Senhor meu escravo

Claudio Moisés Ogass Bilbao

  • María de Orta ainda era escrava quando passou a sustentar sua própria ama, Agustina de Venegas, uma viúva em dificuldades financeiras. A mulata acumulou dinheiro vendendo mercadorias em uma tenda arrendada, na Praça de Armas de Santiago, capital do Chile colonial. “Vivia como livre”, disseram testemunhas da época. Sua dona dependia completamente dela para vestir-se e alimentar-se. Em 1700, María conseguiu sua libertação legal, mas continuou trabalhando durante 13 anos, até reunir 1600 pesos, os quais usou para comprar a liberdade também para suas filhas e algumas netas.

    Mas a história não terminaria ali. Quase uma década depois da morte da ex-escrava, a neta e única herdeira de sua ama, também chamada Agustina, entrou com um processo tentando impugnar as cartas de liberdade de quatro filhos de María de Orta. Entre 1722 e 1726, Luis, Elena, Isabel e María del Carmen entraram em uma ofensiva judicial até confirmar sua liberdade contra a neta da ama que sua mãe, ainda escrava, havia ajudado a sustentar.

    A inusitada experiência da família Orta não foi uma exceção entre os escravos e escravas urbanos de Santiago do Chile. Os status jurídicos e sociais de libertos e escravos não eram estáticos. “Escravidão” e “liberdade” não eram termos absolutos e divergentes, mas sobrepostos. Houve escravos que, na prática, não estiveram submetidos à dominação que se costuma atribuir à escravidão, assim como houve proprietários que não exerceram o papel que o senso comum esperaria de sua posição.

    A escravidão nunca chegou a se transformar na relação produtiva mais importante, nem foi indispensável para o sustento do reino do Chile (como era chamada essa região administrativa do império colonial espanhol). No entanto, na cidade de Santiago e em outras metrópoles, cumpriu uma função importantíssima no século XVIII: escravos e escravas foram peças-chave na construção da sociedade e no desenvolvimento da economia urbana. No entorno das cidades, serviram para ressaltar o status econômico e social de seus proprietários, além de participarem de circuitos produtivos e mercantis como provedores de bens, desenvolvendo ofícios como sapateiro, artesão, alfaiate e tintureiro. Luis de Orta, filho de María, tinha uma oficina para tingir cordobanes (peles de cabra curtidas), onde também ensinava a índios e espanhóis pobres.

    Era frequente, entre os pobres, comprar escravos. Apesar dos preços dos escravos serem geralmente altos, poderiam fazer a compra pagando em várias cotas. Uma forma de diminuir esse custo era arrendar seu trabalho por um tempo, transformando-os em “jornaleiros”, ou seja, pessoas que cumprem uma jornada de trabalho diária. Assim garantiam que seu investimento teria um retorno rápido, e economizavam com alimentação, vestuário e saúde dos escravos que, ao saírem de casa, deveriam manter-se por si sós. Desse modo, o escravo praticamente se pagava.

    Para obter mais lucros, este tipo de proprietário investia também na educação de alguns escravos, para capacitá-los a executar tanto trabalhos especializados como ordens mais simples. Vários escravos aprenderam e praticaram a escrita e a aritmética, ainda que de forma rudimentar. Com essas ferramentas, o escravo “jornaleiro” muitas vezes tinha a possibilidade de acumular dinheiro, manter uma renda própria e acelerar seu processo de libertação e o de seus familiares.

    O período de maior entrada de africanos em Santiago ocorreu entre 1618 e 1640.  Negros e mestiços passaram a compor 33% da população da capital. A maioria dos escravos não servia à elite, mas aos setores mais modestos de habitantes livres: 70% dos proprietários tinham de 1 a 4 escravos, e os 30% restantes adquiriram entre 4 e 25.

    Além disso, os donos eram mulheres, em ligeira maioria. A maior parte das cartas de liberdade foi outorgada por amas, entre 1690 e 1750. Entre estas, quase 70% eram viúvas em situação financeira difícil por falta do sustento do cônjuge, que aceitavam o dinheiro de seus escravos em troca da “liberdade”, ou melhor, retribuíam o esforço da manutenção econômica com uma libertação graciosa. Assim ocorreu com María de Orta: recebeu a liberdade gratuitamente e usou seu dinheiro guardado para libertar os familiares. Não era raro serem encontradas amas empobrecidas que dependiam de seus escravos, como aconteceu com Agustina de Venegas. Várias proprietárias teriam mesmo vivido na casa dos serventes, suportando insultos e agressões de seus criados.     

