Réus de batina

Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz

  • Angelo Agostini critica a imoralidade no clero. Documentos mostram que  muitos homens da igreja tinham comportamentos condenáveis no século XVIII.Eram aproximadamente 6 horas da tarde do dia 27 de fevereiro do ano de 1754 quando o padre Thomás Aires de Figueiredo serrou as grades da cadeia onde estava preso, em São Luís, “com hum trinchête com dentes amolados”, abrindo “hum vão que por elle cabia qualquer homem”. O padre fugiu em companhia de mais sete presos, mas a fuga nem é o mais interessante neste caso. O motivo da prisão, este sim, é relevante. O padre Thomás era acusado de mandar assassinar quatro ou cinco pessoas. As testemunhas diziam que ele costumava agir com “despotismos nos sertões do Maranhão” e que mandara amarrar e surrar Manoel Pinto Ferras, um desafeto público do padre, “rasgando seus calções” e mandando “colocar pimentas”. Este é apenas um caso em meio ao rico acervo de processos produzidos pela Justiça Eclesiástica do Maranhão no século XVIII.  

    Aos padres cabia a difícil tarefa de dar exemplo de boa conduta aos fiéis, e quaisquer desvios que cometessem seriam prontamente observados pela comunidade. Eles deveriam servir como espelho de retidão às suas ovelhas, já que eram os intermediários entre Deus e os homens. O comportamento adequado fora determinado já no Concílio de Trento (1545-1563), um marco na tentativa de moralização dos comportamentos, tanto para clérigos como para leigos. Reformar o clero era um dos pilares de sustentação da Reforma Católica. Moralizar o clero, portanto, era um passo importante na tentativa dos católicos de não perder mais adeptos. Aqueles que se desviavam da norma estabelecida eram processados e julgados num tribunal específico, neste caso, o Auditório Eclesiástico, ou Tribunal Episcopal.

    O Auditório Eclesiástico do Maranhão produziu nada menos que 429 processos criminais e cíveis durante todo o século XVIII. Destes, 170 são processos contra padres seculares, ou seja, aqueles que lidavam mais diretamente com os fiéis, os padres de missa ou presbíteros. A quantidade de casos é relevante, pois o número de clérigos era bem menor que o do restante da comunidade leiga. Os processos revelam quais eram as denúncias mais comuns recebidas por esse tribunal, quais eram as relações da comunidade circundante com um clero transgressor, quais medidas de moralização de comportamento eram mais difíceis de serem seguidas e, finalmente, como as autoridades eclesiásticas puniam os membros do seu próprio corpo eclesiástico. O padre era, portanto, peça fundamental na política de ordenação e moralização da comunidade. Nada seria mais contraditório do que entregar o rebanho a um mau pastor.

    Outro “mau exemplo” foi o padre João Cordeiro, em 1791. Consta nos autos que ele era “hum monstro de iniqüidade com habito sacerdotal”, que, nas funções de pastor, era na verdade “um lobo”. Joana Rodrigues de Aguiar o acusava de mandar assassinar seu filho, Antonio Pinto de Matos, em Pastos Bons, distante 150 léguas de São Luís. O pivô do crime teria sido Rosaura Maria, concubina do padre João e mãe de dois de seus filhos, que teria fugido com Antonio para viver em sua fazenda. Em 1794, a mãe da vítima reclamou às autoridades eclesiásticas dizendo que o padre assassino passeava “por toda a Cidade, dizendo missa, e ainda confessando”.

    Não só os assassinatos escandalizavam a população do Maranhão. Os padres eram acusados de toda sorte de crimes. Concubinatos, defloramentos, raptos, roubos, incestos, envolvimento em negócios, excessivo consumo de bebidas, agressões, porte ilegal de armas, participações em festas e, claro, negligência na administração dos sacramentos são algumas das transgressões que cotidianamente tiravam o sossego dos que viviam em conformidade com os ditames da Igreja. Poucos processos contêm defesas. Os padres, obviamente, negavam as acusações dizendo-se de boa família, bons costumes, vida adequada ao modelo católico. Afirmavam que eram vítimas de maquinações e tramoias de inimigos.

    O padre Thomás Aires de Figueiredo, o fugitivo, era um campeão no quesito transgressão. Ele também foi denunciado por concubinato com Anna Margarida no ano de 1762. Os elementos da estabilidade do relacionamento apareceram nas falas das testemunhas que diziam ser “público, notório e escandaloso andarem amancebados”. Disseram ainda saber que “o Denunciado estava estabelecendo sitio e caza nesta ilha para donde levou a Denunciada e a Mãe desta morando todos juntos em hua mesma caza como marido e mulher com grandes escândalos”.

