Retratos imaginários

Flavia Galli Tatsch

  • A descoberta de um novo mundo abre caminho também para sucessos editoriais. A curiosidade dos leitores por notícias e imagens inéditas movimenta o trabalho de editores e artistas atentos ao potencial lucrativo do negócio. Foi o que aconteceu com as grandes navegações do início século XVI, que geraram uma imediata e crescente produção de textos e relatos impressos. Os ilustradores, porém, viram-se diante de um desafio: como transformar em imagem realidades tão diferentes de tudo aquilo que se conhecia até então?  
     
    Em uma praia indeterminada, homens, mulheres e crianças parcialmente nus dedicam-se às suas “atividades cotidianas”. Enquanto alguns conversam entre si, uma índia amamenta seu bebê ao mesmo tempo em que olha ternamente para outras duas crianças. Essa imagem foi publicada na Alemanha em 1505, como ilustração da carta Mundus Novus, atribuída ao navegador florentino Américo Vespúcio. Não há notícias de que Vespúcio tenha realizado qualquer desenho durante sua estadia no continente recém-descoberto. Foi o editor Johan Froschauer quem decidiu inserir no impresso uma ilustração, imaginada e realizada a partir do que relata o texto.
     
    A gravura procurava mostrar também um banquete antropofágico. A forma encontrada para tornar o canibalismo inteligível para o público foi representar um homem devorando um braço, enquanto partes do corpo estão penduradas no teto e outros membros estão na grelha em fogo brando. Esses detalhes tinham muito mais a ver com um modelo culinário europeu do que com a forma como o povo tupinambá ingeria suas vítimas. Era também a primeira vez em que os nativos apareciam usando adereços, como colares, braceletes, enfeites em geral e pedras no rosto. E a primeira vez em que “vestiam” saias de pena. 
     
    As imagens visuais dos indígenas, seus artefatos e hábitos se faziam ver em diversos tipos de publicação, tanto para ilustrar narrativas relativas ao Novo Mundo como para apresentar outros povos não europeus. Isto porque, a princípio, as recém-descobertas Índias Ocidentais nada mais eram do que um complemento das Índias Orientais. A lenta dissociação entre ambas teve início com a conquista do México (1519) e com a circunavegação do globo por Fernão de Magalhães (1519-1522). 
     
    A grande maioria das ilustrações era elaborada por artistas que nunca atravessaram o Atlântico e que sequer contavam com um desenho de observação como guia. A saída era recorrer à memória visual dos viajantes (nem sempre precisa), aos relatos escritos (nem sempre visuais), aos contatos com os poucos indígenas enviados ao Velho Continente ou aos artefatos que passaram a circular nas cortes europeias. Existia ainda a possibilidade de reutilizar imagens de histórias de outras culturas – como a oriental e a africana – e introduzir elementos europeus.
     
    Ilustração de banquete antropofágico do século XVI inclui mais elementos da culinária europeia do que da forma com que os tupinambás ingeriam as suas vítimas na América portuguesa. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Em 1510, Ludovico di Varthema, viajante e escritor bolonhês, publicou a primeira edição do livro Itinerário de Ludovico de Varthema Bolognese, no qual relata sua viagem pelas principais rotas de comércio que então conectavam o Mediterrâneo à Índia. Cinco anos depois, a tradução alemã desta obra contou com algumas gravuras elaboradas por Jorg Breu, artista e gravador nascido em Antuérpia. Em uma delas, Habitantes de Sumatra, estão representados quatro supostos habitantes dessa região. A gravura é surpreendente: mais do que ilustrar o texto, recicla elementos que nada tinham a ver com os povos retratados. Além de saia, os homens usam tiara e adornos nos braços e tornozelos, elaborados com plumagem de pássaro, como na representação dos indígenas de Johann Froschauer, na xilogravura impressa na carta de Américo Vespúcio.
     
