Sampa em foco

Adriane de Freitas Acosta Baldin

  • A São Paulo registrada por German Lorca, na metade do século XX, não existe mais. Que dirá aquela em que viveu e trabalhou Militão Augusto de Azevedo, na segunda metade do século XIX. Os dois fotógrafos amavam o cotidiano paulistano, registrando-o com suas lentes. Mas a qualidade formal e o conteúdo de seus instantâneos remetem a duas localidades distintas. A São Paulo que Militão fotografou, em 1862, estava prestes a passar por uma ampla reurbanização. Lorca, por sua vez, produziu um dos maiores bancos de imagens da cidade no século passado, quando ela caminhava para se tornar uma das maiores do planeta.

    Desde que foi criada, em 1839, a fotografia registrou as metrópoles e sua arquitetura, tanto aqui quanto na Europa. Os primeiros fotógrafos logo perceberam que poderiam fazer um bom uso comercial da nova descoberta, e passaram a se dedicar à comercialização das imagens que produziam. No Brasil, isso começou a acontecer a partir da década de 1850, quando europeus como Victor Frond e August Stahl, entre outros, aportaram em nossas praias para capturar com suas lentes a vida urbana e as belezas tropicais do país.
    Mas ninguém flagrou melhor a paisagem de São Paulo desse período do que um brasileiro. O carioca Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) começou a fotografar quando ainda vivia na capital do Império, e para a felicidade de historiadores e pesquisadores em geral, seu acervo está em bom estado de conservação e sua produção é farta e versátil. De 1862 a 1887, Azevedo registrou São Paulo e sua gente em 12 mil retratos – nesse período, a cidade tinha cerca de 30 mil habitantes.

    A São Paulo que Militão apresenta é inimaginável diante da realidade atual. Seu esforço para fotografar toda a urbe ou, pelo menos, os locais mais importantes, era de certa forma desproporcional à importância da cidade naquele período. Na década de 1860, por exemplo, quando São Paulo ainda mantinha características coloniais, apesar de já ter passado por uma reformulação urbana na década de 1850, Militão teve a felicidade de captar imagens panorâmicas de pontos estratégicos da cidade, onde as dimensões urbanas ficaram bastante claras.

    Ele também registrou, com riqueza de detalhes, o triângulo histórico delimitado pelas igrejas de São Bento, de São Francisco e do Carmo, assim como a região das ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro – área conhecida como o triângulo comercial. Já em seu tempo, Militão se preocupava com o urbanismo e a arquitetura da cidade, que perdia suas referências com a destruição de edifícios e largos na passagem para os anos 1880, como está evidente no Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo 1862-1887, produzido pelo fotógrafo.

    Quando essas imagens são analisadas, nota-se que São Paulo havia deixado de ser a cidade onde viveu e estudou o escritor Álvares de Azevedo (1831-1852) – que se sentia entediado por morar num lugar tão pacato e sem vida cultural – e já contava com uma infraestrutura comercial organizada e setorizada. O comércio de gêneros de primeira necessidade ocorria em locais determinados ou nas ruas, e era feito por quituteiras e quitandeiras. A região portuária do Rio Tamanduateí recebia os bens que abasteciam a cidade. No Largo do Piques, rota dos tropeiros – hoje Praça da Bandeira –, chegavam as mercadorias do interior que seguiam para o porto de Santos. Já no Largo do Bexiga havia uma feira semanal de materiais de construção que vinham de Santo Amaro.

    Nas imagens da cidade produzidas por Militão na década de 1860 havia três regiões urbanas ocupadas de maneira bem distinta. A do triângulo comercial era habitada pelos comerciantes europeus, principalmente os portugueses, e pelas famílias tradicionais da cidade, muitas delas vindas dos engenhos de açúcar. O entorno do triângulo era habitado pela população mais modesta – pequenos comerciantes, prestadores de serviços, trabalhadores e escravos alforriados – que vivia em casas simples com um só piso, muitas delas feitas com taipa de pilão – o barro socado em formas de madeira com um pilão. Havia ainda as chácaras que ficavam no entorno, habitadas por camponeses, algumas famílias abastadas e europeus que se identificavam com essa forma de moradia. Tal estrutura deu origem a bairros que começaram a surgir no final do século XIX, como Campos Elíseos, Brás, Santa Cecília e Santana.

