Salvo pelo português

Zsuzsanna Spiry

  • Ainda bem que ele não desistiu quando sentiu vergonha de seus amigos. Afinal, a língua que havia eleito como a sua “língua exótica” não era tão exótica quanto as línguas exóticas preferidas pelos jovens de seu círculo literário. Moços que frequentavam os elegantes cafés dos boulevards de Budapeste nos anos 1930, considerados entre os mais elegantes da Europa. Os anos da juventude de Paulo Rónai foram fervilhantes, e seus ídolos – os grandes poetas húngaros – incendiavam o ambiente literário, atacavam os tabus, agitavam os espíritos, suscitavam protestos ferozes e defesas arrebatadoras.

    Ainda bem, pois foi a sua “língua exótica” – o português – que o tirou do campo de trabalhos forçados erguido pelos nazistas em meio à paradisíaca Ilha Margareth, no coração de Budapeste. Foi o português que abriu as portas de sua nova pátria, convidado por ninguém menos que o presidente Getulio Vargas, apesar de notadamente antissemita, por conta dos bons serviços que Rónai havia prestado às letras brasileiras. O jovem professor havia publicado na Hungria, em 1939, uma coletânea de poetas brasileiros que traduzira para sua língua natal.

    Depois de um mês viajando nos porões do navio que o traria para a sua nova pátria – seu dinheiro não dava para pagar nada melhor – que alívio entender o que as pessoas falavam já no porto da cidade. Até então Rónai só conhecia o português escrito. Tinha aprendido sozinho com a ajuda de um velho dicionário Português-Alemão quando ainda vivia na Hungria.

    Encantou-se com o Rio de Janeiro logo de cara. Dias depois, “Mas este português está horrível”, foi a primeira reação de Aurélio Buarque de Holanda quando leu o texto que o jovem desconhecido lhe mostrava. Porém, ao ficar sabendo que aquele estrangeiro que batia à sua porta havia ouvido o som do português pela primeira vez na vida somente duas semanas antes, mudou seu veredicto: “Mas então este texto está ótimo!”. Começava ali uma amizade e um companheirismo que durariam para o resto de suas vidas.

    No desespero de tentar salvar da morte certa a sua noiva que tinha ficado na Europa nas garras dos nazistas, Rónai percorreu os corredores do Ministério do Exterior, no Rio de Janeiro, e acabou recebendo ajuda de um jovem diplomata que, nas horas vagas, preparava os manuscritos de um livro. O diplomata era João Guimarães Rosa e seu livro, Sagarana, se tornaria uma das mais marcantes obras de nossa literatura. Paulo Rónai foi um de seus primeiros e mais renomados críticos. As circunstâncias não lhe permitiram salvar a noiva, mas selaram uma convivência de respeito e admiração mútua entre eles. Não por acaso, os prefácios ou posfácios dos livros de Guimarães Rosa trazem, até as edições atuais, a assinatura de Rónai. Como prova de sua amizade, Guimarães Rosa escreveu um prefácio de 25 páginas para a Antologia de Contos Húngaros publicadaem 1957 por Rónai – um verdadeiro tratado sobre a tão distante língua magiar.

    Uma das traduções mais famosas de Paulo Rónai Os Meninos da Rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnár, foi lançado no Brasil em 1952. Presença obrigatória nas boas livrarias, a obra já teve quase uma centena de reedições e ainda hoje é citada por muitos como uma das preferidas da juventude. Por essa e outras traduções, Paulo Rónai recebeu vários prêmios, inclusive dos governos da Hungria, do Brasil e da França. Especialista em Honoré de Balzac (1799-1850), entre 1945 e 1955, ele coordenou e supervisionou pessoalmente a tradução e a publicação dos 17 volumes da Comédia Humana para a língua portuguesa. E em 1981 recebeu o Prêmio Nathhorst, concedido pela Federação Internacional de Tradutores – tão importante como se fosse um Nobel da tradução.

