Era 1848, conhecido como “o ano das revoluções”. A multidão corria pelas ruas centrais da cidade. Desordem geral. Aflita, a polícia apreendia panfletos que defendiam o direito ao trabalho e melhores condições de vida. Chamada às pressas, investiu contra a multidão espalhada pelo principal bairro da cidade. Um inglês, ao ser atacado pela turba, conseguiu segurar um homem, que tentou fugir quando viu um delegado de polícia se aproximando. Mas, ao chegar, o delegado disse que não podia fazer nada naquelas circunstâncias. E o inglês teve que soltar o homem. No dia seguinte, uma passeata saiu em direção à Assembléia Provincial, levando uma petição assinada por artesãos, por gente do povo e por alguns deputados. Mas onde foi isso? Na revolucionária Paris de 1848? Não, foi no Recife, em julho do mesmo ano. Em novembro explodia a Insurreição Praieira, um movimento com muitas faces e significados.
Em 1840, assume o trono um jovem de 14 anos, D. Pedro II, que, evidentemente, não estava imune à influência dos políticos que o cercavam e adulavam. Foi nessa época que se constituíram os dois partidos que iriam dominar a cena política brasileira: o Liberal e o Conservador. Cabia ao imperador-menino, com o apoio de seus conselheiros, escolher o gabinete de ministros, tirados de um dos dois partidos. Os liberais que articularam a maioridade de Pedro caíram logo, devido a dissidências internas. Depois disso, vários gabinetes conservadores se sucederiam até 1844, quando o Partido Liberal finalmente voltou ao poder.
Em Pernambuco, ainda na primeira metade da década de 1840, surge o chamado “Partido Praieiro”, uma dissidência do Partido Liberal. O “racha” ocorreu por influência de três irmãos, os Cavalcanti, que se tornaram senadores – caso único na história do Brasil. A família praticamente comandava os dois partidos em Pernambuco. No Partido Liberal despontava Holanda Cavalcanti, que mais tarde foi o visconde de Albuquerque. No Conservador estavam Pedro Francisco e Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, o futuro visconde de Suassuna, um eterno vice-presidente da Província, que chegou a assumir o governo pernambucano sete vezes entre 1826 e 1844. Somados aos primos e aliados diretos, como o ex-regente Araújo Lima (marquês de Olinda), formavam uma bancada de quinze senadores em meados do século XIX. Na verdade, se Pedro II resolvesse formar uma dinastia brasileira naquela época, nenhum outro clã teria tanto pedigree para apresentar uma esposa quanto os Cavalcanti de Albuquerque do Nordeste.
-
O Partido Praieiro, portanto, era a ala anticavalcanti do Partido Liberal em Pernambuco, e ganhou o apelido por ter sua sede na Rua da Praia, no Recife. É de seus integrantes a famosa quadrinha: “Quem viver em Pernambuco/ há de estar desenganado/ ou há de ser Cavalcanti/ ou há de ser cavalgado”.
Em 1844, sentindo-se desprestigiado pela Coroa e incapaz de contornar as dissidências internas do Partido Conservador, o presidente do gabinete de ministros se demitiu. O imperador não teve alternativa senão chamar o Partido Liberal para formar o gabinete ministerial. Era o governo central que designava os presidentes de província, peças-chave na política local. Devido à influência dos irmãos Cavalcanti, os praieiros não conseguiram indicar um presidente até 1845, quando Aureliano de Souza Coutinho, o visconde de Sepetiba, assumiu a liderança do ministério. Político hábil, Aureliano comandava um grupo de deputados que freqüentava o Paço Imperial, convivendo diretamente com Pedro II. De acordo com Joaquim Nabuco, era imensa a sua influência sobre o jovem imperador. Os principais deputados praieiros, Nunes Machado e Urbano Sabino, pertenciam a este grupo de deputados “palacianos” liderado por Aureliano.
Em 1845, finalmente, os praieiros ganharam o governo de Pernambuco. E governaram como queriam. Demitiram centenas de autoridades vinculadas aos Cavalcanti e aos conservadores, além de mandarem a polícia invadir os engenhos de adversários políticos em busca de criminosos e armas. Foi a primeira vez que a Justiça interferiu diretamente na esfera senhorial. Mas os proprietários atingidos se defenderam pela imprensa, acusando os praieiros de só invadirem as propriedades dos seus adversários, fechando os olhos ao contrabando de africanos e a inúmeros outros crimes.
