“Sois pó, e em pó vos haveis de converter.” A passagem (Gênese 3, 19) oferece a chave para os três magistrais Sermões de Cinza, com os quais o jesuíta português Antônio Vieira (1608-97) deu sua notável contribuição à discussão sobre a arte de morrer. Tais sermões foram pregados na cerimônia de Quarta-feira de Cinzas, que no calendário cristão marca o início da Quaresma. Dois desses sermões não oferecem dificuldades de localização cronológica: são da primeira metade dos anos 1670, quando ele vive em Roma. Quanto ao terceiro, é mais difícil localizá-lo. A única indicação de que vem precedido em sua edição seiscentista é que o autor não chegou a pregá-lo por ter adoecido. A julgar por alegações semelhantes que faz Vieira em várias outras ocasiões, quando está patente que tudo o que procura é esquivar-se de um compromisso inoportuno, não se deve confiar na veracidade da doença. E, mesmo a se crer nela, não seria um indício muito preciso da época da feitura do sermão, pois são demasiado freqüentes as suas queixas, a cada dia teme pelo pior, embora vá viver até quase os noventa anos.
Outras indicações, entretanto, permitem situar no início da segunda metade dos anos 1670, já em Portugal, o período no qual o terceiro sermão foi escrito — não necessariamente na forma final da versão escrita que se conhece, preparada por Vieira muitos anos depois. No caso do gênero oratório, por vezes a referência temporal pode oferecer a chave de sua decifração. Não que os sermões sejam incompreensíveis sem o prévio conhecimento das circunstâncias. Ocorre que, pela própria constituição do gênero, os sermões jamais se pretendem imunes às circunstâncias. O sermão avança a sua lógica cristã por meio dos acontecimentos, grandes e pequenos, hierarquicamente dispostos num plano secreto que ao pregador cabe descobrir. Para ler bem, portanto, esses Sermões de Cinza, que formam uma verdadeira “arte de morrer” — numa perspectiva que hoje (mas nunca àquela época) seria chamada de “barroca” —, vale a pena considerar com atenção os acontecimentos em jogo no período mais próximo à sua confecção.
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Em junho de 1662, com o final pouco amistoso do período de regência da rainha d. Luísa de Gusmão e a subida ao poder, contra a sua vontade, de seu filho d. Afonso VI, o jesuíta Antônio Vieira, protegido da regente, como antes o fora de d. João IV, cai em desgraça. Entre 63 a 65, permanece em Coimbra, respondendo ao processo movido pelo Santo Ofício, fundamentado nas acusações de heresia e judaísmo. Em outubro de 65, por despacho da Inquisição, o jesuíta é recolhido ao cárcere. Em julho do ano seguinte, apresenta ao Tribunal as duas representações que escrevera para sua defesa. Ao final de 1667, é proferida a sentença, que condena uma centena das proposições contidas nos escritos de Vieira. Em dezembro, é transferido do cárcere para o Mosteiro do Pedroso, no Porto.
Em março de 1668, Vieira é transferido para o noviciado da Companhia de Jesus em Lisboa, o que, na prática, significava uma prisão domiciliar. Ali, permanece recluso até 12 de junho, quando alcança o perdão de suas penas (mas não a anulação do processo ou das suas culpas).
Em janeiro de 1669, o jesuíta prega o primeiro sermão desde sua absolvição, em ação de graças pelo nascimento do primogênito real, mas o ano se arrasta sem que d. Pedro — que assumira a regência após o afastamento forçado de seu irmão Afonso — o convoque para coisa alguma, obrigando-o a crer que o regente, à diferença de seus pais, não parecia disposto a servir-se dele. Nada parecia magoá-lo mais do que essa indiferença. Desenganado de que o regente o convocasse, Vieira preparava uma viagem à Sé, para obter a completa revisão de sua sentença pelo Santo Ofício romano. Estava convicto de que seu processo nada tivera de religioso, e de que a única razão de se tornar vítima da perseguição dos inquisidores locais era ter-lhes contrariado os interesses.
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O procedimento do Tribunal, para Vieira, atentava contra a “razão de Estado” e conservação do reino. Diante da constante ameaça do confisco de bens, os cristãos-novos — que eram judeus convertidos ao catolicismo buscando escapar da Inquisição — fugiam de Portugal e, com eles, a maior esperança, senão a única, de obtenção de recursos para a implementação das Companhias de Comércio ultramarino. A prática do Santo Ofício parecia-lhe tão má política quanto má religião: apenas os países reformados e hereges ganhavam com a perseguição aos cristãos-novos. Ao demonstrar tolerância diante dos cultos judaicos, gozavam as benesses de seu capital.
