A agitação das ruas costumava chamar a atenção de todo viajante que aportava no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX. “Tudo no Rio é mais animado, barulhento, variado, livre. Nas partes da cidade habitadas pelo povo, a música, a dança, os fogos de artifício emprestam a cada noite uma atmosfera de festa, e se não se encontram grande vigor nem muita delicadeza na letra das canções para violão, e nas conversas barulhentas dos grupos, observam-se pelo menos bastante espírito e bom senso”.
Esse mundo, amplamente dominado pela comunicação oral, foi muito bem retratado por Johann Moritz Rugendas, que chegou à cidade em 1821 como desenhista oficial da expedição científica do barão de Langsdorff. Mas o pintor alemão também seria testemunha de uma importante transformação que se iniciava na época: a difusão da imprensa.A gravura Carregadores de Água (1821) mostra um aglomerado de escravos em torno do chafariz da rua da Vala (atual Uruguaiana), no centro do Rio. Muitas regiões da cidade eram pontos de ajuntamento de escravos que, entre uma faina e outra, faziam ecoar suas presenças oralmente. Nas proximidades do chafariz também se reuniam os libambos, escravos prisioneiros condenados a carregar água para as repartições públicas. Acorrentados pelo pescoço, entravam em contato com diversas pessoas nesses locais, colhendo informações e levando-as até a cadeia. Por solidariedade, transformavam seus corpos e sua voz em meios de comunicação, reproduzindo as notícias da cidade para os que não podiam ver a luz do dia.Nas telas de Rugendas, há muitas imagens que revelam a complexidade dos modos de comunicação predominantemente orais. A música era um deles, e não só nos momentos de lazer, mas também no mundo do trabalho. Os vissungos, cantigas africanas que ritmavam as atividades, por exemplo, funcionavam também para estabelecer diálogos cifrados: a repetição de determinado refrão podia ser usada como senha para avisar os outros da aproximação de um feitor. O som definia o ritmo do trabalho e comunicava algo que não podia ser dito diretamente, criando momentos compartilhados. A vida escrava se organizava de maneira particular em torno das práticas orais complexas, e a música era mais uma dessas estratégias de comunicação e sobrevivência.Mas nos espaços públicos a cultura oral coexistia com uma nova cultura letrada, e as gravuras de Rugendas mostraram essa variedade de práticas de comunicação, não apenas no Rio de Janeiro. Um ano após sua chegada, o pintor alemão desligou-se da expedição de Langsdorff e continuou percorrendo o país por conta própria. Embrenhou-se pelo interior e registrou inúmeras imagens do cotidiano brasileiro. Nas cidades e no campo, aparecem diversos tipos de leituras: jornais, mapas, livros, uma multiplicidades de impressos. Novas práticas e novas relações começavam a criar uma cultura escrita. Os modos orais ainda eram dominantes, mas outra ordem comunicacional aos poucos se impunha. Em diversas províncias expandia-se a imprensa periódica, permitida por aqui apenas a partir de 1808.
Entre dezenas de desenhos, dois chamam particularmente a atenção. O primeiro, intitulado Praia Rodriguez: perto do Rio de Janeiro (1827), é uma cena campestre. Dois homens, aparentemente cientistas, estão acompanhados por uma dupla de escravos. Enquanto um dos homens brancos está de pé, o outro está agachado consultando uma obra. Pelo formato, pode-se supor que sejam mapas ou um compêndio científico. Mas o mais importante é que, naquele ambiente inóspito, o impresso é fonte de informação sobre o mundo que se abre diante dos olhos do provável cientista. Folheando as páginas, o rapaz ajoelhado procura algo. Talvez esteja buscando a localização para onde deseja ir, ou quem sabe comparando espécimes naturais encontrados por eles com os descritos no livro.A gravura Mottosinho perto de São João Del Rey (1835) mostra um grupo de viajantes numa estrada entre as montanhas. Um deles maneja o carro de bois, surgem alguns ao fundo a cavalo, e destaca-se outro a pé, puxando um burro carregado de cargas. Na direção contrária, um homem, acompanhado por um escravo, tira o chapéu ao cruzar com o viajante. O escravo, por sua vez, para e aponta um grande livro que está nas mãos do homem. Talvez seja um mapa indicando uma localização.Pouco importa se Rugendas viu mesmo essas cenas, se as vestimentas eram de fato aquelas, se o gesto de cada personagem foi fielmente fixado ou se havia algum sentido crítico nos desenhos. O que interessa é perceber que o artista, ao registrar imagens de cadernos, livros, folhas escritas, romances, mapas e compêndios científicos colados aos corpos dos sujeitos, estava mostrando novas formas de comunicação que passavam a existir. As letras manuscritas e impressas somavam-se aos modos orais e ampliavam as possibilidades tecnológicas de comunicar.
