Revolução francesa nos trópicos

Heloísa Pontes

  • Falta de opção. Esta é, provavelmente, a melhor explicação para o sucesso de companhias francesas de teatro que se sucediam nos palcos da América Latina com seus espetáculos caça-níqueis. Todos esperavam novidades, sem saber exatamente de onde viriam. E a novidade se materializou numa noite de 1941, quando o público ocupou o Theatro Municipal de São Paulo, onde veria alguma coisa diferente. No lugar de cenários e peças arranjados de última hora, encenadas por atores escolhidos ao acaso, chegara, enfim, o momento de estrear abaixo do equador a companhia dirigida por Louis Jouvet (1887-1951), ator e diretor famoso que contribuíra decisivamente para a renovação da cena teatral francesa.
     Jouvet era aguardado por todo um grupo de jovens, universitários em sua maioria, que pouco depois faria a sua parte na transformação do teatro brasileiro. Além, é claro, do público que habitualmente comparecia ao Municipal nessas ocasiões, misturando o interesse pelas artes com alta dose de exibicionismo mundano. Pela primeira vez eles teriam a oportunidade de ver o que a seleta plateia carioca já vira três semanas antes: tradição e inovação na interpretação de um elenco fixo de atores. Se a condição de capital federal permitira aos cariocas entrar em contato mais cedo com o símbolo francês da inovação teatral, a Segunda Guerra (1939-1945) se encarregaria de sanar, para os paulistas, essa lacuna cultural, entre outras.

     Nas palavras de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), que na época ensaiava os primeiros passos como escritora, “o início da guerra, paradoxalmente, foi um período de grande efervescência cultural. Com o bloqueio do Atlântico, as companhias de teatro e balé que haviam saído da Europa para as turnês costumeiras pela América do Sul ficaram obrigadas a circular, indefinidamente, pelas grandes capitais: Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu, Buenos Aires”.
    Por caminhos enviesados, a guerra contribuiria para acertar os ponteiros do teatro brasileiro com o relógio da cena internacional. Após a ocupação da França pelos alemães, Jouvet e sua companhia partiram para a América do Sul. Recusando-se a cumprir o programa cultural estabelecido pelos nazistas, ele deixou a Europa no dia 6 de junho de 1941. De Lisboa, embarcou com mais 25 pessoas, entre atores e técnicos. A guerra, a política cultural francesa, a acolhida entusiástica que a companhia receberia na América Latina, a apaixonada relação de Jouvet com a bela Madeleine Ozeray (1910-1988), sua amante e primeira atriz da companhia – tudo isso contribuiu para a longevidade da turnê, que se estendeu por quase quatro anos.

    A temporada provou que o trabalho do diretor é essencial para garantir, segundo o crítico de teatro Jean-Jacques Roubine, “a unidade, a coesão interna e a dinâmica da realização cênica”.  Sem isso, a seu ver, o espetáculo deixa de ser uma totalidade para aparecer como uma sobreposição de “cenários e personagens, objetos e discursos, luzes e gestos”. Uma verdadeira lição prática sobre a importância e a função desse profissional, que estreara nos palcos europeus no final do século XIX e chegara ao Brasil com quase meio século de atraso.

    O diretor ajudou a subverter a hierarquia de valores que sustentava nosso panorama teatral, cujos espetáculos, segundo o crítico Décio de Almeida Prado, “organizavam-se, por assim dizer, das partes para o todo. Cada ator interpretava a seu modo o seu papel, e daí resultava o conjunto – quando resultava”. Depois da iluminadora temporada de Jouvet no país, os mais aficionados aprenderam, nas palavras do ator Ruy Affonso, a “conhecer o teatro por dentro, para ver como um texto se transforma em mecanismo vivo”. Esse aprendizado está na base do estabelecimento das rotinas de trabalho do teatro moderno. Convenção teatral, valorização do texto, soberania do autor, intérpretes preparados e bem dirigidos foram as marcas introduzidas por Jouvet no teatro brasileiro.

      Quando saiu da França, aos 54 anos, era um ator popular e um diretor renomado. E foi com essa experiência acumulada que ele e sua companhia receberam a acolhida entusiasmada das plateias latino-americanas. Apresentando-se em onze países do continente, excursionando como os grupos mambembes de outrora, foram obrigados a procurar uma justificativa mais ampla para as próprias vidas. Nas palavras de Jouvet, “ao procurar um sentido para minha vida, encontrei o sentido da minha profissão”.

    Teatro e política estiveram juntos nesse empreendimento. A encenação de um dos símbolos da tradição cultural francesa, o dramaturgo Molière (1622-1673), representado em sua própria língua para plateias francófilas da América Latina, e a acolhida efusiva que receberam foram a prova do reconhecimento. Também foram o sinal seguro de que palavras como liberdade, igualdade e fraternidade ganharam força renovada no contexto da guerra. O apoio do público às lutas travadas pela Resistência, o movimento armado de franceses que lutavam contra o nazismo e a ocupação da França, foi simbolicamente transferido para a companhia de Jouvet. Em inúmeros espetáculos, plateias locais misturaram os aplausos ao canto da “Marselhesa”. O hino francês restituía, para o público e para os atores, a liberdade e a soberania francesas ameaçadas. Com a libertação de Paris em agosto de 1944, Jouvet volta à capital francesa em fevereiro de 1945, depois de quase quatro anos de ausência.