Em agosto, Vieira consegue autorização para deixar Lisboa com destino a Roma, onde permaneceu entre novembro de 1669 e maio de 1675, período que circunscreve os dois primeiros sermões de Cinza. São anos extraordinários, sobretudo para o reconhecimento de seu milagroso talento de pregador.
Ao mesmo tempo que crescia a fama de pregador e iniciava a edição dos sermões, Vieira, em Roma, retomava a proposta — que tinha em mente pelo menos desde 1644 — de criação de uma Companhia Oriental de Comércio, que deveria gerir os negócios do Estado português com as colônias de África e Ásia. Isto implicava a suspensão do confisco dos bens e na obrigatoriedade de que as denúncias fossem “abertas e publicadas”, sem o que era inútil esperar que os judeus aplicassem em Portugal os seus bens. Seus sermões, de qualidade assombrosa, começavam a ser comentados na sociedade romana. A crescente fama como pregador, contudo, não demove Vieira da idéia de retornar a Lisboa. Antes de partir, obtém um breve papal absolvendo-o das penas passadas e isentando-o para sempre da jurisdição inquisitorial portuguesa. A 22 de maio de 1675 deixa Roma. Chega a Lisboa em agosto.
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Somente cinco anos depois, o que já não esperava acontece: o príncipe o chama para participar das reuniões da junta de conselheiros de Estado e ultramarinos que deveria elaborar um plano de administração temporal e espiritual do Maranhão, assunto a respeito do qual já escrevera vários papéis.
Em 1680, Vieira decide partir para a Bahia e embarca em janeiro do ano seguinte. Ficasse até agosto e teria uma nova decepção. Sairia finalmente a resolução papal sobre a Inquisição portuguesa, suspendendo o breve de 1674 e permitindo, assim, a volta do funcionamento do Tribunal, sem exigir qualquer modificação no seu estilo, que o jesuíta denunciara como brutal e injusto. Fecha-se aqui o período mais imediato ao terceiro Sermão de Cinza, que, mais do que todos os outros, louva o esquecimento, a quietação, o porto da morte. Vieira já passava dos setenta anos.
É hora de se examinar de perto os Sermões de Cinza. O tema dos três é o mesmo (apenas com o acréscimo da fórmula da oração do memento — parte da missa dedicada aos homenageados em cuja intenção as preces são feitas): no primeiro deles “sois pó, e em pó vos haveis de converter”. A passagem (Gênese 3, 19) se refere ao tempo que se segue ao pecado original, quando Deus condena o homem ao sustento da própria vida até que “retorne ao pó de que foi feito”, o que faz ressaltar a desgraça da mortalidade e dos trabalhos que se abatem sobre ele após o pecado.
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O primeiro Sermão de Cinza inicia-se com uma ponderação misteriosa, que questiona o pressuposto das Escrituras de que, mesmo no tempo presente, quando está vivo, o homem seja pó (“és pó”). Após dificultar o enigma em uma sucessão de perguntas, Vieira propõe que a verdadeira substância do que vive não é dada pelo tempo “presente”, mas pelo “passado” e pelo “futuro”. O “presente” seria um estado de aparência e engano entre um estado essencial revelado no “passado” e confirmado no “futuro”. O intervalo da vida terrena entre ambos pode ser representado por um movimento circular cujo princípio e fim são idênticos. A existência é sempre um caminho para a morte, que está tanto na origem como no fim do homem.
Com base nesse tipo de argumentação no qual vivos e mortos são igualmente pó, o que os distingue, postula Vieira, é tão-somente a imensa vaidade dos vivos, vício no qual vicejam todos os enganos. Propõe então duas orações de advertência aos fiéis: uma dirigida aos vivos, outra aos mortos. Aos vivos, pede que se lembrem de que nada do que chegarem a possuir poderá alterar a natureza última revelada no fim. O ilustre, o rico, o honesto, o valente: tudo são apenas cores da vida, desfeitas pela morte.
A morte aí já não é apenas a realidade que põe fim às ilusões da vida mundana, mas um sono, ainda mais fugaz do que elas, do qual os mortos acordarão para o Juízo Final. Se, na vida, a substância do tempo é o “pó”, na morte é o contrário: a verdadeira substância do “pó” é a eternidade do homem. Ou, de outra maneira: se o ser da vida é a morte, o ser da morte é a ressurreição, a imortalidade.
