Sepultados sob solo santo

Felipe Augusto de Bernardi Silveira

  • Cemitério novo, em Petrópolis, fodo de Pedro Hees (c.1870). Na primeira metade do século XIX, os enterros no interior dos templos foram proibidos em várias cidades brasileiras.Um artigo no Diário Fluminense de 27 de dezembro de 1825, de um autor que se identificava apenas como “Novo Correspondente”, daria o que falar. Por suas argumentações, o texto parecia ter sido escrito por alguém letrado ou até por um médico, especialmente quando tecia elogios ao governo imperial, por conta de uma sábia decisão tomada naquele ano. O fato é que uma nova lei baixada na ocasião proibia que o interior das igrejas brasileiras continuasse a ser usado como cemitério, cumprindo uma antiga determinação feita por meio de uma Carta Régia de 1801. O artigo seguia com uma saraivada de acusações ao clero e criticava o fato de a Igreja Católica brasileira enterrar seus mortos nas campas, pequenos quadrados de madeira numerados no chão do templo. Era algo que parecia atrasado, pouco civilizado e, principalmente, nocivo à saúde.

    As coisas estavam mudando na primeira metade do século XIX. A chegada da família real em 1808 certamente desencadeou uma série de alterações na rotina e nos costumes dos súditos. Civilizar-se estava na ordem do dia, e um dos caminhos para se atingir esse objetivo era por meio do desenvolvimento da medicina. Após a Independência, em 1822, um corpo médico-higienista começou a propor soluções não só para os problemas sanitários do Rio de Janeiro, mas de todo o Império, uma vez que a insalubridade era tida como a causa principal das enfermidades.

    Segundo as teorias médicas da época, o mal era um só: a presença de gases miasmáticos e nocivos no ar que se respirava, produzidos por matéria animal ou vegetal em decomposição. Invisíveis, podiam ser encontrados nas cidades, em locais onde o estrume ficava acumulado, como no meio das ruas, e onde havia água parada ou animais mortos. Mas esses miasmas eram percebidos principalmente nos cemitérios. A tese de doutorado de Manoel Maurício Rebouças, defendida na Faculdade de Paris em 1831, reforçava os argumentos dos higienistas brasileiros. Intitulada “Dissertação sobre as inumações em geral e seus desastrosos resultados”, ela reunia documentos tidos como fidedignos, pois envolviam pessoas de caráter inquestionável, como padres e médicos. O problema estava nas alterações sofridas pelo ar devido a diferentes propriedades que se agregavam a ele, alterando suas características originais. Até mesmo o hálito, a transpiração e os excrementos de um animal eram considerados agentes contaminadores.

    O primeiro caso descrito por Rebouças veio das observações do médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714), que falava de um coveiro que queria roubar os pertences de um rapaz recém-sepultado. Assim que abriu a cova, ele “foi sufocado, e caiu morto sobre o mesmo, cuja sepultura assim violava”. Para Ramazzini, isso era uma prova do perigo dos miasmas. Seus estudos ainda sustentavam que, devido ao contato constante com o ar que emanava dos túmulos, os “papa-defuntos” acabavam ficando com a pele pálida e raramente chegavam a envelhecer.

    Outras histórias desse tipo vieram das memórias de Henri Huguenot, decano da Faculdade de Medicina de Montpellier, publicadas em 1746. Ele descrevia os perigos das inumações nas igrejas. Conta Rebouças que, no dia 17 de agosto de 1744, certo Pedro Baffagette foi empregado como coveiro da Confraria dos Penitentes e logo encarregado do enterro de Guilherme Boudou, realizado em uma das covas comuns da Igreja Paroquial de Nossa Senhora de Montpellier. Bastou ele descer à catacumba para ser acometido de movimentos convulsivos que o deixaram paralisado. O frade José Sarrau, que se ofereceu para resgatar o colega, perdeu completamente a respiração assim que o agarrou pelo casaco. Pedro acabou recobrando os sentidos, mas quinze minutos depois começou a sentir fraqueza. O frade passou a noite inteira tremendo e com palpitações, que só desapareceram depois de uma sangria. Ele passou a exibir uma feição pálida pelo resto da vida, o que o fez merecer a alcunha de “Ressuscitado”.

    O próprio “Correspondente”, no artigo do Diário Fluminense, contou que, ao adentrar uma das igrejas da cidade do Rio de Janeiro para assistir à missa de domingo, foi obrigado a sair correndo do local devido ao mau cheiro exalado das campas da nave central. Indignado, o articulista criticou a avareza dos padres, que procuravam ganhar dinheiro com os enterros, impedindo que fossem realizados em locais mais adequados que as igrejas, perpetuando, assim, hábitos nocivos à saúde dos fiéis. O artigo afirmava que o modelo de sepultamento mantido pela Igreja era inspirado por superstições sem sentido, criadas pelo próprio clero para impressionar os homens. Uma dessas crenças era que aqueles que não fossem sepultados no espaço sagrado dos templos não seriam salvos no dia do Juízo Final, nem teriam suas penas aliviadas no Purgatório.

