Quem viajou até o centro da Terra, deu a volta ao mundo em 80 dias e percorreu 20 mil léguas submarinas dificilmente ignoraria um dos ambientes mais misteriosos e sedutores do planeta: a floresta amazônica. E Julio Verne não a ignorou.
Um dos mais reconhecidos escritores franceses, considerado por muitos o pai da ficção científica moderna, Verne (1828-1905) era especialista em criar histórias de aventura que alimentavam a imaginação dos leitores sobre povos e regiões a serem desbravados. Ao fazê-lo, revelava também como era o olhar europeu para o restante do mundo. Apesar de suas posições humanistas e libertárias, ele compartilhava com seus contemporâneos a ambiguidade ao abordar outras culturas: populações nativas da América e da África foram representadas ora como “bons selvagens”, puros e ingênuos, ora como “maus selvagens”, primitivos e violentos.
Curiosamente, essa tensão entre a idealização da natureza e o entusiasmo com o progresso não está presente no livro La jangada, huit cents lieues sur l’Amazone (A jangada, oitocentas léguas pelo Amazonas), publicado na França em 1881 pelo célebre editor Jules Hetzel. Em sua aventura amazônica, Julio Verne parece querer destacar mais a harmonia e a proximidade do que o exotismo e o estranhamento.
A Jangada narra a história de João Dacosta, um brasileiro injustamente condenado à morte pelo roubo de diamantes na província de Minas Gerais na época do Segundo Reinado (1840-1889) e pelo assassinato dos soldados que faziam a escolta do valioso carregamento. Preso, Dacosta consegue fugir, adota o nome falso de João Garral e reconstrói sua vida na região da Amazônia peruana, no povoado de Iquitos. Torna-se um respeitável proprietário de terras, casado e com dois filhos.
A promessa de aventura bem ao estilo de Verne aparece quando João Garral manda construir uma jangada para descer o Amazonas e comparecer ao casamento de sua filha Minha, que será realizado na foz do rio, em Manaus. O fazendeiro pretende levar a bordo parentes, empregados, agregados e uma infraestrutura descrita em minúcias. A viagem transcorre em meio a uma trama folhetinesca: um vilão tenta chantagear o protagonista, ameaçando revelar sua verdadeira identidade.A saga de João Garral e sua família é acompanhada por informações detalhadas sobre a região, os rios, a floresta e as atividades de habitantes pertencentes a diferentes grupos sociais da Amazônia. Na edição original do romance, setenta imagens ajudam a compor o cenário descrito por Verne, incluindo dois mapas da bacia do Amazonas. Os desenhos eram assinados por Benett – um dos viajados ilustradores com que Hetzel contava para colaborar na coleção Les Voyages Extraordinaires (Viagens extraordinárias), uma série de livros de Verne que chegaria a 54 volumes!
A página de abertura da Jangada traz uma ilustração de dois jovens bem alinhados, vestidos como caçadores, contemplando o infindável rio, acomodados sobre o barranco à sua margem. Uma densa vegetação chega a invadir o leito das águas em seu canto mais raso. Mas a clareira em que descansam as personagens é ornada apenas por delicados cipós, sugerindo que a floresta acolhia amigavelmente os homens que por ela circulavam. A impressão é reforçada pela imagem seguinte, ainda no primeiro capítulo, em que o capitão do mato Torres – o chantagista que sabe o segredo de Garral – fuma seu cachimbo recostado na enorme raiz de uma árvore.
O povoado de Iquitos é retratado com casas de madeira aglomeradas perto do rio, sobrepondo-se a uma vegetação baixa que abria caminho para a passagem de homens que desembarcavam mercadorias. Pouco adiante, Benett apresenta ao leitor a graciosa sede da fazenda que João Garral herdara do pai de sua esposa, e que ajudara a fazer prosperar. Nos caminhos que circundam a casa, vemos trabalhadores negros conversando despreocupadamente, reforçando a hipótese de que, em A Jangada, os conflitos sociais aparecem suavizados.
Curioso é que Julio Verne era um declarado abolicionista, certamente contrariado com a persistência da escravidão no Brasil. Ainda assim, o autor chama a atenção para a “mansidão” com que os negros sempre foram tratados nesta terra, onde já se entrevia, em um tempo não distante, o fim da escravidão. Para isso, cria a personagem Cybèle, uma velha ama de leite que, mesmo depois de libertada por vontade do seu amo, continua “escrava pela afeição que lhe consagrava e a toda a família”.
Logo à frente, surge outra imagem da casa-grande. Sentada perto do parapeito da varanda, com os pés apoiados sobre uma almofada, Minha contempla a paisagem acompanhada por sua criada Lina, uma jovem e encantadora mulata, que permanece em pé atrás de sua senhora. Pelo cenário plácido em que são representadas, a senhora e a pajem bem poderiam estar em uma casa de campo próxima ao Rio Reno, em plena primavera. E não expostas ao ar quente e úmido da bacia amazônica.Quando chega o momento da partida da família Garral, as ilustrações passam a capturar as paisagens e os tipos sociais que se desdobram no curso do rio. Um desenho retrata um pequeno grupo de índios que descansa à beira do rio. Harmoniosamente dispostos em torno de uma fogueira – um em pé, um sentado, uma índia recurvada e uma de cócoras –, apresentam artefatos típicos: o arpão, o remo, os brincos e a tanga. Também é minuciosa a descrição no corpo do texto – o leitor é informado de que eles tinham corpos robustos, eram altos, os cabelos soltos, as narinas trespassadas por uma vareta, os lóbulos das orelhas alongados até os ombros pelo peso das argolas de madeira preciosa. Tanto no texto como na imagem, têm aparência tranquila. Não expressam qualquer intenção de subir a bordo e certamente não se trata, esclarece o autor, dos lendários índios antropófagos. Estes, sabemos por outra passagem do livro, vivem isolados nas profundezas da floresta.
