Rumo ao Oeste

Cristiane Kozlowsky, Newman di Carlo Caldeira e Rafael de Almeida Daltro Bosisio

  • Os imigrantes da Bolívia foram os que mais se beneficiaram da lei da anistia para estrangeiros que entrou em vigor em 2009. Mais de 22 mil bolivianos se apresentaram à Polícia Federal para legalizar sua estada no Brasil. Mas essa rota migratória já foi inversa: no século XIX, pessoas oriundas do Brasil rumavam para a Bolívia.

    A Cabanagem, rebelião popular que ocorreu na província do Pará de 1835 a 1840, foi violentamente reprimida pelas tropas legalistas. O enfrentamento causou um grande número de baixas – aproximadamente 30 mil pessoas – e, na esperança de escapar das regiões de conflito, parte da população local traçou rotas de migração. Os escravos transformados em soldados para lutar contra os cabanos aproveitaram a oportunidade de fugir e, deste modo, também se tornaram desertores.

    Inicialmente, quem deixava seu lugar de origem se estabelecia ao longo do curso dos rios ou seguia para a província de Mato Grosso. Dessa forma, os desdobramentos do conflito possibilitavam a ligação entre regiões imensas, pois, apesar de serem limítrofes e manterem relações comerciais desde o período colonial, eram geograficamente distantes.

    O presidente da província, Antônio Pedro de Alencastro (1834-1836 e 1859-1862), demonstrou sua preocupação com a chegada dos “anarquistas do norte” ao reunir uma tropa com poder de polícia, que chamou de “Cívicos da Reserva”. Uma de suas funções era zelar pela tranquilidade em Cuiabá e repelir a entrada de indivíduos vindos do Pará. Mesmo assim, esses escravos traçaram rotas de fuga que se estenderam por limites ainda mais amplos, ultrapassando as fronteiras do Império.

    Nas fugas para o exterior, um dos destinos escolhidos pelos cativos foi a República da Bolívia, que conquistou sua independência em 1825, depois da batalha de Ayacucho. Logo após o advento da República, houve a proibição do comércio internacional de escravos e a abolição do regime de trabalho servil. A adoção do princípio de “território livre”, segundo o qual os homens se desprendiam dos grilhões da escravidão no momento em que pisavam no solo de um país que não adotasse essa prática, serviu de estímulo e deu esperança aos escravos fugidos.

    Essa movimentação desencadeou uma série de protestos pedindo a extradição dessas pessoas. O diplomata Duarte da Ponte Ribeiro (1795-1878) iniciou, em 1829, conversações com o governo boliviano para que os cativos asilados fossem extraditados. Entretanto, o caso ficou em aberto porque não havia tratados que regulamentassem a questão.

    Em 1845, Mariano Apinajé, um brasileiro que vivia na Bolívia, enviou uma carta ao diplomata do Brasil João da Costa Rego Monteiro afirmando que 27 escravos das províncias do Pará e de Mato Grosso haviam chegado ao povoado de Exaltación, no departamiento de Beni. Este foi um caso de fuga que poderia se confundir com os demais, exceto por um detalhe: a presença de escravos-soldados desertores entre os asilados. A reclamação brasileira se apoiou no fato de alguns dos fugitivos terem lutado ao lado das tropas legalistas contra os cabanos no Pará. O diplomata caracterizou o asilo de desertores como algo não previsto na legislação boliviana. O argumento suscitou dúvidas, e o governo boliviano resolveu investigar a condição jurídica dos asilados. Rafael de la Borda, representante da administração de Beni, e D. Ramón Eustaquio Durán, corregedor de Exaltación, conduziram as averiguações.

    O ministro das Relações Exteriores da Bolívia, Tomás Frias Ametller (1802-1882) – que havia solicitado a investigação –, orientou Rego Monteiro a oficializar o pedido de extradição. Deveriam ser relacionados os nomes dos fugitivos e suas origens, pois, caso a presença de desertores entre os asilados fosse comprovada, o governo boliviano se comprometeria a repatriá-los. O diplomata seguiu as instruções, mas as longas distâncias e os problemas de comunicação eram fatores de considerável dificuldade. Durante as negociações, Rego Monteiro garantiu que a repatriação não implicaria castigos físicos como represália pela fuga.

    No decorrer das investigações, observou-se que, dos 27 asilados, mais da metade vinha das localidades de Mura e Rio Negro, regiões envolvidas no conflito. Os escravos-soldados desertores afirmaram que a principal motivação para a travessia havia sido o descumprimento das promessas feitas pelo governo da província do Pará. O combinado era: os escravos que lutassem contra os cabanos fariam jus a um tempo de liberdade equivalente ao tempo de serviço, funcionando como uma espécie de “descanso” da escravidão, durante o qual poderiam trabalhar “sobre si” (para si) e, assim, terem a possibilidade de juntar dinheiro para comprar sua alforria. A chamada liberdade “temporária” acabou sendo ignorada pelo governo da província após a vitória contra os cabanos, e os cativos milicianos foram entregues aos seus antigos senhores ou receberam duros castigos por reclamar os direitos que pensavam ter adquirido.