    Indignado com as palavras do “Correspondente”, o padre Luiz Gonsalves dos Santos (1767-1844) – mais conhecido como Padre Perereca devido à sua notória feiura – resolveu dar uma resposta à altura por meio do texto O direito dos católicos de serem sepultados dentro das igrejas. A dissertação falava sobre as origens dos enterros cristãos em Roma e das cerimônias fúnebres, e fazia até mesmo algumas análises científicas: “Mas que remédio se ha de dar para que os mortos não infeccionem os vivos? (...) enterre-se o defunto hum só em cada cova, e seja coberto de bastante terra, pelo menos cinco palmos de altura, tapa-se a cova com sua campa de madeira, ou de pedra, ou de ladrilho; e não se abra para ali se sepultar outro cadaver, senão passados dous annos”. Segundo ele, tapar bem os corpos com terra seria suficiente para conter os miasmas dentro do solo. O escrito gerou polêmica e representou de forma clara a oposição de Perereca e dos setores católicos tradicionalistas às forças civilizadoras da medicina.

    A obra só foi divulgada após doze anos de labuta intelectual, que obrigaram o autor a estudar profundamente os fatos históricos e tratados teológicos de autoridades eclesiásticas, como os de São Tomás de Aquino e Santo Agostinho. O resultado foi publicado no Rio de Janeiro, em 1839, em um folheto de trinta páginas. Na sua dissertação, o padre Perereca afirmava que as opiniões expressas pelo “Correspondente” não passavam de análises advindas de “sectários modernos e anti-religiosos”. Acusava o articulista de ser adepto dos gozos materiais, de defender filosofias baratas e de idolatrar o corpo enquanto vivo. Para o religioso, o autor do artigo acreditava que as pessoas mortas não passavam de invólucros sem valor, e que deveriam ser jogadas junto aos cadáveres de burros e de cavalos no mangue de São Diogo.

    O desprezo do padre pelas ideias do “Correspondente” se apoiava na ressurreição dos mortos no dia do Juízo Final. Para Perereca, Deus, depois de moldar o corpo do homem, não o impediria – por seus pecados – de ser restaurado no fim dos tempos. O religioso acreditava que a carne humana era digna e amada pelo seu criador, garantia a sua eternidade espiritual e era tão sagrada quanto qualquer outra de suas obras. Não era correto abandonar um cadáver e não lhe conceder uma sepultura sagrada dentro dos templos.

    Para impor seus argumentos, o padre evocou o passado e os antepassados, numa clara e respeitosa demonstração de tolerância olfativa. Mencionando o episódio no qual o “Correspondente” saiu correndo da igreja, o padre Perereca lembrou que por muitos anos não havia caixas de tabaco ou frasquinhos de água de colônia para os narizes de seus avós, uma vez que os mesmos não se incomodavam com o odor dos cadáveres. Alegou que o fato de suportarem o mau cheiro dos corpos era uma afirmação da fé. Todos aqueles que acreditavam na ressurreição da carne deviam dar seu testemunho. O odor fétido era um incômodo passageiro, que não representava nada para os verdadeiros católicos. Para estes, era fundamental que os corpos daqueles “a quem bem desejariam sepultar nos seus corações” fossem levados para os santuários, onde receberiam o “patrocínio dos santos, que intercederiam a Deus pelos mortos”.

    O padre Perereca não viveu o suficiente para acompanhar o desenrolar dessa história. Ainda na primeira metade do século XIX, os sepultamentos nas igrejas de importantes cidades litorâneas, como Salvador e Rio de Janeiro, foram proibidos, mas a prática não se extinguiu totalmente. No estado de Minas Gerais, em localidades tradicionalmente católicas, como Ouro Preto, São João Del Rei e Tiradentes, alguns templos hospedam túmulos até hoje. Quer dizer, nem mesmo a retirada dos cemitérios da alçada da Igreja, em 1890, serviu de obstáculo à fé católica. Talvez ainda não haja vencedores nessa batalha.

    Felipe Augusto de Bernardi Silveira é professor da UEMG e do Colégio Dona Clara, e autor da dissertação “Entre políticas públicas e tradição: o processo de criação do campo santo na cidade de Diamantina (1846-1915)” (UFMG, 2005).


    Saiba Mais - Biografia

    CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Pecata mundi: a ‘pequena inquisição’ mineira e as devassas episcopais”. In História de Minas Gerais: as minas setecentistas. Maria Efigênia Lage de Resende e Luiz Carlos Villalta (orgs.). Belo Horizonte: Companhia do Tempo/Editora Autêntica, vol. 2, 2007.

    REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1998.

    RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradição e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Divisão de Editoração, 1999.

    Saiba Mais - Internet

    Confira algumas igrejas que ainda têm sepulturas em seu interior em www.rhbn.com.br/sepulturas