Roberto Conduru

Marcello Scarrone

  • (Foto: Felipe Varanda)“Trabalhei um curto período de tempo como arquiteto, mas eu não tenho habilidade: costumo dizer que sou formado em arquitetura, não sou um arquiteto”. Assim, Roberto Conduru declara como amadureceu, ainda durante sua graduação em Arquitetura, a paixão pela história da arte, que iria conduzi-lo, em seguida, para um mestrado e um doutorado na disciplina de eleição, obtidos em departamentos de História, seguindo de certa forma as pegadas de nomes ilustres do passado, como Araújo Porto Alegre, que eram ao mesmo tempo homens da Academia de Belas Artes e membros do Instituto Histórico.
     
    Com interesses que variam de artistas como Antonio Dias e Willys de Castro à arquitetura racionalista, passando pelas relações entre arte, África e Brasil, Conduru, que é professor de Teoria e História da Arte na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, discute a importância e o significado do cânone em campo artístico, contestando hierarquias consagradas e escolhas de percursos expositivos de museus. 
     
    Lamentando uma história ainda centrada no hemisfério norte e que aguarda uma contribuição mais significativa e consistente da arte produzida fora do eixo Europa-Estados Unidos, ele acena para o caso brasileiro, ou a arte relacionada ao Brasil. “Eu acho interessante esse processo de desprovincialização da história da arte, ou descolamento da historiografia da arte do projeto nacionalista”, afirma ao longo da entrevista. Afinal, se “o título é em inglês, o artista é da Paraíba, o papel é do Nepal... isso é arte brasileira, arte inglesa, ou arte tibetana?”. Ao leitor, as respostas. 
     
    Revista de História A história da arte está em transformação?
     
    Roberto Conduru Ela ainda é centrada no eixo Europa-Estados Unidos. Hoje o desafio é produzir uma história da arte efetivamente mundial. Entre nós, apesar dos esforços de constituir uma história da arte descentrada, como no Departamento de Teoria e História da Arte aqui na Uerj, tradicionalmente há uma ênfase no estudo da história da arte no Brasil, até porque é mesmo importante pensar a arte no Brasil. O desafio é romper com essa condição insular e efetivamente constituir um arquipélago no qual utopicamente todas as ilhas tenham o mesmo poder. 
     
    RH Faz sentido o conceito de história da arte nacional? 
     
    RC Acho que uma história nacional da arte não faz sentido. Mas também não me parece fazer sentido uma história da arte que tomasse o mundo todo como uma rede de pontos indiferenciados. A questão é pensar especificidades do que se constitui como o Brasil. Não dá para olhar a produção anterior à presença portuguesa, anterior ao início da gestação do que se considera Brasil, e usar as pinturas sobre rochas, ou então a arte plumária, a arquitetura dos tupis-guaranis e dizer que isso é a raiz da arte nacional. Não. Mas o processo histórico nesta parte do mundo determina especificidades no campo artístico. Um dos problemas da história da arte no Brasil é que geralmente, até por uma carência de recursos financeiros, as pessoas acabam se dedicando a estudar a arte do local onde habitam. Enquanto isso, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, pesquisadores estudam não apenas o seu lugar, mas regiões muito distantes. Seria interessante acontecer o mesmo aqui, e já vem acontecendo. Acho positivo esse processo de desprovincialização da história da arte, ou de descolamento da historiografia da arte de um projeto nacionalista. E é importante porque acontece num momento em que mais historiadores se interessam pela arte produzida no Brasil, o que tem gerado uma historiografia por vezes bastante complicada, por vezes muito simplória, por vezes muito instigante. A arte vive um momento que, ainda longe do ideal, é bom, é rico, com possibilidades de diálogo e confronto entre a produção de fora e a produção interna. E uma cena interna em que as pessoas estão olhando campos variados e também para fora do Brasil. 
     
    RH Um de seus interesses é a arte afro-brasileira. Qual é a função do adjetivo “afro”? Não bastaria dizer brasileira?
     