    Entre 1700 e 1750 houve uma baixa de preços propiciada pela abertura da rota da Cordilheira dos Andes (que ligava a cidade a Buenos Aires), aumentando o acesso à mão de obra negra. A escravidão foi um regime tão legitimado socialmente que alguns ex-escravos não se incomodaram em participar do mercado de compra, venda e exploração de escravos. No testamento de Luis de Orta, registrado em 1741, consta que ele tinha dois escravos sob seu poder: María Josefa e Santiago.

    Outro caso é o da mulata Blasa Díaz. Esta “parda livre” – filha de uma negra de Lima – tinha uma chichería (local onde se vendia chicha, um tipo de bebida alcoólica) e fazia marmelada e doces de mel em Santiago do Chile. Para manter sua produção, participou como distribuidora marginal do comércio de negros. Um de seus negócios consistia em importar escravos negros africanos de Buenos Aires a baixo custo e vendê-los em Lima. Comprava-os por 200 pesos e vendia por 400. Manteve ainda oito escravos para ajudá-la a atender ao negócio e a vender os produtos nas ruas.

    Os negros e seus descendentes não formavam uma comunidade homogênea do ponto de vista cultural, social e econômico. Um conjunto de variáveis gravitava para definir uma hierarquia entre eles: origem, ocupação, educação, parentesco, condição jurídica, entre outros. A cor da pele era um dos principais fatores a dividi-los. Diferenciavam-se os indivíduos de pele mais escura dos de pele mais clara. No último escalão estavam os africanos, que se dividiam em infiéis ou batizados, de acordo com sua proximidade com o Evangelho, e em ladinos ou bozales, caso dominassem a língua espanhola ou não (divisão análoga à que acontecia no Brasil entre os africanos que falavam ou não português). No topo estavam aqueles com maior porcentagem de sangue branco.

    A abolição legal definitiva da escravatura negra no Chile foi realizada em 24 de julho de 1823, já após a independência em relação à Espanha, ocorrida em 1818, produto de uma iniciativa legal proposta por José Miguel Infante, senador por Santiago, em 23 de junho desse ano. Anteriormente, em 15 de outubro de 1811, durante o governo de José Miguel Carrera, havia sido promulgada a Lei de Liberdade de Ventres, promovida por Manuel de Salas, um intelectual humanista e deputado por Itata no primeiro Congresso Nacional. Seu alcance, no entanto, foi interrompido constantemente pelas guerras da independência.

    Cerca de 5 mil escravos se beneficiaram com a abolição. Segundo a historiografia tradicional, o desaparecimento da escravidão não produziu problemas civis nem raciais profundos como em outros países da América. A visão oficial é a de que os escravos levavam uma vida de relativa tranquilidade e de que a escravidão não era uma instituição importante do ponto de vista econômico, ainda que fosse do social.

    A situação foi bem mais complexa. As relações entre amos e escravos eram marcadas por conflitos, rearranjos e negociações por sobrevivência e benefícios. Escravos se apropriavam de espaços de autonomia e decisão, de forma que os status jurídicos – fixos e estáticos em suas definições legais – eram na prática bem permeáveis. Ainda que a cidade não fosse espaço de um completo idílio e houvesse muitos escravos que sofriam por sua condição, a imagem de uma relação de trabalho forçada, absoluta e permanente deve ser relativizada. Isto não exclui, é claro, que houvesse o tipo de relação senhor-escravo mais clássica, e ainda outros tipos de relações: mais duras e hierárquicas em um momento da vida; mais flexíveis logo adiante.

    A violência e a benevolência foram duas caras da mesma moeda nas relações escravistas do Chile urbano.

     

    Claudio Moisés Ogass Bilbaoé pesquisador do Grupo Chile Negro e autor do artigo La mulata Blasa Díaz y sus esclavos. Algunas aproximaciones sobre la dinâmica cotidiana de la esclavitud urbana, Santiago de Chile (1680-1750) (V Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2011)

     

     

     

    Saiba Mais

     

    FELIÚ CRUZ, Guillermo. La abolición de la esclavitud negra en Chile. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1973.

    MELLAFE, Rolando. La introducción de la esclavitud negra en Chile. Tráfico y rutas. Santiago: Universidad de Chile, 1959.

    OGASS BILBAO, Claudio Moisés. “Por mi precio o mi buen comportamento: oportunidades y estratégias de manumisión de los esclavos negros y mulatos em Santiago de Chile, 1698-1750)”. Revista Historia, v. 1, n. 42, p. 141-184, jan.-jun. 2009.

    ZÚÑIGA, Jean Paul. “Huellas de una ausencia. Auge y evolución de la población africana en Chile: apuntes para una encuesta”. In: CUSSEN, Celia.Huellas de África en América. Perspectivas para Chile. Santiago de Chile: Ediciones Universitarias, 2009.