- De repente, em meio às orações, o corpo é invadido por um torpor incontrolável. Os membros parecem anestesiados. Sem forças para controlar estas sensações, a freira deixa-se levar, com medo. Sente a alma se afastar do corpo, enquanto as companheiras à sua volta não entendem o que se passa. Seguem-se segundos, talvez minutos, de aparente ausência do mundo carnal, enquanto o contato com o Divino começa a ser processado.A alma emancipa-se do corpo “crucificada entre o céu e a Terra”, como descreve a freira espanhola Teresa D’Avila (1515-1582). É um processo conhecido como êxtase, experiência que, aliada a estados de letargia, levitação e previsões do futuro, era compartilhada por diversas freiras que passavam suas vidas enclausuradas nos conventos da América espanhola.Aparentemente tranquila e inocente aos olhos da sociedade da época, a vida conventual feminina se tornou um problema em potencial para o Santo Ofício da Inquisição. Na visão católica, a mulher, descendente de Eva, trazia no seu interior a predisposição ao mal. Os autores de manuais de Inquisição – como o Malleus Maleficarum (1487), dos religiosos alemães James Sprenger e Heinrich Kraemer – argumentavam que a mulher era um deleite lascivo, uma inimiga do lar e da paz, tudo por conta de sua origem curva: a costela de Adão. Cabia, então, a pergunta: se a mulher é um ser perigoso, que canal com o mundo invisível era acessado por essas freiras místicas? Quem se comunicava através delas? Deus ou o demônio?
Como forma de investigar tais fenômenos, a Igreja, dos séculos XVI a XVIII, obrigava as freiras a passarem horas trancadas em suas celas, relatando minuciosamente seu cotidiano e o contato com o mundo invisível. O relato dessas vidas e das experiências místicas que englobavam corpo e alma era guiado pelas mãos de um confessor, encarado pela Igreja como um “oráculo celestial, capaz de curar todas as almas”, para utilizar as palavras do padre mexicano Nuñez de Miranda, confessor de Sóror Juana Inês de La Cruz (1651-1695). Cabia ao poderoso confessor decidir se os desejos, as visões e os pensamentos das monjas eram divinos ou tentações do diabo. Seu papel era considerado importante pela Igreja porque o misticismo era um caminho perigoso, que tanto podia levar à santificação quanto a um comportamento herege – como acontecia com os “alumbrados” que, de acordo com a ortodoxia, envenenavam suas almas com visões promovidas pelo diabo.
Quando essas experiências místicas partiam de uma mulher, o perigo era duplo, pois acreditava a Igreja que a natureza feminina era fraca e obtusa. Por isso, os diários confessionais eram escritos de maneira vigiada e em muitos casos deixam nítida a falta de liberdade para se entregar às suas memórias e o medo constante da interpretação do leitor. Em todas as confissões das freiras barrocas hispano-americanas aparecem palavras riscadas, escritas com letras diferentes e conselhos para alterar determinadas passagens.A maioria das monjas não se afastava do cumprimento das regras que as salvariam. Este caminho seguro incluía o discurso humilde da Bíblia, a aceitação da autoridade do confessor (fazendo tudo o que exigia), seguir à risca os Exercícios Espirituais de Santo Ignácio de Loyola – como exame de consciência, meditação, oração e, por fim, humilhar-se sempre, reconhecendo-se um ser pequeno e sujo. A voz da mulher que confessa fala dos desígnios de Deus para convertê-la, de seus pecados de juventude, do sofrimento da infância tomada por visões e dos tormentos de sua alma pecadora, sempre em busca da distante salvação. Através da escrita relatavam o que se passava em suas almas e em seus corpos, entregando-se, temerosamente, aos seus confessores. Despir suas vidas diante da Inquisição era um ato feito contra a sua vontade, como se percebe na obra da chilena Úrsula Suarez (1666-1749): “Se vossa paternidade quiser tirar a minha vida, será bastante mandar-me que a escreva, porque é certo que por muitos motivos eu me desculpo, ditas por mim, não se pode dar crédito, dizê-las me envergonha”.Donas de corpos dotados de percepções que iam além dos sentidos comuns, as freiras místicas construíam uma via crucis que as conduziria a um corpo angelical e disciplinado, partindo em busca da negação da carne em favor de uma alma pura. O constante sacrifício do corpo acaba se transformando em uma ordem moral, um modelo para reger a vida das demais mulheres das colônias espanholas. Levar bofetadas, carregar uma cruz pelo convento, banhar-se com água benta, cilícios e urtigas, arrancar os cabelos com as próprias mãos e praticar jejuns eram atos de martírio cotidiano de muitas freiras místicas. Um dos exemplos mais marcantes vem da freira colombiana Josefa