Santo fora do armário

Delzi Laranjeira

  • Paulo de Tarso, canonizado como São Paulo, é chamado apenas de “Santo” em Ao vivo do Calvário (1992), de Gore Vidal. Sua homossexualidade é o ponto alto da crítica do escritor ao modelo de virtude dos santos cristãos. (Ilustração: Matheus Vigliar)Quando resolveu seguir São Paulo em suas andanças missionárias, Timóteo não estava assim tão interessado em propagar a doutrina cristã: queria mesmo era aproveitar as viagens para conhecer o mundo. Para isso, achou que valia a pena deixar o santo “brincar com meu corpo”. Os dois acabaram engatando um relacionamento que durou 15 anos. 
     
    A versão homossexual de São Paulo e Timóteo não será encontrada em nenhum texto bíblico. Mas está no romance Ao vivo do Calvário (1992), do escritor norte-americano Gore Vidal (1925-2012). Nos ensaios, peças e romances que escreveu, o autor apresenta uma variedade grande de temas. Os assuntos abordados em sua obra variam da Segunda Guerra Mundial ao mundo clássico, da política à história estadunidense, passando pela revolução sexual, religião apocalíptica e homossexualidade.
     
    Em um artigo que escreveu em 1979 para a revista The New York Review of Books, Gore Vidal posicionou-se a respeito de vários aspectos relacionados à sexualidade, criticando o fato de que, no Ocidente, o assunto ser cerceado pelo judaísmo e cristianismo. Na perspectiva dessas grandes religiões, o adultério e as relações homoeróticas são práticas que devem ser eliminadas. Para o autor, entretanto, desejos sexuais são naturais aos seres humanos. Por isso, não faz sentido condená-los. Em sua concepção, não existem homossexuais, bissexuais ou heterossexuais: estes adjetivos caracterizariam práticas, não pessoas. E que, por serem intrínsecas aos humanos, devem ser respeitadas.
     
    Os valores judaico-cristãos aparecem nas obras de Vidal, invariavelmente, a partir de uma perspectiva crítica que questiona seus legados e as instituições que os mantêm. Em relação ao cristianismo, o autor assumiu uma postura claramente hostil. Nos textos bíblicos, a sexualidade é percebida através de uma ótica bastante restrita. O adultério, por exemplo, é considerado pecado mortal nos Dez Mandamentos. A prostituição, punida com a morte. E a homossexualidade, um pecado abominável, assim como o incesto. Só estão livres de culpa o casamento heterossexual monogâmico e o sexo para fins de procriação, dentro dos padrões permitidos. 
     
    Vidal nunca falou explicitamente sobre sua própria sexualidade. Tampouco participou de movimentos ativistas em defesa dos gays. É público, porém, que viveu com um companheiro durante 53 anos. O escritor foi criticado por nunca ter “saído do armário”. Contudo, sempre procurou discutir essas questões. E a literatura foi a seara na qual estabeleceu posições e elaborou seus argumentos.
     
    (Ilustração: Matheus Vigliar)Por se sentir incomodado pela hegemonia repressora do pensamento judaico-cristão, Gore Vidal procurou miná-lo de várias formas. Na esfera ficcional, romances como Messias (1954), Juliano (1964), Kalki (1978) e Criação (1981) lidam com tais questões. Enquanto Kalki e Criação abordam as religiões orientais – hinduísmo, budismo, confucionismo – para as quais Vidal se mostrou mais simpático, Messias e Juliano apresentam uma crítica ácida ao cristianismo. O autor considera as religiões orientais menos rígidas que as grandes religiões monoteístas. 
     
    A homossexualidade aparece em títulos como A cidade e o pilar (1948), O julgamento de Paris (1952) e Ao vivo do Calvário (1992). Em A cidade e o pilar, o protagonista Jim Willard descobre ser gay durante um fim de semana que passa com outro rapaz, Bob Ford. A trama foca na conscientização de sua identidade sexual, a natureza de seus relacionamentos e o esforço para viver sua escolha em um mundo onde a heterossexualidade é a norma. Com esta obra, Vidal foi um dos primeiros escritores norte-americanos a escrever séria e abertamente sobre o tema. As críticas ao romance foram devastadoras. Em uma América pós-guerra, conservadora, abordar questões homossexuais era motivo de escândalo. Vidal ficou abalado com a recepção ao romance, mas isso não o desencorajou de continuar escrevendo sobre temas polêmicos. 
     
    No livro O julgamento de Paris, o tema é abordado de forma indireta. Embora o protagonista Philip Warren não seja gay, ele conhece e se relaciona com vários personagens homossexuais que fazem parte da subtrama do romance. 
     
    É em Ao vivo do Calvário, porém, que a questão se reveste de um caráter profundamente subversivo, por apresentar uma relação homoerótica entre personagens bíblicos: Paulo de Tarso, canonizado como São Paulo, e Timóteo, seu seguidor e igualmente santificado pela Igreja Católica. No romance, mais uma vez o autor satiriza premissas cristãs ao reescrever episódios da peregrinação de São Paulo na Ásia Menor e na Europa, no primeiro século da era cristã. 
     