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O primeiro Sermão de Cinza se encerra como um ultimatum, atribuindo papel decisivo às decisões tomadas durante a vida para a definição do destino post mortem. O julgamento futuro não é eliminado, mas tende a ser interpretado como revelação última de um julgamento que se processa já no tempo presente. O supremo juiz não terá senão que lê-lo para indicar o caminho da bem-aventurança ou o da destruição de sua alma: “Julgue cada um de nós, se será melhor arrepender-se agora, ou deixar o arrependimento para quando não tenha lugar, nem seja arrependimento. Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes; não deixemos passar esta inspiração, que não sabemos se será a última. Se então havemos de desejar em vão começar outra vida, comecemo-la agora”.
O segundo Sermão de Cinza se inicia com ênfase num ponto distinto. Vieira se propõe a demonstrar que, de acordo com o que figura a passagem-tema do Gênese, o “pó presente” (“és pó”) pode ser o “remédio” do “pó futuro” (“em pó te hás de tornar”). A idéia do “remédio”, isto é, de um instrumento de cura e salvação, é anunciada desde logo. Suposta já a consciência da gravidade do perigo, dá-lhe a boa-nova da salvação possível desde cedo, procedendo assim como um médico que tranqüiliza o paciente, apresentando-lhe uma receita infalível: não é possível ao homem fugir à morte, é mais racional aceitá-la.
Vieira reforça a exigência da prática que prepara o fiel para o momento final, ao compor argumentos afetivos que buscam produzir em sua memória dois terrores imemoriais a propósito da morte: a sua ocorrência “repentina” e “incerta”. Afirma que ambos apenas podem ser superados com a “eleição” da morte, ato que a ameniza, pois a traz para um tempo conhecido e apropriado à conveniência. Acrescenta a isso o argumento tradicional, porém não menos eficaz ou terrível, de que há na morte “acerto” ou “erro”, que conduz à danação ou à glória, e que sua apropriação antecipada pelo cristão é uma maneira segura de torná-la acertada.
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No terceiro Sermão de Cinza, Vieira se propõe a demonstrar que, na matéria da morte, os afetos andam “trocados”, pois, ao contrário do que é costume entre os homens, a morte deve ser amada e a vida, temida. Radicalizando a tese, afirma mesmo que o maior bem da vida é a morte. A morte descansa dos “trabalhos”, “misérias” e “perigos da vida”, salva da murmuração, da inveja e da vaidade do mundo, conquista a autonomia da vontade impossível enquanto duram as “ocupações”. Daí ter razão a “seita” dos estóicos ao chamá-la “porta da liberdade”, e entender o suicídio como uma escolha feliz. Isso faz com que este sermão, como o outro, enfrente a dificuldade de conciliar o aparente louvor do suicídio e a ortodoxia católica que o condena.
A morte que Vieira propõe antecipar é capaz de levar a uma escolha que se move pelas coisas de Deus e, desse modo, livra o homem do “cativeiro” passional. Apenas a morte, como objeto crucial do desejo, pode livrar das misérias da vida e tornar o cristão, como em são Paulo, “morto para o pecado”. Assim, neste terceiro Sermão de Cinza, Vieira não ressalta o gozo da bem-aventurança post mortem, no Paraíso, mas a convicção de que a morte livra o homem de males tremendos.
No primeiro sermão, livra-o das penas eternas que fazem justiça às faltas cometidas em vida; no segundo, livra-o do transe terrível da hora última; no terceiro, enfim, livra-o das atribulações sem fim dos negócios do mundo. Por outro lado, em termos positivos, esse terceiro sermão acentua a “quietação” proporcionada pela morte; o segundo ressalta a eficácia dos preparativos para dominar o medo implicado nela; o primeiro torna-a condição do conhecimento dos limites e da destinação da vida.
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O conceito de morte de Vieira se apóia em extremos que supõem uma larga e difícil experiência de vida, e, afinal, propõem que o arbítrio, assaltado por sucessivos enganos, deve empregar-se na conquista de um estado de indiferença santificado e beato, fundado na disciplina da vontade. São essas esquematicamente as lições acerca de uma arte de morrer a se extrair dos sermões de Vieira.
Alcir Pécora é professor livre-docente do Departamento de Teoria Literária da Unicamp. É autor, entre outros estudos, de Teatro do sacramento – A unidade teológico-retórico-política dos Sermões de Vieira (Edusp/Editora da Unicamp, 1994) e Máquina de Gêneros (Edusp, 2001).
Saber morrer
Alcir Pécora