    RC Eu tenho um livro cujo nome é Arte afro-brasileira. Foi uma escolha da editora. O título da minha pesquisa não é este: costumo dizer que estudo relações entre arte, África e Brasil, entendendo arte, África e Brasil como três problemas. Monto uma equação com estes três problemas e isso gera muitos objetos, muitas instituições, muitos agentes para serem pensados. O nome “afro-brasileiro” vem sendo usado há muito tempo, desde quando Mariano Carneiro da Cunha escreveu um capítulo chamado “Arte afro-brasileira” para a História geral da arte no Brasil (1983), organizada pelo Walter Zanini. O termo é usado em vários livros, em várias disciplinas. Aqui na Uerj nós não usamos, hoje se chama “Arte, África e Brasil”. Concordo que não é preciso este prefixo afro, na medida em que não existe Brasil sem a presença afro, então por que explicitar isso? Por outro lado, há necessidade exatamente de uma ênfase, daí o gosto pelo excesso e a marcação. “Luso-brasileira” seria a arquitetura que tem a marca lusa, a matriz lusa. “Afro-brasileira” seria aquilo que é marcado pela dimensão afro. Nem tudo é, ainda que você possa discutir em que medida a língua, a música, a culinária não estão afetadas, no todo ou em parte. 
     
    RH Este é um dilema para qualquer tentativa de categorização nas artes?
     
    RC A história da arte é uma disciplina terrível porque ela vive trabalhando a partir desses rótulos, desses nomes, dos estilos. A gente tem sempre que lembrar que estilo é uma invenção da época da taxonomia, e a história da arte guarda muito esse ranço de uma taxonomia oitocentista, daí todos esses nomes: barroco, rococó, afro-brasileira, cubismo. São nomes que nascem com sentido pejorativo, jocoso, e ficam. Isto é naturalizado na linguagem e não se percebe toda a violência, a agressividade embutida nesse discurso, mesmo que seja apaziguada com o tempo. Muitos projetos de história da arte deveriam se desvencilhar disso, seria necessário questionar mesmo a arte brasileira. Quando estudei na PUC, o Carlo Zilio, coordenador do curso de especialização, tornava praticamente impossível escrever “arte brasileira”. Era “arte no Brasil”, uma maneira de fugir dessa ideia do nacionalismo na arte. A arte é universal e ela acontece no Brasil, ou não acontece. Hoje penso até um pouco diferente, porque há produções que não são feitas no Brasil, não acontecem no Brasil, mas estão relacionadas ao Brasil. Então seria algo como dizer “arte relacionada ao Brasil”, e não propriamente arte brasileira, nem arte no Brasil. Antonio Dias tem um texto do início dos anos 80 em que diz: “A arte brasileira não existe”.
     
    RH Como ele chegou a essa conclusão?
     
    RC Em 1977 ele vai para o Nepal, porque está querendo imprimir o álbum Trama, e trabalha com produtores de papel artesanal. A série se chama The Illustration of Art. O título é em inglês, o artista é da Paraíba, o papel é do Nepal... isto é arte brasileira, arte inglesa ou arte tibetana? Esta produção está relacionada à Europa? Está, pois ele vivia em Milão naquela época. Tem toda uma discussão do estatuto da arte, está vinculada à arte conceitual, e ao mesmo tempo está vinculada ao Brasil por uma série de questões do próprio trabalho do Antonio Dias. Toda tentativa do século XIX de classificar, de categorizar estilos pelo mundo todo, foi mesmo uma vontade de constituir uma história mundial. O problema é que essa história era – e ainda é em grande parte, e vai ser difícil deixar de ser – uma história centrada na Europa e nos Estados Unidos. A ação a partir do Brasil e de outras regiões é fundamental para tentar escrever outra história, constituir uma história talvez mais livre de centralidades e de totalidades. 
     
    RH Como se deu seu percurso da arquitetura para a história da arte? 
     
    RC Os cursos de arquitetura no Brasil são, em geral, muito abrangentes. Há cadeiras ligadas à parte tecnológica, cadeiras dedicadas ao projeto de arquitetura, ao urbanismo, e cadeiras dedicadas à história da arte e da arquitetura. O meu interesse era este, e comecei a trabalhar em pesquisa de história da arte, história da arquitetura. Cheguei a trabalhar um curto período como arquiteto, mas não tenho habilidade. Costumo dizer que sou formado em arquitetura, não sou um arquiteto.
     
    RH Como surgiu o interesse por Willys de Castro, artista ligado ao neoconcretismo? 
     
    RC No meu doutorado, estudei arquitetura racionalista do Rio de Janeiro, na UFF. Vejo isso como um projeto maior de estudo das vertentes construtivas da arte moderna no Brasil: no caso de Willys de Castro, a partir de São Paulo; no caso da arquitetura racionalista, no Rio de Janeiro. A vertente construtiva pensa a arte como um modo de transformação do real, da realidade, do mundo. 
     
    RH Seu orientador de mestrado, Ronaldo Brito, tem um livro sobre o neoconcretismo, e se queixa que ficou praticamente sem resposta do mundo acadêmico em geral. Por que isso acontece? 
     