    Ao recontar a narrativa dos Atos dos Apóstolos, Vidal reinterpreta a história da expansão do cristianismo e o papel de São Paulo nesse processo. A crítica à figura do santo não é uma novidade: Nietzsche já o havia feito em O anticristo, de 1888. Em seu texto, o filósofo alemão aponta Paulo como o inventor e o ideólogo do cristianismo. Nietzsche demonstra um desprezo profundo por tudo que deriva do cristianismo e por São Paulo em particular, dirigindo a ele um ataque virulento e corrosivo.
     
    O “homossexualismo explícito de Santo”, como São Paulo é nomeado em Ao vivo do Calvário, representa o ponto alto da crítica ao modelo de louvável virtude dos santos cristãos. Vidal aproveita as lacunas do texto nos Atos dos Apóstolos, reticente sobre a natureza do relacionamento de São Paulo com seus discípulos, para desestruturar a ideia da fraternidade cristã das primeiras comunidades seguidoras das ideias de Jesus. 
     
    (Ilustração: Matheus Vigliar)Na versão bíblica, Paulo de Tarso decide visitar as Igrejas da Síria e Cilícia (entre a Síria e a Turquia atual), mas antes se dirige às cidades de Derbe e Listra (na atual Turquia). É ali que encontra Timóteo, de mãe judia e pai grego. Como tinha prestígio entre os convertidos da região, Paulo aproveita e lhe pede que acompanhe o grupo na peregrinação. Timóteo então se converte e abraça a causa cristã. 
     
    No romance, é o personagem Timóteo quem revela ao leitor a natureza de sua relação com o líder do grupo. Na versão escrita por Vidal, ele apresenta uma justificativa bem mais simples para a conversão e a adesão à peregrinação: “Meu pai se convertera ao cristianismo, no início, e eu também; parecia divertido e, além disso, que mais há para se fazer em uma cidadezinha como Listra num dia de domingo?” 
     
    O interesse de Paulo por Timóteo, contudo, vai além da simples intenção de convertê-lo à fé cristã: ele se sente sexualmente atraído. Timóteo explica por que aceitou o relacionamento: “Por ser um jovem grego típico e desejoso de conhecer o mundo, calculei que deixar Santo brincar com meu corpo era um preço pequeno a pagar, ou assim pensei ao ser contratado”.
     
    Entre os gregos, a homossexualidade era uma prática aceita. Daí a naturalidade de Timóteo ao falar sobre o assunto. Mas para os judeus, o tema era anátema: a destruição de Sodoma e Gomorra, por exemplo, está relacionada às práticas homossexuais de seus habitantes. No Levítico, Deus prescreve a Moisés: “Não deitarás com um homem como se deita com mulher; isso seria uma abominação”. 
     
    São Paulo, que a tradição considera ter permanecido virgem, elaborou opiniões tão influentes sobre a sexualidade que se tornaram parte da doutrina cristã. Ele condena veementemente a imoralidade sexual e a homossexualidade em particular. 
     
    Diante do posicionamento intransigente do texto bíblico, continuamente endossado pelas instituições religiosas, o “homossexualismo de Santo” no romance de Vidal segue na contramão da Bíblia. O comportamento do personagem deixa claro que São Paulo não coloca em prática o que prega aos seus convertidos: é um pecador hipócrita que prescreve a outros o não pecar.
     
    O longo relacionamento entre Santo e Timóteo em Ao vivo do Calvário sobreviveu às tentativas de punição pelos judeus. Dessa forma, tornou-se representativo da permissividade e da moral ambígua das instituições religiosas, uma crítica que Vidal deixa clara ao longo da narrativa. De uma perspectiva cristã, a relação homossexual entre os dois personagens representa uma subversão profunda do momento fundador do cristianismo e de seus principais atores. 
     
    Pela ótica de Vidal, porém, a expressão da sexualidade humana é uma questão de arbítrio – e isto mexia com os valores mais caros ao povo americano, como a ideia tradicional de família, os valores cristãos e republicanos. E segundo essa lógica que o autor endossa, Santo e Timóteo não fazem nada mais do que exercitar atos sexuais definidos por suas escolhas. A opção do São Paulo de Gore Vidal por “atos homossexuais” não é por acaso: ela provoca, critica e desafia a interferência da religião na vida sexual das pessoas. 
     
    Delzi Laranjeira é professora de Literaturas de Língua Inglesa na Universidade do Estado de Minas Gerais e autora da tese “Reescrituras: o evangelho segundo Norman Mailer e Gore Vidal” (UFMG, 2005).
     
    Saiba mais
     
    NIETZCHE, Friedrich. O anticristo. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2002.
    VIDAL, Gore. De fato e de ficção: ensaios contra a corrente. Org. de Michael Hall e Paulo Sergio Pinheiro. Trad. de Heloisa John. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
     
    Internet
     
    SEDGWICK, Eve. K. A epistemologia do armário. http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/03.pdf
    VIDAL, Gore. “Sexo é política”. Geni, n. 3, p. 227-250, set. 2013. http://revistageni.org/biblioteca/gore_vidal_sexo_e_politica_1987.pdf