Ele era um padre que não gostava de dar sermão. Na época do Império, preferia escrever poemas criticando a escravidão, alicerce econômico do regime. Quando veio a República, passou a denunciar o autoritarismo dos presidentes e a ironizar o novo governo. Para isso, o mineiro José Joaquim Correia de Almeida (1820-1905) usou como instrumento a sátira política e de costumes. Mais do que um velho reclamão – imagem que ele mesmo gostava de cultivar –, foi um autor que hoje ajuda os historiadores a entender melhor os conflitos da virada do século XX, momento de grandes mudanças no país.
Seu principal livro, A república dos tolos, foi publicado em 1881, oito anos antes da queda da monarquia. Nesse poema “herói-cômico-satírico”, o chamado Padre Mestre exibe uma galeria de tipos da realidade social e econômica da época, como os barões do café e os jovens bacharéis de São Paulo. Também expõe ideias correntes, como a doutrina positivista, com sua crença inabalável na ciência e na razão, e o evolucionismo, filho das teorias do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), e que integravam as novas modas e costumes, também ironizados pelo autor.
O protagonista é uma espécie de padre-poeta-músico, ou seja, o próprio Correia de Almeida. Ele ridiculariza pensamentos comuns na época, como no trecho em que propõe catequizar macacos para resolver o problema da “falta de braços” no Brasil. A obra denuncia o artifício ideológico utilizado para transformar em questão pública os problemas de uma classe em particular: “Eu necessito de auxílio/ dos grandes capitalistas,/ para ser executado/ um plano de largas vistas,/ e que é todo a bem do Estado”.
Sua recorrente utilização da imagem de uma “República dos Tolos” expressa sua insatisfação com a sujeição do povo às condições existentes. Apesar de não ser um revolucionário à moda dos jacobinos da época, que de forma exacerbada atribuíam à monarquia brasileira os mesmos vícios do antigo regime francês, o padre busca uma mudança da realidade social e o aperfeiçoamento das instituições políticas. Ele também ataca os dogmáticos que não examinam os seus próprios erros, como os que inadvertidamente ajudaram a consolidar no país uma república autoritária e de feição oligárquica, pouco afeita às mudanças preconizadas pelo próprio ideário republicano. Atento, o poeta não deixou de denunciar o oportunismo que marcou a adesão imediata de certos grupos à República, por meio do poema “Trigo e joio”, de 1890: “Dos súditos de sete de setembro/ todo aquele que fora escravocrata/ deixou de ser a Quinze de Novembro”.
Como gênero poético, sempre usou a sátira, que alcançou prestígio no século XVIII e continuou popular início do XIX. A escolha desse estilo foi mencionada por ele mesmo em um soneto de 1896: “Quando era grão poder a monarquia,/ não fiz bajulações, satirizei-a; nos livrecos de minha má poesia, se alguém duvida, peço-lhe que leia”.
Sua primeira obra foi um hino à maioridade de Pedro II, em 1840, quando era estudante em São João Del Rei. Na casa onde nascera, em 4 de setembro de 1820, em Barbacena, o major Fernando José de Almeida, seu pai, já era envolvido com a política local, assim como seus antepassados. Também em São João, o futuro poeta aprendeu a se interessar pelo que seria outra de suas paixões: a música.
Aos 21 anos, de volta a Barbacena, José Joaquim começou a trabalhar como professor de latim e iniciou seus estudos para se tornar padre. Três anos depois, celebraria a primeira missa. Não gostava de fazer sermões porque se considerava “incapaz de proferir, em público, duas palavras em tom oratório”. Esse era um dos temas de suas sátiras: “Só porque diz um Missão,/ o padre cumpre a missão?”.
A religiosidade de Correia de Almeida não impediu que ele aproveitasse alguns prazeres, como a realização de saraus e preleções em sua casa, que fazia as vezes de salão literário. Chegou a integrar uma sociedade cultural para a promoção de bailes dançantes em Barbacena. Também criticou os vícios e as hipocrisias de certos padres e os erros cometidos em nome de sua Igreja.
Quando podia, Correia de Almeida denunciava a discriminação racial, inclusive entre os religiosos, e era contundente ao expressar sua indignação. Foi o que fez em seu primeiro livro de sátiras, publicado em 1854: “Insuportável/ ultraje, agravo,/ do homem livre/ fazer-se escravo”. A obra, chamada Sátiras, epigramas e outras poesias – mesmo título dos seis livros que lançaria depois –, era uma reunião de poesias publicadas em jornais e revistas de Barbacena, Ouro Preto e Rio de Janeiro.