    Mas, em termos de desobediência, não houve quem vencesse o padre Manoel Correa de Brito e sua concubina e comadre Maria Pereira. O casal foi denunciado sete vezes.As testemunhas contavam que eles estavam publicamente amancebados havia vários anos, vivendo de portas adentro como se casados fossem. Ele foi finalmente degredado para a Vila do Icatu, distante 24 léguas de São Luís e de sua concubina. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707 – que orientavam o bom funcionamento da vida moral e espiritual na Colônia e indicavam os crimes e as punições previstas em casos de desvio da norma –, previam que quanto mais lapsos o criminoso cometesse, maior seria sua punição. Assim, a própria legislação confirmava a reincidência que, aliás, foi muito comum. O concubinato, embora considerado transgressão, era socialmente aceito até que os envolvidos causassem algum transtorno à comunidade.

    Muitos padres foram denunciados por negligência com as obrigações sacerdotais, como ministrar sacramentos e dizer missa. Em 1779, por exemplo, os paroquianos da freguesia de Balsas enviaram à sede do bispado do Maranhão uma carta em que reclamavam dos maus procedimentos e da ambição desmedida do seu ministro, padre João José Siqueira Tavira d’Eça. Assinaram 119 descontentes. Eles se diziam “oprimidos e vexados”, e afirmavam que faltava ao pároco “o aggrado, prudencia e o amor de bom pastor”. Acrescentaram ainda que nele só prevaleciam “soberba imprudencia e dezagrado e mais que tudo a diabolla ambição”. Acusavam-no de não administrar os sacramentos e cobrar por eles além do permitido nas Constituições da Bahia.

    Por motivos semelhantes vieram queixas da Vila de Itapecuru contra o padre José Antonio Martins em 1790. Consta nos autos que ele não cumpria com suas obrigações de sacerdote. Os paroquianos reclamavam que, com tamanho descuido, ficavam “desconsulados e perigozos de sua Salvação”.

    Denúncias desse tipo vinham de todas as partes do bispado. De Piracuruca, vila de Parnaíba, a 140 léguas de São Luís, vieram reclamações contra o padre José Lopes Pereira em 1775, especialmente porque ele faltava “às obrigações de seu ofício”, administrava a confissão em sua casa a homens e mulheres “em mangas de camisa e ciroulas, deitado em uma rede”. Em Parnaguá, a 270 léguas de São Luís, os paroquianos diziam não conseguir um bom convívio com o padre Bento Manoel Pereira de Campos, no ano de 1798. Acusavam-no de não administrar os sacramentos, não batizar nem dar extrema-unção aos moribundos, revelar segredo da confissão, se envolver com mulheres e até de ter ajudado a fazer um aborto.

    Outros excessos preocupavam enormemente a Igreja. O padre Filipe Neri de Faria foi denunciado não só porque “nem tinha feito estação [missa] aos Domingos como determina o Sagrado Concílio de Trento”, mas, principalmente, porque usava cachimbo na sacristia, admitia celebrar casamentos que estavam em impedimento e promovia bailes na sua casa, inclusive com meretrizes. Os convidados quase sempre saíam embriagados.

    Com tantos exemplos, bem se pode ver como era difícil a tarefa de impor limites e adequar os comportamentos da população aos moldes que a Igreja desejava. Os bispados tinham áreas muito extensas, o que dificultava uma melhor fiscalização. Somavam-se a isso os longos anos em que os bispos não residiam nas suas dioceses e a má formação dos sacerdotes. Os clérigos deveriam ser agentes de transformação da Igreja, mas muitos deles estavam mais envolvidos com o mundo profano do que deveriam. Claro que havia aqueles bem ajustados e que se adequavam ao modelo almejado. Mas em qualquer tentativa de controle de comportamentos sempre havia o desvio, a contestação. Muitos foram processados e punidos. Alguns se corrigiram, outros continuaram transgredindo depois de transferidos para outras freguesias. O uso da batina não era suficiente para diferenciá-los do restante da população.

     

    Pollyanna Gouveia MendonçaMuniz é professora da Universidade Federal do Maranhão, autora da tese “Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvios do clero no Maranhão colonial” (UFF, 2011).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Typografia Dois de Dezembro, 1853.

    RUBERT, Arlindo.A Igreja no Brasil. Santa Maria: Editora Pallotti, 1981-1993. Vol. 1.

    SILVA, José António Gomes da. “Tribunais Eclesiásticos”. In AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Vol.C-I. Lisboa: Círculo de Leitores.