As imagens concebidas pelo autor e pelo ilustrador não foram fruto de suas próprias observações. Nem um nem outro jamais haviam pisado no Brasil. Para construir o universo geográfico e social de A Jangada, tudo indica que Verne se inspirou na série “Viagem do Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico através da América do Sul”, de Paul Marcoy, publicada ao longo do ano de 1867 pela revista Le Tour Du Monde. O roteiro da viagem de João Garral rumo ao delta do Amazonas segue exatamente a descrição de Marcoy, e se interrompe, assim como aquele relato, em Manaus. Na parte final da história, o trajeto de Manaus a Belém é narrado de forma abreviada, sem maiores detalhes ambientais.
Já a descrição geral do rio – sua origem, extensão e diferentes denominações – baseia-se nas informações enviadas pelo colombiano Rafael Reyes (futuro presidente daquele país) ao Bulletin de la Société de Géographie em fins de 1875. Dados sobre a fauna, a flora, os costumes e as lendas locais foram extraídos da narrativa de Franz Keller-Leuzinger, engenheiro alemão encarregado pelo governo imperial brasileiro de estudar a viabilidade de construção de uma ferrovia na região. Fartamente ilustrada com gravuras do próprio autor, Voyage d´Exploration sur l´Amazone et le Madeira inspirou muitos desenhos elaborados por Benett, como o do enorme jacaré que ataca a embarcação no capítulo XII. A própria jangada de Julio Verne, de dimensões extraordinárias, aproxima-se da imagem de abertura do relato de Leuzinger.
As prováveis fontes do escritor não param aí. Mesmo à distância, ele era meticuloso em seus estudos, a ponto de tomar posição em controvérsias sobre o rio, a fauna e a flora levantadas por naturalistas como Louis Agassiz e Adolphe d´Assier. Para completar, o livro também bebe do rico imaginário que aguçava a visão europeia sobre o Novo Mundo havia cerca de três séculos, desde a expedição pioneira do conquistador espanhol Francisco de Orellana.
Mas a escolha do tom e dos realces da narrativa cabia somente a ele. E a Amazônia de Julio Verne não se apresenta como um palco das forças incontroláveis da natureza, que seduzem e intimidam o homem. É, sim, uma atmosfera amena e de relações sociais afáveis. Em vez de contrastes, o que sobressai é uma tentativa de aproximação do referencial europeu.
Essa postura era coerente com os interesses internacionais da França sob o comando de Napoleão III (1856-1870). O imperador pretendia criar novos vínculos com a América Latina, destacando a ligação cultural e histórica entre a França e a porção do continente americano colonizada por Portugal e Espanha. A afirmação dessas afinidades parece estar no olhar “benevolente” de Julio Verne em relação à região amazônica e seus habitantes.
A política incentivada pelo imperador estendeu-se ao campo da cultura. Ao longo do século XIX, um amplo repertório de revistas, almanaques e livros franceses conquistava espaço nas cidades latino-americanas, a ponto de justificar a abertura de filiais de editoras no ultramar e a tradução de obras para o português e, sobretudo, para o espanhol. Mas o tratamento dispensado às edições locais nem sempre contava com os mesmos recursos das originais.
Infelizmente, a riqueza das imagens que acompanhavam La Jangada foi quase totalmente suprimida da tradução do livro para o português – pela Livraria Bertrand, de Lisboa, e pela Editora Paulo de Azevedo, do Rio de Janeiro. A Jangada trazia apenas quatro das 70 ilustrações originais de Benett. Para piorar, as imagens sequer estavam próximas à passagem do texto a que se referem.
A mesma escassez de imagens acometeu todos os volumes da Grande Edição Popular das Viagens Maravilhosas aos Mundos Desconhecidos, em que as editoras Bertrand e Paulo de Azevedo ofereciam ao público as obras de Julio Verne em português.
Perdia-se, assim, um recurso importante para a representação dos outros mundos por onde circulavam as personagens do autor. Talvez os editores responsáveis por essa mediação cultural não considerassem os leitores de língua portuguesa capazes de compartilhar a “consciência planetária” dos europeus do século XIX. A tentativa de aproximação em relação ao restante do mundo, portanto, morria nas boas (e nem tão boas) intenções.
Gabriela Pellegrino Soares é professora da USP e autora de Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: Edusc, 1999.
RIAUDEL, Michel. “O rio palimpsesto: o Amazonas de Julio Verne, das fontes à ficção”. In Revista da USP nº13, março-maio de 1992. E no site http://www.usp.br/revistausp/13/09-michel.pdf.
Selva acolhedora
Gabriela Pellegrino