu ou na sua estrutura administrativa, futuro que demorou a ser sentido, mas que, finalmente, naquele momento, seria realizado.

    Caleb Faria Alves é professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de Benedito Calixto e a Construção do Imaginário Republicano (Edusc, 2003).


    Saiba Mais - Bibliografia

    MORETTIN, Eduardo Victorio. “Quadros em movimento: o uso das fontes iconográficas no filme “Os Bandeirantes” (1940), de Humberto Mauro. In: Revista Brasileira de História, vol.18, nº 35 São Paulo, 1998.

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. Antropologia e História – debate em região de fronteira. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2000.

    OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. Americanos, Representações da identidade nacional no Brasil e nos Estados Unidos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, pp 93 a 113.