São como janelas que se abrem para um futuro que ainda não existe. Ver os escritos torna-se experiência compartilhada, mesmo que naquele momento isso ainda não fosse claro para os indivíduos, muito menos percebido da mesma forma por todos. As tecnologias que fazem proliferar os impressos permitem a expansão da cultura letrada, ampliam a difusão da palavra e introduzem novos sentidos para o mundo.Esse universo emergente incluía até aqueles que não sabiam manejar o código escrito, pois as letras assumiam, ainda que parcialmente, o lugar da voz. O mundo dos sentidos e das expectativas em torno dos impressos se alastra oralmente. Os escravos na cena da Praia Rodriguez, por exemplo, provavelmente não sabiam ler, mas tomaram conhecimento do impresso e viram nele uma possibilidade de buscar algo. Na prancha Mottosinho, o escravo torna-se personagem ativo no processo de se comunicar por meio de um impresso. Ele não está passivo à espera da leitura do letrado: aponta e toca o livro, indicando que poderia ser um decifrador daquele código.É uma nova maneira de olhar o mundo, que antes só existia diante do olhar, mas agora podia também ser descrito com palavras impressas, traços e contornos. A tecnologia da escrita e da impressão amplia o alcance visual, permitindo a chegada de informações de outros lugares e de outras pessoas, promovendo gradualmente mudanças nas relações sociais.Em muitas das imagens de Rugendas observa-se a possibilidade da leitura partilhada. Não apenas porque alguém lê diretamente para outro, mas porque os personagens próximos dividem aquele momento, mesmo que indiretamente. Os escravos que esperam o texto ser decifrado em Praia Rodriguez para completar suas tarefas constroem uma ideia sobre o gesto do provável cientista em relação ao texto fixado no grande livro. Naquele impresso, havia algo que permitiria o passo seguinte: nele se procurava alguma coisa passível de ser decifrada. E, finalmente, ela é revelada. Ao apontar com o dedo a imagem estampada no papel, o cativo da cena seguinte não apenas reconhece o desenho, mas é capaz de estabelecer um pensamento abstrato, vinculando a imagem a um lugar, um código, um sentido.A expansão dos impressos permite que vários grupos tomem contato com eles e de diversas maneiras, introduzindo-os direta ou indiretamente nos processos de comunicação que realizam. Ainda que as letras escritas não fossem o modo dominante, elas assumiram um lugar simbólico nas ruas da cidade e na imaginação daqueles que eram capazes, ou não, de decifrar tais códigos. Aos poucos, a cultura letrada caminharia lado a lado com o barulhento falatório ouvido pelas vielas.Marialva Carlos Barbosa é professora de Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, presidente da Sociedade de Estudos Interdisciplinares da Comunicação e autora de História da Comunicação no Brasil (Editora Vozes, 2013).Saiba MaisDIENER, Pablo & COSTA, Maria de Fátima. Rugendas e o Brasil. Editora Capivara: São Paulo, 2002.DUTRA, Eliana de Freitas & MOLLIER, Jean-Yves. Política, Nação e Edição – o lugar dos impressos na construção da vida política Brasil-Europa e Américas nos séculos XVII-XX. São Paulo: Annablume, 2006.OLIVEIRA, José C. D. João VI adorador do deus das ciências – A constituição da cultura científica no Brasil (1808-1821). Rio de Janeiro: E-papers, 2005.RUGENDAS, Johann-Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Martins Fontes/Edusp, 1972.
Sob novas impressões
Marialva Carlos Barbosa