Sangue na tela

Filipe Monteiro

  • Cena 1: Egito Antigo, cinco mil anos atrás. Um ser maligno faz um pacto com satã e torna-se imortal. Para dominar a Terra, “Phobus – o ministro do diabo” deveria casar-se com duas princesas, Íris e Aminófis. Mas o plano dá errado. Ambas morrem. O pupilo de belzebu atravessa então os tempos à procura da reencarnação de suas noivas. Cena 2: Corta para Belo Horizonte, década de 1960. Eis que no Instituto de Educação de Minas Gerais surge um novo professor de Filosofia. Quem será? Ele mesmo, Phobus. Em sua nova encarnação, tem a sorte de descobrir as amadas ancestrais em duas alunas, Tânia e Wilma.

    Muito trash? Essa é a idéia. Luís Renato Brescia, cineasta falecido em 1988, não poupou imaginação para levar às telas do cinema a incrível saga de Phobus. Também não poupou tempo: levou cinco anos para concluir o filme, rodado nos modestos estúdios das Organizações Cinematográficas Cineminas Ltda., em Belo Horizonte. Em 1970, acabada a empreitada, a empresa faliu e essa pérola do cinema de horror brasileiro perdeu-se no tempo.

    Na verdade, esse foi o destino da maioria dos filmes do gênero feitos no país. E não foram poucos. Na segunda metade do século XX, surgiram no Brasil mais de 100 produções de terror. Para ser mais exato, foram 132. É o que revela a jornalista Laura Loguercio Cánepa, professora da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos, RS), em sua tese de doutorado “Medo de quê? – Uma história do horror nos filmes brasileiros”, defendida este ano na Unicamp.

    Segundo ela, as primeiras tentativas ganharam as telas na década de 1950, época em que “enlatados” norte-americanos de monstros lendários e ficção científica – como “A Guerra dos Mundos”, de Byron Haskin – começavam a seduzir a garotada. Em 1951, Carlos Ortiz lançou “Alameda da Saudade, 113”, considerado por cinéfilos o primeiro filme de terror genuinamente brasileiro. O melodrama sobrenatural, produzido no litoral santista, apostava no enredo clássico do rapaz que se apaixona por uma menina no carnaval e descobre dias depois que ela fora morta anos antes; 113 era o número do jazigo da morta-viva. No ano seguinte foi lançado “Noivas do Mal”, do grego Jiri “George” Dusek, radicado no Brasil desde os anos 1940. O cineasta inovou ao narrar a história de um serial killer no encalço de duas jovens solteiras e pervertidas. Meio sem querer, “Noivas do Mal” foi um dos precursores dos slasher movies – conhecidos por mostrar psicopatas aniquilando adolescentes feito moscas, que virariam febre a partir dos anos 1970 e fariam escola – como o clássico “Sexta-Feira 13” (e suas incontáveis continuações).

    Mas como aqui não é Hollywood, a produção daqueles pioneiros não passou de iniciativas esporádicas. Não se constituiu um gênero. Vale dizer que o mesmo aconteceria com outros estilos, como faroestes, épicos, musicais e filmes noir, que também não chegaram a virar filões no cinema brasileiro. Há quem pense que esses gêneros de sucesso do cinema estrangeiro não emplacavam no Brasil por questões culturais. Mas o principal obstáculo parece ter sido mesmo econômico. As sucessivas crises pelas quais o país passou, em meio a abruptas mudanças de regimes políticos, tornaram inviáveis a repetição e o reaproveitamento de fórmulas, essenciais para a consolidação dos gêneros e da própria indústria do cinema.

    Ainda assim, não faltam elementos para tirar a história do terror made in Brazil das notas de rodapé nos compêndios cinematográficos. Tivemos grandes bilheterias, inspiramos diretores internacionalmente consagrados, recebemos premiações importantes. E se não chegamos a criar uma “tradição”, podemos nos orgulhar de ter vivido ao menos um “ciclo” muito fértil no gênero.

    Ele ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970, quando surgiu Zé do Caixão, personagem interpretado por José Mojica Marins. O sádico coveiro à procura da “mulher superior” para gerar seu filho perfeito estreou em  “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” (1964) e continuou sua saga em “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967), ganhando os circuitos internacionais. Só agora, 40 anos depois, com a estréia de “Encarnação do demônio”, Coffin Joe, como é conhecido nos Estados Unidos, fechou sua trilogia e mostrou por que influenciou até cineastas atuais de sucesso, como o sanguinolento Quentin Tarantino e o soturno Tim Burton.

    No Brasil não foi diferente. Depois de Zé do Caixão, nossos diretores se sentiram à vontade para liberar seus fantasmas. “O Anjo da Noite” (1974), de Walter Hugo Khouri – uma ficção gótica sobre uma babá e duas crianças mortas por um vigia influenciado por um casarão mal-assombrado –, foi premiado no mais importante Festival de Terror do mundo, em Sitges, na Espanha, e ganhou três kikitos no Festival de Gramado (direção, fotografia e melhor ator para Eliezer Gomes, o mesmo de “O assalto ao trem pagador”, de 1962).