    Paralelamente à sua atividade como professor catedrático de francês do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro (modelo para muitas universidades que se formavam no Brasil naquela época), Rónai conseguia tempo para ler e traduzir histórias do mundo inteiro. Levou cerca de 40 anos para completar, junto com o parceiro Aurélio Buarque de Holanda, a seleção e a tradução dos contos que formam os dez volumes da coleção Mar de Histórias – Antologia do conto mundial. Os primeiroslivros foram publicados entre 1945 e 1963, mas a coleção só ficou completa na 2ª edição, em 1989-1994.

    Outra atividade profissional que Rónai exerceu foi a de editor. Coube a ele, por exemplo, a edição dos 60 volumes da “Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura”. Não somente selecionava e orientava os tradutores, como também os críticos especialistas que escreviam ensaios sobre cada um dos autores publicados. Na “Coleção Brasil Moço – Literatura Viva Comentada”, dirigiu a publicação dos 27 volumes, cuja organização distribuiu entre professores de literatura, tendo reservado para si a tarefa de escrever sobre Guimarães Rosa, Aurélio Buarque de Holanda e o escritor e pintor Menotti Del Picchia. Selecionou os principais textos destes autores, alguns estudos críticos, escreveu suas bibliografias e biografias, os prefácios e as notas explicativas. Um trabalho de fôlego para o crítico literário.

    Amante da literatura, mas sem deixar de lado sua veia de educador, ele pedia a professores de literatura e a críticos literários, na apresentação dessa coleção, que “facilitassem o acesso às obras assim exemplificadas, traçando perfis dos escritores, comentando os trechos selecionados, elucidando as dificuldades, sugerindo pesquisas, fornecendo bibliografias resumidas”. Ou seja, a proposta era que cada volume da coleção representasse um verdadeiro curso sobre o autor objeto do livro.

    Como disse o jornalista e poeta Nelson Ascher, “junto com sua certeza fundamentada a respeito da centralidade da tradução, Rónai trouxe-nos também sua visão humanista e cosmopolita. A essa visão pertence um gênero literário específico, que ele ajudou a desenvolver no país. Trata-se do ensaio. Na qualidade de ensaísta, Rónai esteve entre os primeiros, no Brasil, a chamar a atenção para um prosador e um poeta: João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade”. Aliás, era comum o amigo Drummond lhe dedicar deliciosas menções nas colunas dos jornais, como esta, no Correio da Manhã, em 1957:

    “O português, como o aprendi

    Paulo Rónai conta, fagueiro.

    Outra façanha dele eu vi:

    Aprendeu a ser brasileiro.”

                                                   C.D.A.

    Apesar de totalmente mergulhado na atividade literária brasileira e de ter adotado a nossa nacionalidade já em 1945, Rónai nunca deixou de amar a sua língua materna e, principalmente, a literatura magiar. Em 2009, ao pesquisar sobre sua vida e obra, solicitei a um húngaro que localizasse um texto de Rónai publicado na Hungria em 1953, portanto doze anos após deixar a sua terra. O título do artigo era “Dos segredos da língua magiar”. O impacto daquele texto sobre o pesquisador húngaro foi imediato, e ele comentou: “É tocante que aquele homem, que se sentiu perseguido em sua própria pátria e foi forçado a emigrar, confesse sua magiaridade e seu amor pela língua materna de maneira tão bela”.

    O amor pela literatura estava acima de quaisquer diferenças culturais. Traços característicos de um verdadeiro homem de letras. Hoje, quem quiser aprender os meandros da crítica literária, da tradução, da gramática do latim ou do francês, tem à sua disposição um legado respeitável, assinado por Paulo Rónai.

    Zsuzsanna Spiry é autora da dissertação “Paulo Rónai, um brasileiro made in Hungary”(USP, 2009).

    Saiba mais

    ASCHER, Nelson.  “Paulo Rónai – Tradução e Universalidade”.  In: ___. Pomos da Discórdia. São Paulo: Ed. 34, 1996.
    RÓNAI, Paulo. Como aprendi o português, e outras aventuras.Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
    RÓNAI, Paulo. Pois É. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2014.