A participação dos escravos e de seus descendentes na formação do Rio Grande do Sul fincou no estado uma tradição religiosa de matriz africana que nada deve ao patrimônio afro-brasileiro da Bahia e do Rio de Janeiro. Nem sempre visível nos livros escolares e na historiografia oficial, a religiosidade afro-gaúcha deu recente sinal de força no Mapa das Religiões da Fundação Getulio Vargas (FGV), edição 2011. Porto Alegre é a capital com o maior percentual de adeptos declarados de cultos afro-brasileiros – 2,1% –, na frente do Rio, de São Paulo e de Salvador, segundo os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A estatística não é novidade para a fotógrafa Mirian Fichtner. Ela conhecia a vitalidade da devoção afro-gaúcha desde 2005, quando leu uma análise do Censo 2000 que indicava o Rio Grande do Sul como o estado com maior proporção de fiéis declarados de religiões afro-brasileiras. “Sou de Porto Alegre, mas não sabia disso”, conta Mirian, radicada desde os anos 1980 no Rio de Janeiro, onde atuou em grandes jornais e revistas. Ela se atirou ao assunto com o jornalista Carlos Caramez, seu marido, e fez as primeiras fotos sobre o tema em 2006, na tradicional festa do Bará, orixá abridor de caminhos, no Mercado Municipal da capital gaúcha.
O resultado do mergulho da fotógrafa na vida dos terreiros está no livro Cavalo de Santo – Religiões afro-gaúchas, patrocinado para impressão pela Fundação Cultural Palmares, com apoio da Prefeitura de Porto Alegre e parceria da Comunidade Terreira Ilê Axé Iyemonjá Omi Olodô. Em 153 fotografias, Mirian Fichtner traz à luz um retrato inédito das três linhas da fé de raiz africana no estado. A mais tradicional, congênere do Candomblé, é o Batuque ou Nação, que cultiva a língua iorubá e reverencia 12 orixás. As outras são a Umbanda, que cultua pretos velhos e bejis (crianças), com influências espírita e indígena, e a Linha Cruzada, dos exus, ciganos e pombagiras.
Na encruzilhada da arte e da visão etnográfica, Cavalo de Santo é fruto de quatro anos de imersão nos rituais de 13 terreiros de Porto Alegre, das vizinhas cidades de Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo, da litorânea Tramandaí e de Rio Grande, no sul do estado. A escolha dos lugares, num universo de 100 terreiros pesquisados, guardou sintonia com o itinerário da escravidão. Pelo porto do Rio Grande, por exemplo, passava, desde o século XVIII, a principal rota gaúcha de escravos, que seguiam para a lida nas charqueadas da região de Pelotas, fornecedoras de carne salgada e couro às demais províncias do Império.
O relacionamento de confiança construído com pais, mães e filhos de santo proporcionou à fotógrafa o acesso a cerimônias nunca documentadas no estado. Uma delas, em extinção, foi a sacralização do boi, imolado para que seu sangue seja ofertado num rito de saúde. Batismo, aniversário, iniciação religiosa, casamento – Mirian registrou diversos momentos rituais nos terreiros, além das festas do calendário afro-gaúcho. A de Iemanjá, em Rio Grande, que reúne 300.000 devotos e simpatizantes da orixá dos mares, é considerada a mais concorrida celebração de matriz africana no país, maior que as festas do gênero na Bahia.
As fotos dão pistas sobre o motivo de as religiões nascidas nas senzalas do estado serem chamadas de afro-gaúchas. As lentes de Mirian captaram cenas em que o churrasco, típico do Rio Grande, é oferecido a Ogum. A erva-mate, outra marca da terra, surge como ingrediente do caldo para os eguns, e a bombacha gauchesca compõe trajes de líderes e fiéis. Com essa indumentária, a mãe de santo Ieda de Ogum aparece incorporando o preto velho Pai Antônio da Bahia no terreiro Ilê Nação Oyó, em Porto Alegre. O sincretismo regional inclui também a batata inglesa, a polenta e o sagu, herança dos imigrantes alemães e italianos.
Mirian Fichtner valeu-se de apurada técnica em apoio ao talento e à sensibilidade para o tema. Suas fotos têm tons quentes, obtidos com iluminação própria para compensar a luz fluorescente de alguns locais. Um dos apresentadores do livro, o fotógrafo e antropólogo Milton Guran escreveu: “Mirian Fichtner se utilizou tanto da sua ampla experiência como repórter fotográfica quanto das técnicas de trabalho de campo das Ciências Sociais: suas fotos têm a densidade que só encontramos quando o autor sabe o que deve ser registrado e como deve fazê-lo”.
Cavalo de Santo materializa, nas palavras de Mirian, o potencial da fotografia para documentar de forma artística realidades nem sempre percebidas pelo senso comum. “Ser fotógrafa é revelar o que as pessoas às vezes não conseguem enxergar”, diz. “O que fiz foi olhar para o que ninguém olha. Todo mundo no Rio Grande do Sul tem uma pessoa da família, um amigo, um conhecido que pratica uma dessas religiões, mas tudo é muito subterrâneo”. Parte dessa invisibilidade deriva do preconceito racial à brasileira, que a fotógrafa viu de perto ao sair à cata de patrocínios privados, antes de procurar a Fundação Cultural Palmares, em Brasília.
Ao ver as fotos de Mirian, o arquiteto Zulu Araújo, que presidia a fundação, surpreendeu-se com a falta de apoiadores. “Por que uma profissional tão gabaritada e competente como ela precisaria da Fundação Palmares para publicar seu trabalho? As fotos eram lindas, o seu currículo, mais ainda. O que, então, poderia impedir apoios e patrocínios? Só haveria uma razão: o tema. E o tema que ela estava apresentando independia da sua qualidade, experiência ou vivência profissional”, escreveu Zulu sobre o preconceito que ameaçava engavetar o trabalho. Livro enfim na rua, as fotos de Mirian Fichtner falam por si.
Francisco Luiz Noel é jornalista.
As lentes de Mirian captaram cenas em que o churrasco, típico do Rio Grande, é oferecido a Ogum. Já a erva-mate, outra marca da terra, surge como ingrediente do caldo para os eguns
Revelação gaúcha
Francisco Luiz Noel