    Quando interrogados sobre os meios utilizados e a rota de fuga, os asilados responderam que haviam margeado o Rio Pará até a confluência com o Rio Beni a pé, ao longo de quatro meses, sem contar com a ajuda de ninguém e sem usar canoas. Olhando um mapa da região, é possível supor que também foi percorrido um trecho dos rios Amazonas e Madeira, o que totaliza cerca de 4.500 quilômetros de caminhada. A longa distância dá uma vaga ideia da dificuldade que foi cruzar regiões ocupadas por tribos indígenas – que poderiam ser hostis ou não –, feras e quilombos, onde corriam o risco de serem reescravizados por quilombolas. Para sobreviver, eles se valeram da pesca e da coleta de frutas.

    Curiosamente, os cativos pretendiam recorrer à proteção de seus antigos senhores caso os planos fossem frustrados ainda no Brasil. Talvez, por acreditar que receberiam uma pena mais branda, eles preferissem um tratamento de escravos fugitivos, e não de desertores. Ou, quem sabe, invocar a condição de escravo para retomar sua vida e, assim, iludir o domínio do Estado. Tudo isso reforça a ideia do medo que os cativos sentiam do destino incerto, mas também indica que toleravam o retorno a uma situação familiar, na qual poderiam retomar atividades já conhecidas.

    É possível que, para tentar influenciar a decisão dos comissários, os asilados recorressem frequentemente à imagem de obediência e disciplina no cumprimento das ordens recebidas durante o período em que tinham lutado ao lado das tropas legalistas.  Todos disseram que a fuga fora planejada e baseada em notícias, vindas do Rio de Janeiro, de que os escravos se beneficiariam das leis bolivianas no momento em que cruzassem a fronteira. Na versão dos cativos, a esperança de conseguir a liberdade compensava os riscos da travessia. Na maioria dos depoimentos, a Bolívia – chamada de “terra da liberdade” – aparecia como a pátria escolhida pelos seus corações para morar e obter a tão sonhada paz.

    No relatório final de Rafael de la Borda, apoiado nos relatos dos moradores do povoado de Cayuvaba, sustentou-se que o caso tratava de pessoas “trabalhadoras e industriosas”, cuja conduta era irrepreensível. Ele recomendou ao administrador de Beni que fosse concedido o asilo territorial a todos os fugitivos em caráter definitivo, baseado nos princípios de filantropia e hospitalidade. Mas isso não significava que o governo boliviano havia chegado a uma decisão sobre o assunto.

    Três meses se passaram e a questão do asilo seguia indefinida, favorecendo a permanência dos fugitivos no país vizinho. Nessa mesma época, o comerciante boliviano Miguel Bernardino Vargas foi impedido de entrar em território brasileiro quando pretendia fazer negócios em Cuiabá, fato que repercutiu de maneira extremamente negativa nas negociações diplomáticas e acirrou a rivalidade entre brasileiros e bolivianos na região. O incidente contribuiu para que o governo boliviano, interessado em “povoar seus desertos”, anunciasse sua decisão final sobre os asilados. Seguindo uma determinação de Frias Ametller, os fugitivos acabaram acolhidos.

    A postura do governo boliviano se manteve coerente com a política adotada anteriormente, postergando as negociações até 1867, quando foi firmado o Tratado de La Paz de Ayacucho. Até então, não havia precedentes de devolução, extradição ou repatriação de cativos para atender aos interesses do Império do Brasil, o que demonstra, ao menos neste caso, que os escravos podem mesmo ter obtido a tão sonhada liberdade.


    Newman di Carlo Caldeira é professor da Universidade Gama Filho e autor da dissertação “Nas fronteiras da incerteza: as fugas internacionais de escravos no relacionamento diplomático do Império do Brasil com a República da Bolívia (1825-1867)” (UFRJ, 2007).

    Rafael de Almeida Daltro Bosisio é professor da rede estadual e municipal do Rio de Janeiro e autor da dissertação “Entre o escritor e o historiador: a história do Brasil imperial na pena de Joaquim Manuel de Macedo” (UFRJ, 2007).

    Cristiane Kozlowsky é graduanda em História na Universidade Federal Fluminense.

    Saiba Mais - Bibliografia

    CASTRO RODRIGUEZ, C. Historia judicial de Bolivia. La Paz: Editorial Los Amigos del Libro, 1987. 

    REIS, J.; GOMES, F. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.     

    SALLES, V. O negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: Secult/Minc, 1988.