-
Para ganhar as eleições, os praieiros iniciaram uma nova forma de mobilização política – os meetings. Naqueles pequenos comícios, o principal orador era o deputado Nunes Machado, que arrebatava multidões com a reivindicação de maior apelo popular: a “nacionalização do comércio a retalho”, isto é, a varejo. Tentar obrigar comerciantes a empregar somente brasileiros parece algo vazio de sentido, mas naquela época, quando a Independência ainda era relativamente recente, a maioria dos empregos disponíveis continuava nas mãos de estrangeiros, principalmente portugueses e alguns poucos ingleses, que preferiam empregar os parentes, ou então contratar jovens imigrantes que vinham de Portugal, Madeira e Açores, viajando para o Recife sem pagar a passagem, e que eram leiloados no porto pelo seu valor. Esfomeados, submetiam-se a qualquer trabalho. Esse comércio chegou a ser tachado pelo cônsul lusitano Joaquim Batista Moreira de “tráfico de escravatura branca”.
Imprensados entre o desemprego, o latifúndio e a escravidão, muitos brasileiros livres pobres acreditavam que a nacionalização do comércio a retalho era a solução para seus problemas. A reivindicação estava no programa do Partido Liberal e foi posta em votação na Câmara dos Deputados por Nunes Machado. O problema é que havia liberais radicais que defendiam essa mesma proposta no Recife, só que de forma bem mais radical, insuflando a massa à ação contra os estrangeiros. A mobilização em torno do discurso antilusitano radical provocou os chamados “mata-marinheiros” ocorridos entre 1845 e 1848. Nesses motins, a massa atacava os “marinheiros”, ou seja os portugueses, saqueando casas comerciais e agredindo até franceses e ingleses mais incautos. No mata-marinheiro de julho de 1848, cinco pessoas foram espancadas até a morte. Para o cônsul português no Recife, a “plebe (...) nessas ocasiões é soberana”.
Só que Aureliano caiu em 1848 e, com ele, o Partido Praieiro. A volta do Partido Conservador ao poder não era coisa simples. Havia contas a acertar, principalmente entre os grandes proprietários rurais que estavam razoavelmente bem divididos entre os dois partidos. Os praieiros foram exonerados do comando da Polícia Civil e da Guarda Nacional. Mas o chefe de polícia da Província, um praieiro, grande senhor de engenho, recusou-se a entregar o cargo. Em novembro de 1848, as novas autoridades provinciais resolveram desarmar os praieiros recalcitrantes. Como era de se esperar, houve resistência. Os praieiros não se renderiam sem uma boa luta. Tinham propriedades, homens e armas. Apoio rural e urbano. Os combates começaram em novembro de 1848. Em fevereiro de 1849, o líder praieiro Pedro Ivo articulou uma manobra ousada. Simulou uma retirada, atraindo para o interior os batalhões do exército imperial, e marchou rapidamente para um Recife desguarnecido. Ao chegar, encontrou resistência das tropas de segunda linha e da Guarda Nacional. O ataque fracassou. Dali em diante, os praieiros foram capturados ou mortos até a derrocada do movimento, praticamente extinto em abril em1849.
-
A Praieira encerrou uma era de grandes rebeliões que, embora inteiramente distintas, tiveram em comum o fato de ameaçarem a ordem imperial, ou mesmo a unidade territorial brasileira. Junto com a Insurreição Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador em 1824, ela compõe o “ciclo das insurreições liberais do Nordeste”. No entanto, o que mais chama a atenção na Praieira é a mobilização das massas urbanas em torno de um discurso liberal radical que defendia o direito ao emprego e à representação popular, beirando as idéias igualitárias pregadas pelos chamados “socialistas utópicos” na Europa na mesma época. O historiador Caio Prado Júnior considerava a Praieira como o último dos movimentos de caráter popular e democrático que acompanharam o processo de Independência. Para ele, os rebeldes tinham uma ideologia reformista, sintetizada no conteúdo do manifesto “Ao Mundo”, escrito pelo liberal radical Borges da Fonseca, que pregava o voto livre e universal para todos os homens, emprego para todos e o fim do recrutamento forçado para o serviço militar. A discussão continua, mas numa coisa todos concordam hoje em dia: os rebeldes de 1848 formavam uma frente, congregando anseios e interesses diversos.
A composição dessa frente pode ser entendida a partir dos nomes dados à Praieira pelos contemporâneos: “rebelião”, “revolta”, “Guerra do Moraes”, “revolução” e “Cabanada”. Cada um destes nomes expressa uma face distinta da Insurreição.