    A gravura de Jorg Breu ressurgiria décadas depois para ilustrar outra narrativa de viagem, dessa vez longe da Ásia. Em 1557, na cidade de Marpurgo, Hans Staden, um soldado alemão que esteve duas vezes no Brasil, publicou A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, a América. Neste livro ele descreve a natureza do Brasil, os costumes de seus habitantes e o período que passou como prisioneiro dos tupinambás sob ameaças de ser sacrificado em um ritual antropofágico. Suas aventuras vêm a público ilustradas por 42 xilogravuras (algumas delas repetidas), desenhadas pelo próprio Staden na Europa ou realizadas sob sua supervisão. Além dessas imagens originais, o autor inclui outras quatro da obra de Ludovico Varthema, entre elas Habitantes de Sumatra.
     
    A circularidade iconográfica era um processo dinâmico, que funcionava em mão dupla: no livro de Varthema, ameríndios serviram como modelo para ilustrar os nativos das Filipinas; no de Hans Staden, os filipinos foram transfigurados em indígenas americanos. Algumas gravuras da América mostravam palmeiras do deserto e homens parecidos com beduínos. 
     
    Artefatos e nativos do Novo Mundo causavam enorme impacto entre artistas, como Albrecht Dürer. O gravador, pintor e ilustrador alemão tinha grande interesse por explorações, novas ideias e objetos, e é possível que tenha visto alguns artefatos indígenas trazidos do Brasil por Binot Palmier de Gonneville. Na bagagem deste navegador francês estava também Essomericq, o filho de um chefe tupinambá. Foi sob efeito desse contato que Dürer ilustrou em 1515 o Livro de Horas, do Sacro Imperador Romano-Germânico Maximiliano I. Às margens do salmo 24.1, onde se lê “Do Senhor é a terra e a sua plenitude; o mundo e aqueles que nele habitam”, o alemão retrata um tupinambá usando saia e ornamentos de penas. Sua mão esquerda segura um escudo e a direita um tacape cerimonial, cujo topo arredondado era decorado com penas presas em uma rede de algodão. Evidentemente, Dürer não sabia qual era a verdadeira função deste tacape, e o interpretou como uma lança de guerra. 
     
    As penas maravilhavam os europeus. Vindas tanto do Oriente quanto da América, adornavam roupas, ornamentos de cabeça e mantos. Não demorou para se transformarem em um dos atributos associados aos indígenas brasileiros – uma conexão muito mais ligada ao “exótico” e aos estereótipos que simplificavam o desconhecido para criar uma imagem artificial de alteridade. 
     
    Entre 1512 e 1526, pelas mãos de Dürer, Albrecht Altdorfer e Hans Burgkmair – outros dois importantes artistas do período – imagens dos nativos das “Índias” foram criadas para um complexo programa iconográfico que procurava glorificar as realizações de Maximiliano I e seus domínios sobre os povos da terra. Não havia precedentes para a escala monumental dessa obra. Altdorfer elaborou um desenho em que um homem a cavalo é seguido por uma fileira de quatro guerreiros a pé, armados com tacapes e escudos. Todos os cinco têm saias e a cabeça ornada de penas. 
     
    Por sua vez, Burgkmair foi o responsável pela gravura Povo de Calicute. Na época, o termo Calicute era aplicado não somente aos habitantes da Índia, mas também se estendia aos nativos das Américas. Liderada por um homem guiando um elefante, uma longa procissão agrega pessoas de diferentes etnias: indianos, africanos e indígenas da América do Sul. Estes últimos eram representados por homens e mulheres nus ou usando saias de penas, trazendo nas mãos tacapes e cestas repletas de espigas de milho (as primeiras a serem representadas na arte europeia). É provável que as armas tenham sido desenhadas a partir da observação direta de algum artefato tupinambá, mas a fisionomia dos homens não se parecia com nenhuma do povo americano. Os artistas compunham pessoas de corpos escultóricos em posturas clássicas, típicos do cânone estético europeu, e que nada tinham a ver com as compleições físicas dos indígenas. 
     
    É certo que houve na época um grande esforço em representar os indígenas. Mas levaria ainda muito tempo para que a circularidade dos elementos iconográficos, que caminhava de mãos dadas com a inventividade e a imaginação, abrisse espaço para outro tipo de representação. 
     
    Flavia Galli Tatsch é professora do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora da tese “A construção da imagem visual da América: gravuras dos séculos XV e XVI” (Unicamp, 2011). 
     
    Saiba Mais:
     
    BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994.
    CHIAPELLI, Fredi. First Images of America. Berkeley: University of California Press, 1976.