Segregação dos mortos

Sérgio Augusto Vicente

  • Empreiteiro da Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II, o imigrante norte-americano David Sompson decidiu dar fim à própria vida na noite de 29 de outubro de 1869, em Sapucaia, província do Rio de Janeiro. O suicídio gerou tamanha repercussão que logo virou tema de debates na capital do Império. Não pela morte em si, mas pelo destino dado ao falecido: por ser protestante e suicida, Sompson foi enterrado do lado de fora dos muros do cemitério.  
     
    O diretor da companhia, Mariano Procópio Ferreira Lage, chegou a solicitar a realização de um sepultamento digno para seu funcionário, mas foi em vão: sob a justificativa de impedir a “profanação das almas”, o vigário geral, então governador do bispado, não autorizou o enterro no mesmo espaço sagrado dos católicos – “Tenho a honra de declarar que as leis da Igreja Católica proíbem o enterrar-se em sagrado aos que se suicidam, uma vez que antes de morrer não tenham dado sinais de arrependimento, acrescendo a circunstância no presente caso de ser o falecido protestante, que ainda é outro impedimento para ser enterrado em cemitério católico”.
     
    Insatisfeito com a situação, Lage encaminhou um ofício ao Ministério do Império, reclamando da decisão das autoridades eclesiásticas. Solicitava uma solução jurídica padrão para casos similares que pudessem ocorrer no futuro. No documento, expôs ao ministro os riscos que essa postura da Igreja poderia representar para o Brasil: “Num país como esse tão necessitado de braços e cujo Governo envida esforços para chamar a imigração, não me parece muito consentâneo com os interesses mais vitais essas discriminações extremadas de religião”.
     
    Naquela época o Brasil, que tinha o catolicismo como religião oficial, recebia expressivo número de imigrantes para suprir a mão de obra demandada pelas lavouras de café e para os melhoramentos na área de infraestrutura. Muitos deles professavam religiões protestantes e, assim como David Sompson, podiam ser alvo de segregação – fato preocupante para seus patrões, membros da elite empreendedora. O diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II era especialmente sensível ao tema, afinal, havia instalado uma colônia de alemães em Juiz de Fora, Minas Gerais. Lage temia que a discriminação afugentasse os estrangeiros do Brasil e atravancasse importantes empreendimentos responsáveis pelo progresso do país, principalmente as obras ferroviárias. “Vossa Excelência compreende perfeitamente que esta empresa, não podendo distinguir religião nos contratos que firma, tem diversos empreiteiros e trabalhadores que seguem a religião protestante, e a esses a decisão do Reverendíssimo Vigário Geral deve causar bem má impressão e talvez mesmo fazê-los abandonar o serviço desta estrada com grave prejuízo para ela”, argumentou no mesmo ofício.
     
    Pelo traço de Debret (1823), diversos tipos de cortejo fúnebre. As cerimônias ligadas aos enterros, nos períodos colonial e imperial, mostram o papel central da Igreja Católica na questão. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
     
    O processo seguiu em frente. Após passar pelo Ministério do Império, a questão foi encaminhada para análise ao Conselho de Estado – órgão que tinha a função de auxiliar o imperador D. Pedro II em suas tomadas de decisão. Para emitirem opinião sobre o assunto, reuniram-se os conselheiros José Thomaz Nabuco de Araújo, Visconde de Sapucahy, Bernardo de Souza Franco, Marquês de Olinda e Barão do Bom Retiro. O grupo de notáveis considerou deplorável que “um país civilizado”, num “século de tolerância civil e religiosa” ainda tivesse como objeto de desavenças “o enterramento de um indivíduo a quem a Igreja Católica nega sepultura”. Na visão dos conselheiros do imperador, a posição do padre ainda desrespeitava a legislação em vigor: o cemitério de Sapucaia era um espaço público municipal, e não propriedade particular da Igreja Católica. Como tal, deveria estar aberto ao acolhimento dos corpos de pessoas de crenças dissidentes. Por fim, o Conselho de Estado argumentou que a decisão contradizia os princípios de humanidade e caridade defendidos pelos cristãos: “não se pode ter como caridade o enterrar o não católico fora dos muros, exposto aos animais e às profanações”. 
     
    O imperador, empenhado em conciliar a religião oficial do Estado com o respeito às leis civis, é objeto de ironia na charge de o Mequetrefe (1875). (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Para o diretor da companhia e para os conselheiros, o movimento “cemitério para todos” representaria um passo importante do Brasil para a consolidação de práticas e costumes inspirados no chamado “modelo civilizatório europeu”. Ao longo do parecer do Conselho, as realidades da França e da Bélgica foram bastante citadas como exemplos a serem seguidos pelo governo brasileiro. Aqueles países europeus já haviam criado leis secularizando e municipalizando os cemitérios. No Brasil, a legislação não parecia muito distante desses exemplos. Desde o Primeiro Reinado, as leis do Império prescreviam que os locais de enterro fossem estabelecidos pelas Câmaras Municipais e estivessem sob a fiscalização civil. Mas, na prática, a questão era mais complexa e desencadeava conflitos – a exemplo da revolta conhecida como “Cemiterada”, ocorrida em Salvador, em 1836, em que católicos locais protestaram contra a lei que proibia irmandades religiosas de realizarem os tradicionais enterros em igrejas e concedia a uma companhia privada o monopólio dos sepultamentos na cidade.
     