O chefe de Polícia que esmagou o movimento e um deputado praieiro escreveram suas memórias sobre o 1848 pernambucano. O chefe de Polícia defendeu a posição do Estado e do Partido Conservador, enquanto o deputado assumiu a defesa dos praieiros. Os dois livros chamam a Praieira de “rebelião” ou “revolta”, termos que no século XIX serviam para designar os movimentos armados em defesa dos interesses das camadas sociais dominantes. Para aqueles memorialistas, portanto, a Praieira foi, principalmente, o resultado da radicalização da disputa pelo poder político provincial entre membros da elite.
-
Já na tradição oral da Zona da Mata, a Praieira ficou conhecida por “Guerra do Moraes”, em alusão ao coronel Moraes, um abastado senhor de engenho praieiro. A bem da verdade, a Praieira começou como “Guerra do Moraes”, pois o primeiro combate foi a reação de Moraes contra a tropa enviada ao seu engenho para desarmá-lo e prendê-lo. Quando os deputados praieiros chegaram da Corte para tentar articular uma saída para a situação, os senhores de engenho praieiros já estavam em guerra. A “Guerra do Moraes” é um retrato da revolta-rebelião no interior, uma disputa por cargos na polícia, na justiça de paz e na Guarda Nacional que serviam para dar uma roupagem institucional ao poder local.
Mas esta não foi a única face rural da Praieira. Depois do ataque ao Recife, o capitão Pedro Ivo se internou nas matas de Água Preta. As autoridades se referiam à guerrilha que durou até 1850 como uma nova Cabanada. Na Cabanada (1832-1835), posseiros e índios lutavam pela terra e contra a invasão das matas pelo latifúndio. A Cabanada foi uma “insurreição”, termo reservado no século XIX aos movimentos de profunda conotação social. Apesar de Pedro Ivo pertencer a uma família de proprietários rurais, foi capaz de arregimentar índios e alguns veteranos da Cabanada em 1848. A repressão em Água Preta foi brutal. Pedro Ivo se entregou, mas morreu no mar em circunstâncias misteriosas e terminou imortalizado num poema de Castro Alves.
-
O quarto nome da Praieira foi dado pelo liberal Borges da Fonseca: Revolução de Novembro. Para ele, “estava aberta a luta entre o poder corruptor do Brasil e o povo”. Enquanto os praieiros estiveram no poder, ele foi seu maior adversário, acusando o governo provincial de desonesto, servil à Coroa e conivente com criminosos e traficantes de escravos. Era muito popular entre os artesãos e empregados do comércio no Recife, em Olinda e em algumas povoações do interior. Os praieiros lhe atribuíam a culpa pelas manifestações mais violentas em favor da nacionalização do comércio a retalho. Esta reivindicação era o seu ponto de encontro com os praieiros. Apesar de ter sido preso pelo governo praieiro, Borges aderiu à luta armada levando tropas consigo, e depois da morte de Nunes Machado no combate do Recife, assumiu o comando da rebelião. Para ele, a força motora do movimento era o “povo”. As demandas da “Revolução de Novembro” continham nuanças “francesas”, como se dizia na época, e foram sintetizadas no manifesto de sua autoria, o mais radical da revolta, publicado na acanhada povoação de Limoeiro, mas pretensiosamente chamado de “Ao Mundo”. Renegado pelos deputados praieiros, o manifesto foi assinado por vários senhores de engenho, o que demonstra a capacidade de persuasão de Borges. Nele era exigido “o voto livre e universal do povo brasileiro; o trabalho como garantia de vida para o cidadão brasileiro; o comércio a retalho só para os cidadãos brasileiros; extinção da lei do juro convencional; extinção do atual sistema de recrutamento.”
Nenhum dos nomes da Praieira abarca sozinho todos os seus significados. Mas cada um deles funciona como um prisma para observarmos as múltiplas faces do movimento, expressando as motivações que moveram os participantes do 1848 pernambucano. A Praieira é o amálgama dos seus nomes. Foi revolta, insurreição e até “revolução”, se pudermos descontar os fascinantes exageros retóricos de Borges da Fonseca. No fim, dentro do leque de intenções dos rebeldes, as causas mais nobres foram derrotadas. Resta-nos o encanto de saber que 1848 também foi aqui.
Marcus de Carvalho é professor de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor de Liberdade, Rotinas e Rupturas do Escravismo, Recife, 1822-1850. (UFPE, 1998).
Revolução à européia com toque tropical
Marcus J. M. de Carvalho