Rosas negras

  • Isabel Generício ainda cultiva rosas em sua casa, no bairro de Marechal Rondon, em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre (RS). Quando seus avós Rosalina e João viviam ali, nas primeiras décadas do século XX, roseiras e hortas garantiam o sustento de toda a família. Hoje, os filhos, netos e bisnetos não sobrevivem das plantações. Mas sua Chácara das Rosas, que agora ocupa menos de meio hectare, acaba de ganhar o título de comunidade remanescente quilombola.

    As origens da chácara estão em outro quilombo das redondezas, na zona rural do município de Gravataí. Foi ali que os ex-escravos Manoel Barbosa, que lutou na Guerra do Paraguai, e Maria Luiza Paim de Andrade adquiriram uma porção de terras e formaram uma pequena comunidade no final do século XIX. Uma das doze filhas do casal, Rosalina Barbosa de Jesus ficou no local até os 18 anos, quando se casou com João Maria Generício de Jesus, também filho de ex-escravos. Dali, os jovens noivos partiram para uma pequena roça no então distrito de Canoas. “A região era, originalmente, uma fazenda da família Pinto Bandeira que foi loteada pelos herdeiros e ocupada por pessoas de baixa renda. Muitas famílias negras estavam ligadas aos clubes negros e aos primeiros blocos de carnaval de rua”, conta a antropóloga Ana Paula Carvalho, analista de Reforma e Desenvolvimento Agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e autora de uma dissertação sobre a comunidade.

    Até a década de 1970, os descendentes de João e Rosalina – que hoje constituem mais de 20 famílias – prosseguiam com a venda de flores e verduras. Mas a expansão urbana e a especulação imobiliária mudaram muita coisa por ali. De zona rural, o bairro de Marechal Rondon passou a endereço de luxo, com grandes prédios e casarões. “A comunidade ficou ilhada e contrastava com seu entorno, fosse pela cor da pele, fosse pelas condições de vida, passando a ser chamada de ‘Planeta dos Macacos’”, diz Ana Paula Carvalho. Não faltaram ofertas para a compra da Chácara. Mas os herdeiros de Rosalina resistiram. “Nós nunca nos traímos. Nunca houve uma situação em que um tio ou uma tia decidissem vender alguma terra sem os outros saberem”, assegura a neta Isabel Generício, 34 anos, presidente da Associação dos Moradores da Chácara das Rosas.

    Não foi à toa que a família decidiu reivindicar o título de território quilombola em 2005. Primeiro, a própria comunidade teve que se identificar como remanescente de um quilombo. Só assim a propriedade recebeu a certidão da Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura. Em seguida, pesquisadores contratados pelo Incra fizeram um laudo histórico-antropológico. Depois da aprovação, houve um período para contestações, mas nenhum vizinho reclamou. O último passo foi a concessão do título de propriedade pelo Incra. “Com a certificação, a comunidade pode se beneficiar de políticas públicas formuladas por diversos ministérios. O MinC, por exemplo, pode instalar pontos de leitura com recorte específico para os quilombolas”, lembra Maurício Reis, diretor do Departamento do Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Palmares.

    Isabel Generício espera que a titulação sirva de exemplo para outros grupos: “A Chácara venceu. Agora, poderá ser um exemplo para novas ações e movimentos”.