    Mas foi nas últimas décadas do período monárquico que a preocupação com os cemitérios recebeu maior destaque. A expansão populacional e a chegada de um grande fluxo de imigrantes protestantes abriram duas importantes pautas no debate público: Onde enterrar os protestantes que morriam no Brasil? Qual seria a localização geográfica ideal dos cemitérios no espaço urbano?
     
    Gradativamente, o Governo Imperial afastava os cemitérios dos centros das cidades, dos distritos e das vilas. Naquela época, acreditava-se que o mau cheiro proveniente da putrefação dos cadáveres indicasse a presença de “miasmas” causadores de doenças contagiosas. Esse afastamento do espaço urbano contribuiu para reduzir a centralidade da Igreja Católica na administração da questão. Ao coibir o enterro indiscriminado em volta das igrejas e das capelas, o poder público imperial amenizava, aos poucos, o “exclusivismo” católico sobre o espaço sagrado dos mortos. Existiam normas defendendo a prática ecumênica dentro dos cemitérios públicos, mas alguns párocos locais resistiam a essa determinação.
     
    Os conselheiros do Império se posicionavam explicitamente contrários à segregação. Defendiam que todos os indivíduos, independentemente da crença, tinham direito à sepultura. Primeiro, porque todos os habitantes pagavam impostos, não só os católicos. Em segundo lugar, porque a Constituição de 1824 garantia a liberdade de consciência – qualquer perseguição por razões religiosas, portanto, iria contra a Carta. 
     
    Em 20 de abril de 1870, o imperador D. Pedro II tomou conhecimento do parecer e concordou com a opinião dos conselheiros: “Recomende-se aos Reverendos Bispos que mandem proceder às solenidades da Igreja nos cemitérios públicos, cuja área toda estiver benta, para que neles haja espaço em que possam enterrar-se aqueles a quem a mesma Igreja não concede sepultura em sagrado. E aos Presidentes de Província que providenciem para que os cemitérios que de agora em diante se estabelecerem se reserve sempre para o mesmo fim o espaço necessário”, anunciou o monarca.
    A Resolução do imperador, portanto, conciliava os interesses da religião oficial do Estado com o direito civil dos não católicos. Segundo a pesquisadora Cláudia Rodrigues, o caso Sompson tornou-se emblemático por despertar discussões que contribuíram para ampliar as reflexões sobre a natureza pública das necrópoles e redefinir seus espaços para além dos dogmas católicos.
     
    Mas isso não arrefeceu por completo os ânimos daqueles que defendiam a ampla secularização dos cemitérios. Afinal, o problema da segregação dos mortos remetia a uma discussão muito mais ampla do mundo dos vivos: a conflituosa união entre Estado e Igreja Católica e suas disputas sobre a jurisdição das necrópoles. As contradições entre o poder espiritual da Igreja e o poder secular de uma monarquia liberal e constitucional ganhavam contornos ainda mais nítidos nesse contexto, em que a Igreja passava pelo chamado processo de “romanização”. Essa reforma traduzia o esforço da hierarquia eclesiástica em ampliar sua autonomia perante as políticas do Estado. A maior aproximação do clero nacional em relação à cúria romana intensificava ainda mais os conflitos de interesses entre a religião oficial do Estado e o Governo Imperial.
     
    Os defensores da secularização dos cemitérios públicos no Brasil se contrapunham, em grande medida, a essa postura romanizante da Igreja e sua hegemonia. Em discurso proferido no Parlamento, em outubro de 1879, o deputado Joaquim Nabuco qualificou o assunto como uma questão de respeito à igualdade civil e à liberdade religiosa. Mais do que ecumênico, o espaço dos mortos deveria estar sob gestão de um Estado laico que se colocasse acima de todas as religiões, permitindo o respeito e o convívio harmônico entre elas.
     
    Dez anos depois, a República era proclamada no Brasil, e em 1891 uma nova Constituição selava a separação entre Igreja e Estado. A partir de então, e sem enfrentar grandes objeções, os cemitérios públicos passaram a congregar a diversidade de crenças característica do sincretismo brasileiro. Os muros da segregação caíram definitivamente. Pelo menos para os mortos.
     
    Sérgio Augusto Vicente é pesquisador da Fundação Museu Mariano Procópio (Mapro), em Juiz de Fora (MG). 
     
    Saiba Mais:
     
    BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, descendência, genealogia. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1991.
    MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
    RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além: a secularização da morte no Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.