Crenças populares, medicina hepática e superstições religiosas estavam presentes nas recomendações de curas de moléstias feitas por padres portugueses às mulheres fiéis e devotas do século XVIII. Em 2012, por conta de pesquisa de doutorado em Portugal, consultei diversos livros religiosos publicados naquele período. Eram obras escritas geralmente por homens do clero regular ou mulheres enclausuradas. E lidas por católicos, leigos e religiosos, destinadas a avivar a devoção e a aperfeiçoar a virtude e a moral para vida e morte santificadas.
Geralmente em pequenos formatos – conhecidos hoje como livros de bolso – é possível encontrar algumas referências pessoais, como assinaturas, dedicatórias, datas e pistas sobre o pertencimento, a circulação, a leitura e a serventia. Entre estes indícios, um deles me chamou muito a atenção: anotações de receitas para a cura de enfermidades ou indisposições físicas.Tratava-se da obra Director fúnebre de ceremonias na administração do sagrado viatico, extrema-unção aos enfermos, enterro, oficio dos defuntos, procissão das almas, e outras funções pertencentes aos mortos, com o canto, que em todas se deve observar. Produzida pelo frade Veríssimo dos Martyres, foi publicada em Coimbra no ano de 1749 e está localizada na Biblioteca Nacional de Lisboa.Foi na última folha, já bastante amarelada e corroída pelo tempo, que me surpreendi com as anotações a bico de pena de três receitas caseiras fornecidas por um padre, Antonio da Estrela. De minha parte, não havia qualquer interesse direto nestas “receitas” indicadas às mulheres – suas potenciais leitoras. Mas posso dizer que a pesquisa histórica revela estas surpresas que, por um motivo ou outro, acabam despertando o interesse do historiador. Tal como aconteceu comigo.Uma das receitas apontada como “remédio santo” destinava-se à “dor de enxaqueca”, evidenciando a aproximação entre fé, medicina e conhecimento popular, especialmente pelo fato de ter sido recomendada por um padre. O mais curioso, no entanto, eram os ingredientes sugeridos: folhas de uma planta medicinal chamada meimendro – ainda hoje usada na homeopatia com diversas finalidades – “pisada e com todo o sumo, posta em uma atadura e borrifada com leite de peito”.Considerando o objetivo do livro pelo seu título, não parece de todo estranho que trouxesse anotações de saberes práticos em relação ao alívio de males. Mas seguramente instigam a curiosidade, tanto pelos motivos para os quais foram indicadas quanto pelas substâncias mencionadas. Além das matérias-primas, são instigantes também as combinações e os modos de fazer: cebola branca feita em quatro, cabeça de alho esmagada, arruda e alfazema fritas e sem sal, papel, folhas torradas feitas em pó e consumidas com vinho.Se não eram científicos, parece-me que eram conhecimentos de alguma forma popularizados sobre possibilidades de cura para moléstias físicas. E, acima de tudo, considerados pelo padre que as indicou como remédios “santos”. Quem duvidaria?Mauro Dillmann é professor da Universidade Federal do Rio Grande.
Santos remédios
Mauro Dillmann