    RC É um fato que no Brasil muitos livros são publicados, se transformam em clássicos e ninguém responde a eles. A resposta é o silêncio, e um silêncio problemático. Uma das angústias de quem produz reflexão e crítica sobre arte no Brasil é o silêncio. São poucos os indícios de debate. Há 25 ou 20 anos, você não tinha o volume de artigos e livros de hoje, nem a mesma produção de dissertações e teses. Hoje você tem isso, mas não tem um debate público. Talvez não haja debate público sobre outros campos da cultura também. O que acontece no campo da história da arte é parte desse todo, em que há reflexão, mas pouco debate. 
     
    RH Para quem quer se dedicar à história da arte, como está o percurso formativo disponível no Brasil?
     
    RC O curso de graduação em História da Arte aqui na Uerj é o mais antigo no Brasil, criado no início dos anos 1960 no Instituto de Belas Artes para formar professores. Em 2002, conseguimos que esse curso, além de licenciatura, passasse a ter bacharelado também. Há cursos de História da Arte na Unifesp, na Federal do Rio Grande do Sul, na UFRJ, agora na Universidade de Brasília, e há notícia de outros cursos pensados para outras universidades. Além disso, em cursos de História você pode ter uma formação com pesquisadores que, a partir da história, refletem sobre a arte. Para não falar de espaços tradicionais como faculdades de arquitetura, escolas de Belas Artes. Pense em um artista como Manuel de Araújo Porto Alegre: ele atuava na Academia de Belas Artes e atuava no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ou seja, tanto escrevia como projetava e pintava. Ernesto da Cunha Araujo Viana, autor de obras significativas de história da arte, também atuava na academia, acho que na Escola Nacional de Belas Artes, e no Instituto Histórico. O campo da história da arte no Brasil foi sempre produzido a partir de instituições de arte e instituições de história. É um fenômeno dos anos 2000, da década passada, a emergência destes cursos específicos de História da Arte. E isso é muito importante, mas também há departamentos de História que vêm se dedicando à reflexão sobre a arte. Para citar exemplos caros para mim: o Laboratório de História da Iconografia na UFF, com cujos professores estudei, Ana Maria Mauad, Paulo Knauss, e também o professor Aldrin Moura de Figueiredo, da Universidade Federal do Pará. Ou então o Núcleo de História da Universidade Federal de Santa Catarina, e um pesquisador como Sergio Miceli [da USP], que vem do campo das ciências sociais e tem uma reflexão também sobre arte. Acho isso muito rico em termos de possibilidade de formação, porque a arte não é de ninguém, a arte é de todo mundo a princípio, então é bom que também a reflexão sobre arte o seja. 
     
    RH E o ensino nas escolas? 
     
    RC Não tenho conhecimento, além de reencontrar estudantes que se formaram e hoje são professores. Eles enfrentam muitas dificuldades, mas é fato que no Ensino Fundamental você não tem ensino de História da Arte. No Ensino Médio você tem, mas é muito pouco em relação ao que deveria ter. É plenamente possível começar a transmitir conteúdos de arte em perspectiva histórica, sociológica ou antropológica desde a idade mais tenra, desde o Ensino Fundamental. A arte envolve uma reflexividade que é fundamental desde quando as crianças começam a pensar sobre o mundo. 
     
    RH No mundo regido pelas regras de mercado, as artes viraram um luxo? 
     
    RC Arte não é um luxo, é uma necessidade do espírito. E se arquitetura é uma necessidade do ponto de vista da proteção do corpo humano, não é uma necessidade apenas por isso. Enquanto arte, a arquitetura também atende às necessidade do espírito. É curioso porque, mesmo sem o conceito de arte formulado a partir da Europa, quase todas as sociedades têm um sistema simbólico, no qual a dimensão estética se faz presente. A ideia da figuração fala de uma necessidade humana, não a necessidade biológica, mas uma necessidade psíquica de representação, de reflexividade. Todas as artes, e a arquitetura de maneira particular, sofrem com o mundo da mercadoria e o mundo da espetacularização da vida. As artes não são mais apenas aquelas categorias tradicionais: arte hoje pode ser um objeto transformado, uma pedra deslocada. Muita coisa vem sendo feita em arte. A arquitetura que apenas atende a uma necessidade funcional não é digna deste nome. E há obras de arquitetura que atendem mal às suas funções, vide as de Oscar Niemeyer, particularmente interessantes a este respeito: funcionam muito mais simbolicamente do que em termos funcionais. 
     
    RH O que pensa das intervenções urbanísticas e arquitetônicas que transformam o cenário das cidades? 
     