    Os maiores sucessos de público vieram da fusão entre o cinema de terror e o movimento paulista conhecido como “Boca do lixo”, que abriu as portas para uma filmografia de baixíssimo orçamento, experimental e escrachada, identificada sobretudo nas pornochanchadas. Desta simbiose nasceu o subgênero das “comédias de horror”, como “Um sonho de vampiros” (1969), de Iberê Cavalcanti — ao que tudo indica, a primeira a se assumir desta forma. Recuperando as famosas comédias carnavalescas dos anos 1940, o filme escala o humorista Ankito para viver o Dr. Pan, médico-vampiro que, ao contrário de seus parentes da Transilvânia, era flamenguista, tinha uma nega chamada Teresa e morava num país tropical. Da mesma safra é a segunda maior bilheteria de Mazzaropi (1912-1981): “Jeca contra o capeta”, de 1976. Com essa paródia de “O exorcista” (1974), o personagem capiau conquistou mais de três milhões de espectadores, só perdendo para “O Jeca Macumbeiro”, rodado um ano antes, que brincava com o espiritismo.  

    Mas boa parte das produções da época passou tão despercebida que nem os próprios envolvidos se lembram de ter participado delas. Procurado pela RHBN, o ator Ary Fontoura acreditou que devia haver algum engano: ele não fizera nenhum filme chamado “O sósia da morte”. Depois, puxou pela memória: “Agora me recordo, eu era um policial que corria atrás do sósia de um conhecido, ou algo parecido. Esse filme ainda existe?”, indagou. A pesquisadora Laura Cánepa não sabe a resposta. Inspirado em uma figura clássica da literatura alemã – os “duplos malignos” (doppelgängers) –, o filme foi dirigido por João Ramiro Mello em 1975, mas não há cópias conhecidas.

    O descaso com a preservação dessa memória permite imaginar que ainda exista uma considerável quantidade de títulos para ser descoberta. Tanto que alguns achados acontecem por puro acaso. Em abril deste ano, o jornalista Rodrigo Pereira fazia um levantamento sobre filmes nacionais de faroeste quando encontrou no acervo da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, informações sobre o filme “Zorga, o médico louco”. Este não constava nem no estudo de Laura Cánepa. Rodado por César Galvão em 1963, com locações no Palácio de Cristal, em Petrópolis, foi classificado na época como um filme policial-psicológico. Mas o roteiro não deixa dúvidas sobre sua filiação: o atormentado Zorga sacrifica crianças e utiliza seu sangue para tentar ressuscitar a esposa morta. Puro terror.

    Para os especialistas, fica no ar uma intriga: se teve tantas virtudes e até mesmo um “ciclo” próprio, por que o cinema de horror nacional foi apagado da memória do público e desprezado pelos estudiosos? “Na verdade, sempre houve preconceito no meio artístico e cinematográfico contra um tipo de filmografia considerada vulgar, folclórica, não-intelectualizada. Por ser uma manifestação popular de massa, o horror nunca agradou à elite brasileira. Até o pessoal do Cinema Novo, que no início também tinha uma perspectiva anárquica e marginal, torceu o nariz para o gênero”, argumenta Laura Cánepa.

    Com o desastre econômico dos anos 1980 e a política de extermínio ao cinema promovida pelo governo Collor na década seguinte, a ficção de horror nacional ficou reduzida aos filmes-deboche de Ivan “The terror” Cardoso, que criou a fórmula do “terrir”, fazendo galhofa de temas tradicionais, como em “O Segredo da Múmia” (1982).

    O universo do macabro verde-amarelo só ressuscitou com a chegada do novo milênio. E não apenas pela volta do velho Zé do Caixão. No ano 2000, diretores pernambucanos se uniram para adaptar os onze contos do livro Assombrações do Recife velho, de Gilberto Freyre. Os filmes foram reunidos em uma série televisiva, narrando lendas urbanas regionais, como a do Boca-de-ouro (fantasma amarelado com hálito podre e dentes de ouro) e do Papa-figo (doente terminal que sobrevive comendo o fígado de crianças). As filmagens foram realizadas em antigas locações da cidade e com figurinos de primeira, fugindo ao padrão trash de filmes amadores. “O sucesso foi tanto que fomos convidados a exibir os filmes nos bares da cidade”, revela Cláudio Barroso, um dos cineastas do projeto.

    Com a ampliação do acesso à tecnologia, cada vez mais jovens amadores se aventuram em produções próprias, afinados com o mundo underground e a cultura pop. Do outro lado da tela, encontram um público jovem como eles e com os mesmos gostos estéticos – da transgressão à escatologia, da violência física à tensão psicológica, não falta demanda por novos produtos. Surgem iniciativas como o I Festival Internacional de Cinema Fantástico, o RioFan, organizado em maio deste ano na capital fluminense, e o Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), que em sua quarta edição, encerrada no mês passado, exibiu 91 longas-metragens, cinco médias e mais de 200 curtas do gênero. Muitos deles brasileiros, e inéditos.
    Talvez a nova geração seja capaz de resgatar o ideal de tantos cineastas menosprezados, tornando realidade seus melhores sonhos (ou piores pesadelos) de meter medo em enormes platéias. Quem viver verá.

    Saiba Mais - Livros:

    CARDOSO, Ivan e LUCHETTI, Rubens Francisco. Vampirismo – o cinema em pânico. Rio de Janeiro: Fundação do Cinema Brasileiro, 1990.

    FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000.

    FINOTTI, Ivan e Barcinski, André. Maldito – A vida e a obra de José Mojica Marins. São Paulo: Editora 34, 1998
     
    PUPPO, Eugênio e HADDAD, Vera (org.). Cinema Marginal brasileiro e suas fronteiras–- Filmes produzidos nos anos 60 e 70. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001.