Sem fetiche ou preconceitos

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior

  • Cena do filme "Besouro", de João Daniel Tikhomiroff, 2009. Com efeitos especiais, o diretor compõe a luta entre o capoeirista Besouro e o orixá Exu.

    No final de outubro, estreou nos cinemas do Brasil o filme “Besouro”, de João Daniel Tikhomiroff, repleto de efeitos especiais produzidos pela equipe do clássico das artes marciais “O tigre e o dragão”, narrando a trajetória do capoeirista Manoel Henrique Pereira, conhecido como Besouro Mangangá na Bahia dos anos 1920. As referências da obra às religiões afro-brasileiras – com direito a uma cena de luta entre o personagem-título e o orixá Exu – retomam um tema que é retratado no cinema há seis décadas, mas que andava meio de lado ultimamente.

    Só na década de 1950 começaram a ser mostrados nas telas com mais frequência o candomblé – culto africano organizado em torno de 16 divindades principais, os orixás – e a umbanda, provável resultado da fusão do culto aos deuses africanos com o catolicismo e o espiritismo europeus. A maneira como essas religiões são apresentadas nos filmes e o acolhimento que elas recebem da crítica vêm mudando nesses quase 60 anos. [Ver RHBN nº6, dezembro 2005].

    Foi um italiano, que de afro-brasileiro não tinha nada, um dos primeiros a retratar explicitamente essas religiões no cinema. Adolfo Celi, famoso por ter sido o primeiro diretor artístico do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), lançou em 1950 o filme “Caiçara”, no qual uma senhora negra chamada Felicidade (interpretada por Maria Joaquina da Rocha) era vista como feiticeira por espetar agulhas num boneco. Na história, ficava evidente a ambiguidade com que as práticas religiosas negras eram vistas, muitas vezes consideradas causadoras de malefícios.

    Na época, alguns críticos falaram mal do filme porque mostraria um ritual de má fama: a macumba, tida como sinal de atraso do Brasil. Nos anos 1950, era muito comum a ideia de que as religiões afro-brasileiras não passavam de desculpa para que pobres desesperados, incultos e supersticiosos praticassem seus ritos primitivos com muito derramamento de sangue e “magia negra”.

    O cinema brasileiro atravessou os anos 1960 retratando o candomblé e a umbanda de forma negativa ou dúbia. Tanto acentuava seu caráter popular como os aspectos supersticiosos que conteriam. Foi assim durante a fase inicial do nosso movimento mais reconhecido no exterior, o Cinema Novo – parcialmente inspirado no neorrealismo italiano e na nouvelle vague francesa. Glauber Rocha, que praticamente personificou esse movimento, abordou o candomblé logo em seu primeiro longa-metragem, “Barravento”, de 1961.

    No filme, uma comunidade de pescadores influenciada por um terreiro recebe a visita de um ex-pescador, que tenta convencer seus conterrâneos a se afastarem da crença para resolver seus problemas. A religião é tratada como algo que aliena o povo de suas necessidades e que só serve para ele se acostumar à desigualdade social.  

    Outro clássico da década de 1960, “Viramundo” (1965), dedica um bom tempo de sua duração a mostrar as religiões – não só os cultos umbandistas, mas também os evangélicos – como instrumentos de alienação do povo.  Nesse documentário sobre a migração nordestina para São Paulo, o diretor Geraldo Sarno mostra cenas de pessoas histéricas nos terreiros e igrejas à espera de uma solução sobrenatural para sua situação de desemprego e desamparo.

    Mas houve uma exceção entre os filmes dessa época. “O pagador de promessas” (1962), de Anselmo Duarte, apresentou o candomblé como uma religião legítima por meio do conflito do catolicismo popular com o catolicismo oficial. No longa, o personagem Zé do Burro (Leonardo Villar) enfrenta a oposição dos padres quando tenta entrar na igreja carregando uma cruz de madeira para cumprir uma promessa feita a Santa Bárbara num terreiro consagrado a Iansã – orixá à qual a santa católica é associada. A obra ganhou reconhecimento internacional com o prêmio máximo do Festival de Cannes e a indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

    Sai a ovação em Cannes, entram os anos de chumbo. A consolidação do regime iniciado com o golpe de 1964 faz o Cinema Novo revisar muitas de suas posturas, inclusive na maneira de mostrar a relação do brasileiro com suas crenças. As religiões deixam de ser vistas como forma de alienação e passam a ser admitidas como manifestações legítimas do povo, embora passíveis de serem usadas pelas elites como forma de manipulação.

    Exemplo dessa mudança de postura é o cineasta Geraldo Sarno, aquele mesmo que havia retratado as religiões como instrumentos de alienação nos anos 1960. Pois em dois documentários que fez na década seguinte – “Iaô” (1976) e “Espaço sagrado” (1976) –, ele adota um tom muito mais simpático às religiões ao exibir em detalhes um ritual de iniciação até então secreto e ao abrir os terreiros para os olhos do público.

    Ainda assim, houve quem não simpatizasse com os filmes de Sarno. A antropóloga Juana Elbein dos Santos considerou-os invasivos e desrespeitosos com os segredos da religião. Em resposta, ela produziu outros dois documentários, “Orixá Nilu Ilê” (1978) e “Iyá-mi Agba” (1979), que seriam condizentes com a crença e as regras do ritual do candomblé nagô.