    RC A cidade é uma construção social no tempo. Há escolha entre o que permanece e o que não permanece. O problema, a meu ver, é em que medida isso é democrático ou não, se é autoritário ou não. Em que medida a decisão sobre o que sobrevive e o que não sobrevive é fundamentada numa visão da maioria da população daquela cidade, e não a partir de caprichos individuais ou de determinados grupos? É impossível que uma cidade seja congelada no tempo, que apenas vá sendo acrescida de novos elementos. À medida que vai sendo transformada, até para construir novos edifícios e novos espaços, espaços vazios são destruídos. Mas até a decisão entre manter espaços de floresta, de mar, precisa ser tomada coletivamente, ou a partir de representantes da coletividade. O Rio de Janeiro é exemplo disto.
     
    RH Como?  
     
    RC Para citar um dos meus objetos de estudo no doutorado: por que o edifício do Instituto de Puericultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro é tão maltratado? Por que uma joia da arquitetura moderna do Brasil vem sendo paulatinamente destruída? Aquele edifício é um exemplo do processo de apagamento de algumas vertentes do movimento moderno de arquitetura ao privilegiar outras vertentes desse movimento, cujas obras são tratadas como emblemas que expressam todo o movimento, embora estejam longe disto.
     
    RH Qual é a papel do historiador da arte nesse debate? 
     
    RC A discussão de história da arte é sempre uma discussão de valor, porque a arte é um valor entre coisas, ações, ideias, feitos. O historiador precisa partir de uma reflexão sobre os valores que em última instância ele está defendendo, ou ao menos criticando. Ao escolher a arquitetura racionalista dentro do modernismo, ao estudar relações de arte com África e Brasil, venho procurando objetos que não são postos no centro dos valores considerados pela história da arte mais difundida. Na arquitetura moderna no Rio de Janeiro, os nomes são Lucio Costa, Oscar Niemeyer, basicamente isso. Aí você parte para Afonso Eduardo Reidy, alguns outros, os racionalistas, e depois Jorge Moreira, Álvaro Vital Brazil, sempre vistos num plano muito secundário. Não há estudos, as obras não são preservadas. Muito do trabalho da história da arte é discutir esses valores, é discutir o cânone: por que tais obras são consideradas as obras-primas, as obras maiores, por que essa hierarquia? Por que não se exibem os objetos provenientes da África que existem em coleções no Brasil? O Museu Nacional de Belas Artes tem uma coleção de peças da África, por que não a exibem? O silêncio do museu significa o quê? É lógico que o historiador da arte tem que discutir esses silêncios, as hierarquias, os valores instituídos. Não que o cânone não precise ser estudado, ao contrário: também precisa, tudo precisa ser estudado. Até para discutir se aquilo deve permanecer sendo cânone ou não, se ocupa o ponto máximo da hierarquia no campo artístico, se é para existir essa hierarquia ou não.
     
    RH Quem define os cânones da arte?
     
    RC O cânone da arte se cristaliza em exposições, em coleções, em publicações, nos debates. Ao decidir o que colecionar ou não, o que preservar como bem nacional, mundial, estadual, local, você faz uma diferenciação e determina que algo vai sobreviver e algo não. E mesmo daquilo que é preservado e colecionado nem tudo é exposto todo o tempo, nem tudo aparece em livro, em artigo. Esse é um processo histórico: existem obras que têm preeminência num momento, e em outro momento deixam de ter. 
     
    RH Esse debate acontece lá fora também?
     
    RC É curioso você perceber museus que periodicamente reveem as exposições de longa duração, que seriam os grandes discursos narrativos da história da arte. Por exemplo, o Museu de Arte Moderna de Nova York tenta mudar a visão hegemônica que já teve, e ainda tem: a sala brasileira e a sala mexicana são anexos do caminho principal do museu, da narrativa principal. É um modo de inclusão, ainda periférico, mas não se pode negar que houve uma discussão. Vinte anos atrás, no MoMA, você não encontraria nenhuma peça da Lygia Pape, como eu vi lá recentemente. Para não falar de outros artistas do Brasil e de outras regiões, presentes, mas com uma presença marginal, de coadjuvante da grande narrativa. Quando eu vi, estava numa sala que tem uma escada, um espaço um tanto auxiliar, de conexão daquela grande narrativa de um andar com o outro andar, um momento de passagem, uma coisa marginal: “Divirtam-se aqui, enquanto sobem a escada, olhem isso”. É necessário que haja uma crítica desses valores e uma discussão sobre eles.