    A fotografia moderna na terra da garoa só começou mesmo a despontar em meados da década de 1940. Um dos expoentes dessa fase foi German Lorca (1922-), filho de imigrantes espanhóis acolhidos pela capital paulista no começo do século XX, que fez parte de um grupo de fotógrafos que passou a registrar a cidade com outro enfoque. Sucessor de nomes como Guilherme Gaensly e Marc Ferrez – cuja produção data do início do século XX –, ele retratou uma cidade em franca evolução e com feições “modernas” na infraestrutura urbana.
    No início de sua vida profissional, Lorca chegou a trabalhar em contabilidade, mas logo a abandonou para se dedicar à fotografia. Foi a partir do seu ingresso, em 1949, no Foto Cine Clube Bandeirantes – associação de fotógrafos que introduziu novas tendências e que contava com nomes de sua geração, como Chico Albuquerque, Geraldo de Barros e Thomaz Farkas – que Lorca se desenvolveu profissionalmente. Em 1952, ele abriu seu próprio estúdio, o G. Lorca Foto Studio, onde se dedicava a fotografias comerciais, reportagens em geral e até álbuns infantis e de casamento. Assim como Militão, Lorca também fazia retratos.

    A qualidade de seu trabalho o levou a ser escolhido fotógrafo oficial do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954, quando fez uma reportagem para a então recém-fundada Editora Abril. Uma das fotos mais famosas de Lorca dessa fase é “Menina na Chuva”, na qual sua câmera enquadra uma criança pulando uma poça d’água no bairro paulista do Cambuci. É impressionante a espontaneidade da fotografia. A impressão que se tem é que ele capturou o momento exato, mas o autor sustenta que a imagem não é um flagrante, e sim uma fotografia encenada com sua sobrinha Eunice, feita para participar de um concurso do Foto Cine Clube Bandeirantes. Lorca sempre fez uso desse recurso em sua produção, como em “Malandragem” (1949) e em “Homem na Chuva” (1950), e o justificou dizendo que “a fotografia acontece para o fotógrafo e ele a faz acontecer”.

    Independentemente das inovações técnicas que foram introduzidas na segunda metade do século passado (ver box “Alquimia fotográfica”, pág. 79), a fotografia urbana moderna ganhou novas nuances nas mãos de profissionais como Lorca. Para ele, as formas geométricas e o contraste de luzes e sombras têm um papel fundamental; a ênfase de suas imagens está na plasticidade dos edifícios e na valorização dos fragmentos arquitetônicos. A abstração no trabalho desse paulistano do Brás é fruto do processo de modernização da cidade. A fotografia urbana, nesse caso, não é mais uma tentativa de capturar o real, mas de interpretá-lo.

    A nova São Paulo que German Lorca documentou nas décadas de 1940 e 1950 estava se transformando no maior polo econômico do Brasil e já ostentava ares de metrópole moderna. Mas as imagens do fotógrafo, com sua riqueza poética, também mostravam a mescla cultural e étnica que sempre foram marcantes na cidade. O verdadeiro cotidiano dos paulistanos transparecia em fotos que retratavam os bairros operários e industriais da periferia – o Brás, o Cambuci, o Bixiga –, onde os imigrantes italianos e espanhóis se instalaram no começo do século XX.

    No aniversário de 450 anos de São Paulo, em 2004, foi realizada uma exposição com as fotos da cidade feitas por German Lorca – que hoje integram o acervo do Museu de Arte Moderna local. Na ocasião, o fotógrafo octogenário – que até hoje se dedica ao trabalho que fez sua fama – relatou com tristeza a experiência de imortalizar em suas imagens edifícios e locais que já não existem mais: “A vista da Faculdade de Direito não é mais a mesma. O prédio de onde a foto foi tirada foi demolido. É uma vista que não poderá mais ser reproduzida”.

    Os dois personagens aqui revisitados produziram obras distintas, embora tivessem focado o mesmo objeto: a cidade. Mas a mesma São Paulo que chamou a atenção de ambos e que teve diversos processos históricos testemunhados por suas lentes é uma cidade em constante mutação. Logo os fotógrafos do presente terão sua atenção desviada para novos aspectos da metrópole, e poderão dar continuidade ao trabalho ao qual Militão Augusto de Azevedo e German Lorca tanto se dedicaram.

    Adriane de Freitas Acosta Baldin é  autora da dissertação “São Paulo em 1860 pelas lentes de Militão Augusto de Azevedo, a história urbana contada através das imagens” (PUC- Campinas, 2006).


    Saiba Mais - Bibliografia

    CAMPOS, Candido Malta. Os Rumos da Cidade – Urbanismo e Modernização em São Paulo. São Paulo: Senac, 2002.
    GRANJEIRO, Cândido Domingues. As artes de um negócio: a febre photographica – São Paulo: 1862 – 1886. São Paulo: Mercado das Letras, 2000.
    LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia e Cidade, Álbuns de São Paulo (1887-1954). São Paulo: Mercado das Letras, 1997.
    MOURA, Diógenes. Fotografia como Memória – German Lorca. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006.
    REIS, Nestor Goulart. São Paulo, vila, cidade, metrópole. São Paulo: Takano, 2004.


    Saiba Mais - Internet

    www.abril.com.br/especial450/materias/lorca/index.html