    Sua passagem pelo Brasil faz parte da história do nosso teatro. Em 1942, durante os sete meses em que residiu no Rio, recebia em seu apartamento atores amadores empenhados em adotar os ideários do teatro moderno. Entre eles, os integrantes do grupo Os Comediantes. Numa dessas visitas, relembrou o crítico teatral Gustavo Dória (1910-1979), eles voltaram “com a verdade estarrecedora: qualquer iniciativa que pretendesse fixar no Brasil um teatro de qualidade nada estaria realizando enquanto não prestigiasse a literatura nacional! O ponto de partida era o autor brasileiro”.

    O conselho de Jouvet logo se tornou ideia fixa. Era preciso encontrar um dramaturgo brasileiro à altura da pretensão do grupo e de seu diretor, o polonês Zbigniew Ziembinski (1908-1978) que, fugindo da guerra, chegara ao Rio em julho de 1941, um dia antes de Jouvet. Eles compartilharam o mesmo ponto de vista em relação à importância do autor nacional. A este conselho some-se um grupo de amadores empenhados na renovação da cena teatral, um autor ainda desconhecido – Nelson Rodrigues (1912-1980) –, e o resultado é o marco simbólico do moderno teatro brasileiro.

    A dicção expressionista que Ziembinski imprimiu à montagem de “Vestido de Noiva”, de Rodrigues, em 1943, a atuação dos grupos amadores e as temporadas de Jouvet desenharam o quadro inicial dessa renovação. Ela seria completada com a criação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) em 1948, com companhias montadas a partir dele e com a presença dos diretores de teatro de nacionalidades diversas que para cá vieram, fugindo da guerra e de suas consequências. E também com a atriz francesa Henriette Morineau (1908-1990), radicada no Brasil.

     Em 1931, quando chegou ao Rio de Janeiro para se casar com George Morineau, a atriz, que já atuara na França, não podia imaginar que conquistaria um lugar importante na história do teatro brasileiro. Não por falta de talento ou de preparo, mas pela decisão de se afastar dos palcos. Essa decisão durou até 1942, quando foi apresentada a Jouvet e recebeu o convite para integrar-se à companhia.

    A resposta positiva ao convite era um alento para ambos. Para Morineau porque garantiu sua primeira atuação no Brasil como atriz, na única língua que dominava, o francês. Para Jouvet porque, com o fim da relação com Madeleine Ozeray, poderia contar com uma atriz formada na melhor tradição teatral dos clássicos franceses. Depois de se apresentar no Chile, Henriette Morineau, em vez de prosseguir a viagem com a companhia de Jouvet, voltou ao Brasil. Em 1946, fundou Os Artistas Unidos, grupo no qual atuou como atriz e diretora. Em sua companhia, a maior intérprete viva do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, deu a guinada necessária para sua profissionalização graças à influência decisiva que dela recebera. Em suas palavras, “ela me fez ver que eu tinha encontrado uma profissão qualificada, disciplinada, consequente. (...) Ela não permitia intimidades, mas forjava sempre um caráter teatral. A sensação que eu tinha era de estar diante de um primeiro-ministro. Fui sua súdita agradecida”.

    Como toda grande atriz para quem a vida só é completa no palco, Henriette Morineau, no início dos seus 70 anos, quando fez o papel de Maude em “Ensina-me a viver”, de Colin Higgins, chegou a acalentar a fantasia de morrer representando. Não como a personagem que se suicidava, mas de morte natural. Nisso também Jouvet lhe servira de inspiração. Em 1951, em Paris e no meio de um ensaio, ele se sentiu mal e morreu pouco depois, em consequência de um infarto fulminante. Mas se o sonho de morrer no palco não se realizou para Morineau, ela teve, sim, o reconhecimento em vida por parte de todos que acompanharam sua bem-sucedida carreira no Brasil.

    Heloísa Pontes é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e autora de Intérpretes da Metrópole: história social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual (Edusp/Fapesp, 2011).



    Saiba Mais - Bibliografia

    DÓRIA, Gustavo. “Os Comediantes”. In: Dionysos, Rio de Janeiro, ano XXIV, nº 22, 1975 (edição monográfica dedicada ao grupo Os Comediantes).
    GUIMARÃES, Teresa Paes Leme. “Louis Jouvet no Brasil (1941-42): um mestre francês nas raízes da renovação teatral da década de 40”. São Paulo: dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo, 1981.
    PRADO, Décio de Almeida. Peças, pessoas, personagens: o teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
    ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução e apresentação de Yan Michalski, 2a. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.