del Castillo (1671-1742): “Despedaçava minha carne com correntes de ferro, fazia-me açoitar pelas mãos de uma criada, passava as noites chorando; tinha por alívio as urtigas e cilícios, feria meu rosto com bofetadas, e assim me parecia que estava vencida nas mãos de meus inimigos”.Este era o modo de viver abraçado por monges e sacerdotes cristãos a partir da Idade Média, isolados do mundo em seus conventos, repudiando o sensualismo e exercitando a criatividade em diversas práticas de mortificações. Quanto maior fosse a dor física, maiores as chances de ganhar o perdão de Deus e de se livrar definitivamente do combate espiritual travado no seu interior. Por carregar uma alma tão imperfeita e distante de Deus, a dor física pode ser interpretada como o reflexo da ideia cristã de consciência moral, que acarreta ao homem a insuportável culpa por seus pecados, aliada a uma obsessão pelo sangue de Cristo e as provações dos mártires.Sofrer como Jesus Cristo, vendo o sangue escorrer pelo corpo como o Salvador, era a única maneira de alcançar Deus, um privilégio dado por Ele para que as criaturas se salvassem. A paixão de Jesus deveria ser entendida e experimentada na vida diária, como parte do cotidiano tanto das freiras quanto do resto da sociedade. Entender os sofrimentos de Cristo resultaria numa prova de gratidão e na anulação dos desejos da vida mundana.O resultado dessas experiências de mortificação era o casamento místico entre a freira e Deus. Em diversos momentos de êxtase, elas descrevem o encontro com o noivo divino. Deus aparece às portas do Paraíso, com uma capa dourada, completamente iluminado, e fala em tom suave que está esperando a Sua eleita para a união eterna. O estado de êxtase acaba e a alma volta ao corpo que desperta. O estado de frustração invade então o seu cotidiano, que encontra na vida carnal uma prisão a ser suportada até o último momento. Por mais que deseje a morte, esta deve ocorrer de maneira natural, pois o suicídio a afastaria por completo de Deus. Diante de tais fatos, seu objetivo passa a ser viver como um anjo do Senhor – o que significa anular o corpo, principal obstáculo para o casamento com Deus.Ao aniquilarem a carne, faziam nascer um corpo angelical, livre para experimentar as sensações de Deus. O corpo místico pode ver, sentir e cheirar com mais clareza que o corpo material. Por isso, a vivência do corpo correspondia à descrição da escala espiritual alcançada. A prática da penitência fazia parte do primeiro nível da ascensão mística: a purgatio. As visões que as monjas experimentavam, assim como as experiências relacionadas ao sofrimento de Cristo e sua Paixão, faziam parte da vida contemplativa, iluminatio. Por fim, o casamento místico, o êxtase, a letargia correspondiam a unio. Neste ponto, as monjas haviam ultrapassado a carne, alcançando o estágio de ser quase alma, e podiam traduzir a experiência de Deus e dos temas teológicos.Entre o mundo material e o mundo espiritual, ao atingirem o último estágio, as freiras se transformavam em vasos comunicantes divinos e gozavam de grande prestígio social. Foi o que aconteceu com a espanhola Úrsula Micaela Morata (1628-1703), apesar da constante vigília da Santa Inquisição. Esta monja ficou conhecida por experiências místicas, como levitação e profecias, fundou em 1682 o convento das Capuchinhas de Alicante, na Espanha, e manteve correspondência com o rei Carlos II, que não se eximiu de pedir-lhe conselhos. Tal prestígio, ainda no século XVIII, passou a incomodar a Igreja, que achou por bem destinar os relatos dessas freiras ao esquecimento. Até que na década de 1980 a pesquisadora búlgara Julia Kristeva descobriu os textos, sendo a primeira a escrever sobre o assunto. Hoje, os estudos sobre os diários de confissão das freiras místicas encontram um vasto campo nos Estados Unidos.Karine da Rocha Oliveira é professora do Departamento de Letras-Espanhol da Universidade Federal de Pernambuco e autora da tese “Escrita conventual: raízes da literatura de autoria feminina na América Hispânica” (UFPE, 2014).Saiba maisMONTERO ALARCÓN, Alma. Monjas Coronadas. México: Conaculta, 1999.InternetCASTILLO, Francisca Josefa del. Su vida. Autobiografia. Caracas, Venezuela: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007.http://www.scribd.com/doc/10497976/Madre-Francisca-Josefa-de-la-Concepcion-Castillo-Su-vidaSUAREZ, Ursula. Relación Autobiografica. Autobiografia. Santiago: Biblioteca Nacional de Chile, 1984.http://www.memoriachilena.cl/temas/documento_detalle.asp?id=MC0013671.FilmesEu, a pior de todas, de Maria Luísa Bemberg (Argentina, 1990)Monjas coronadas, documentário de Paul Leduc (México, 1976)
Santo prazer do suplício
Karine da Rocha Oliveira