Muitas poesias do padre eram escritas em forma de epigrama. Poema muito breve, geralmente de dois a oito versos, o epigrama sempre contém um pensamento engraçado e engenhoso, e reserva para o fim o essencial de sua pontaria, como este, intitulado “Cautela na escolha do modelo”, escrito em 1896, para evidenciar o que para ele vinha a ser, na prática, a nova da República.
À República romana
republiquetas não soldes;
cada qual tem lá seus moldes
e o sistema não se irmana.
Uma coisa é catonismo,
outra coisa é gatunismo.
Após A república dos tolos, o escritor publicou ainda catorze volumes de poesias. Já com 61 anos, ele começou a brincar com a própria idade, ridicularizando a si próprio, como uma forma de se antecipar às possíveis críticas. Os títulos de suas obras subsequentes são variações bem-humoradas do mesmo tema: Decrepitude metromaníaca, Produções da caducidade, Puerilidades de um macróbio, Marasmo senil (também chamado de Versos antipoéticos do caduco e desmemoriado José Joaquim Correia de Almeida). O padre publicou ainda um livro em prosa, Notícias da cidade de Barbacena e seu município, em 1883, encomendado pela Biblioteca Nacional, e que lhe valeu o título de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Apesar da popularidade das poesias de Correia de Almeida, que foi registrada por escritores da época, como Olavo Bilac (1865-1918), Artur Azevedo (1855-1908) e Carlos de Laet (1847-1927), ele não teve o mesmo reconhecimento da crítica especializada. Isso por causa dos parâmetros adotados no final do século XIX e do predomínio de autores como Silvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916) e Araripe Júnior (1848-1911), que estavam na base de nossa história literária e que não encontraram em Correia de Almeida mérito ou justificativa para uma simples menção. “Os críticos veríssimos, que falam/ catedraticamente, sempre calam/ o meu nome, deixando-me no escuro”, escreveu o poeta. E numa linha de continuidade dessa primeira exclusão, ele praticamente desaparece das coletâneas e dos compêndios de história da literatura brasileira, assim como ocorreu com a sátira, considerada inadequada, talvez, à construção de narrativas e histórias nacionais.
Até hoje sua obra é pouco conhecida. Queixou-se muito do tratamento que recebeu da crítica em versos aparentemente cheios de amargura, mas que não passavam de um artifício irônico, usado para reforçar o caráter obscuro de sua persona satírica e para se fazer de ingênuo.
No final de sua vida, apesar de reforçar em suas obras a imagem de velho maçante, intolerável e contrário às ideias do progresso, Correia de Almeida denunciou os atos autoritários que marcavam os primeiros anos do novo regime. Assim se aproximou dos literatos que representavam a geração da “desilusão republicana”, como Euclides da Cunha (1866-1909) e Lima Barreto (1881-1922).
Em 1900, para “comemorar” os dez anos do regime completados no ano anterior, Correia de Almeida publicou Aplausos incondicionais (1900), um longo exercício poético no qual, em linguagem acre e contundente, ironiza o novo governo. Sua obra não se propunha apenas a fazer rir, mas a provocar uma dúvida que chamasse atenção para os vários mundos possíveis. Ele procurava livrar o leitor não só do dogmatismo, mas, principalmente, da indiferença e da resignação.
Mais de cem anos após sua morte, em 6 de abril de 1905, a obra de Correia de Almeida continua atual, pois, como afirmou o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em 1982, no Jornal do Brasil, “os vícios sociais são os de sempre; os ridículos e a hipocrisia, também”. E a quem considera uma contradição um padre ser o autor de versos satíricos, Drummond também explica: sua obra está dentro das linhas “ao mesmo tempo conservadoras e cáusticas do espírito mineiro”.
Maria Marta Araújo é vice-presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e autora de Com quantos tolos se faz uma república: Padre Correia de Almeida e sua sátira ao Brasil oitocentista. (Editora UFMG, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia
BARRETO, Lima. Os bruzundangas. Rio de Janeiro: Artium, 1998.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira, da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Sermão em forma de poesia
Maria Marta Araújo