    Em dois filmes de Nelson Pereira dos Santos – outro ícone do Cinema Novo –, o candomblé e a umbanda ganham papel ainda mais importante: o de meio de resistência à opressão do povo pelos poderosos. É o que acontece em “O amuleto de Ogum” (1974), em que o migrante Gabriel (Ney Santanna), depois de se associar a um mafioso da Baixada Fluminense, desafia seu poder tendo como principal arma seu corpo “fechado” por um pai de santo de umbanda.

    Em “Tenda dos milagres” (1977), adaptado do romance de Jorge Amado, um mestiço especialista em cultura do candomblé baiano chamado Pedro Arcanjo (interpretado por Juárez Paraíso) enfrenta um professor da Faculdade de Medicina de Salvador (Nildo Parente) que usa ideias racistas para justificar sua oposição ao candomblé. Os dois personagens foram inspirados no jornalista e historiador Manuel Quirino (1851-1923) e no médico evolucionista Nina Rodrigues (1862-1906), precursores dos estudos sobre cultura africana no Brasil. Nelson ainda adaptaria para o cinema, em 1987, outra obra de Jorge Amado em que os cultos africanos estão presentes: Jubiabá.     

    Jorge Amado foi mesmo uma rica fonte de inspiração e de histórias tanto para o cinema brasileiro quanto para a divulgação do candomblé e da umbanda. Um de seus mais notáveis personagens foi o incorrigível Vadinho, filho de Exu (o orixá mensageiro), que após sua morte volta em espírito para a ex-mulher, Flor, já casada com outro homem. Transportado para as telas por Bruno Barreto em 1976, o insólito triângulo amoroso formado por Sonia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça fez do filme o recordista de bilheteria da história do cinema brasileiro. Ficou provado que um enredo com a presença dessas religiões poderia agradar ao público.

    Por público leia-se o “povão,” mas também as elites. Para os que pensavam que candomblé e umbanda eram coisas que só interessavam aos pobres, o cineasta Marco Altberg produziu “Prova de fogo”, em 1981. Inspirado no livro Guerra de orixá (1975), da antropóloga Yvonne Maggie, mas com roteiro do próprio Altberg e de Aguinaldo Silva, o filme mostra como a classe média e até políticos poderosos recorrem à umbanda quando precisam de uma mãozinha ou estão em apuros.

    Quando a TV Globo adaptou para a televisão uma obra que falava de candomblé e umbanda, também escolheu Jorge Amado. Tenda dos milagres virou minissérie em 1985. Nas décadas seguintes, Dona Flor e seus dois maridos (1998) e Os pastores da noite (2002), também do escritor baiano, viraram minisséries. Fora estas, o candomblé também foi tema de “O pagador de promessas” (na TV Globo, em 1988) e “Mãe de santo” (esta na TV Manchete, em 1990).     

    Ao mesmo tempo em que conquistavam espaço na TV, essas religiões sumiam das telas de cinema. Na Retomada, período da produção nacional que começa em 1995, apenas um filme antes de “Besouro” merece grande destaque. Em “Narradores de Javé” (2003), de Eliane Caffé, habitantes de uma pequena cidade do Nordeste tentam escrever a história do lugar para convencer as autoridades de que se trata de um patrimônio que não pode ser inundado por uma represa em construção. Entre as histórias narradas está o mito do amor entre os orixás Ogum e Oxum, apropriado pelos moradores de Javé para explicar sua fundação.

    Agora é o Besouro Mangangá, que ganhou fama por combater os abusos contra os negros na década de 1920, quem tem a chance de passar para os fãs de cinema mais jovens um pouco sobre essa parte da cultura brasileira que andava meio esquecida. Em “Besouro”, as belas imagens de Oxum, Iansã e Exu trazem uma nova abordagem dos mitos africanos no século XXI, valorizando sua força, beleza e atualidade. Embora ainda haja preconceito contra tudo que é chamado pejorativamente de “macumba”, dá para constatar que a sociedade brasileira mudou sua maneira de ver essas religiões. Dificilmente alguém irá se incomodar ao ver Besouro invocando os orixás na telona, como ocorreu 63 anos antes com a negra Felicidade do filme de Adolfo Celi.

    Nessa mudança, os filmes tiveram um papel fundamental ao mostrar que o candomblé e a umbanda são cultos importantes, repletos de características próprias e presentes em todas as classes sociais. O que muitos pensavam ser um ritual de pobres é, na verdade, uma manifestação “do povo”. E seus seguidores não são necessariamente incultos ou supersticiosos, mas legítimos representantes da cultura popular brasileira.

    Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor da tese “Imagens do candomblé e da umbanda: etnicidade e religião no cinema brasileiro nos anos 1970” (UFF, 2009).

    Saiba Mais - Bibliografia

    PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
    RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
    SHOAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
    VELHO, Yvonne Maggie. Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

    Saiba Mais - Filmes

    “O amuleto de Ogum”, de Nelson Pereira dos Santos, 1974.
    “Barravento”, de Glauber Rocha, 1961.
    “Besouro”, de João Daniel Tikhomiroff, 2009.
    “Dona Flor e seus dois maridos”, de Bruno Barreto, 1976.
    “Tenda dos milagres”, de Nelson Pereira dos Santos, 1977.