Atrair homens para lutar em conflitos que castigaram a Europa, suas colônias e entrepostos nos séculos XVII e XVIII não era tarefa simples. Por isso, durante os anos de ocupação dos holandeses no Nordeste do Brasil, de 1630 a 1654, os recrutadores tiveram papel fundamental no alistamento de soldados. A fim de conseguir contingente suficiente para guarnecer navios e fortificações, eles lançavam mão de armadilhas, prometendo mundos e fundos aos recrutados.
Este tipo de recrutamento era comum na Companhia das Índias Ocidentais, como era chamada uma das organizações comerciais das Províncias Unidas, assim como em outras companhias de comércio e governos europeus. Um exemplo desta prática está no livro História das Últimas Lutas no Brasil entre Holandeses e Portugueses (1651), de Pierre Moreau (?-1660), que conta como seis jovens viajantes franceses foram abordados por dois homens em Midelburgo, capital da Província da Zelândia. Os aliciadores tentaram convencê-los a seguir viagem para o Nordeste do Brasil por volta de 1645 – a região estava parcialmente ocupada desde 1630. Esses recrutadores prometiam benefícios, como a possibilidade de enriquecimento por meio da pilhagem de portugueses. Mas um dos jovens, recém-chegadodo Brasil, advertiu os demais: disse que as promessas eram falsas, livrando todos da cilada.
Os aliciadores circulavam pelos portos, perto de bares, bordéis e alojamentos, abordando viajantes recém-chegados às Províncias Unidas dos Países Baixos, nos séculos XVII e XVIII. Nestes ambientes, os donos de estabelecimentos reuniam possíveis soldados para as companhias comerciais holandesas. Os alvos prioritários eram homens desempregados e pobres.
Moreau descreveu os recrutadores como donos de alojamentos, que mantinham os clientes hospedados até gastarem todo o dinheiro e passarem a consumir a descoberto, criando uma linha de crédito. Impossibilitados de saldar os débitos, os hóspedes eram obrigados a entrar no serviço de umas das companhias como forma de pagamento. Cada recrutado receberia da Companhia das Índias Ocidentais dois meses de salário adiantado. Aos recrutados como soldados, a Companhia das Índias Ocidentais oferecia um pagamento de oito florins mensais acrescidos de cinco florins de ajuda de custo. Os recrutados também receberiam comida, cujo valor era deduzido da conta-salário.
Esses comerciantes temiam que seus recrutados fugissem antes de firmar compromisso com alguma companhia de comércio para escapar das dívidas contraídas. Nem todos os aliciados ficavam presos, pois a relação com o recrutador também podia ser amistosa. Mas se as contas fossem tão elevadas que os clientes não pudessem pagar com o dinheiro recebido pelo recrutamento, eram impelidos a assinar uma cédula de transporte. O documento permitia que o aliciador sacasse o dinheiro da conta do recrutado no fim do tempo de serviço ou em períodos determinados, de forma que a dívida com hospedagem, comida e equipamento de viagem fosse amortizada.
Essa espécie de nota promissória normalmente era revendida a terceiros ou a credores do dono do alojamento, que a compravam por valor inferior ao débito. A palavra cédula, em holandês ceel, foi substituída, no jargão popular, por ziel, que significa alma, dando origem às expressões “vendedor de alma” e “comprador de alma”.
Alguns relatos de viajantes que vieram para o Brasil chegaram a narrar um pouco da experiência vivida nesses alojamentos. O dinamarquês Peter Hansen (1624-1672) e um amigo estiveram, em 1644, num desses locais, em Amsterdã, antes de assinarem contrato com a Companhia das Índias. Peter contou que a dona da casa os levou a um jardim, onde uma prostituta serviu vinho e ofereceu serviços sexuais. Ao ser assediado, ele escapou do alojamento, indo se hospedar em outra estalagem, provavelmente relacionada ao sistema de recrutamento. Já o alemão Stephan Carl Behaim (1612-1638), antes de embarcar para o Brasil, em 1636, também foi parar numa dessas hospedarias. Ameaçado, não teve como pagar a dívida, e se viu obrigado a prestar serviço à Companhia.
As dívidas eram altas, como mostram os relatos de alguns soldados recrutados nesse esquema. O cadete naval Anthoni Tournemine, de Paris, partiu para os Novos Países Baixos – a colônia da Companhia na América do Norte – autorizando o dono da hospedaria Os Três Mercadores, Michiel Chauvyen, no dia 20 de janeiro de 1637, a receber 135 florins pelos 18 meses de confinamento, quantia elevadíssima para quem recebia cerca de 10 florins por mês. Já o marujo Jan Jansz, após voltar do Brasil, para onde partira em 1639, seguiu novamente em 1645, deixando uma declaração no notário de Amsterdã, datada de 6 de maio, que autorizava o dono de estalagem, Andries Claesz, a receber todos seus salários atrasados no Brasil. Os soldados Olon Olderickx e Sijmon Pijckaert, recém-chegados da região, autorizaram Jan Gillisz e sua esposa, Anneken Jans, a descontar seis meses de ordenado pela hospedagem em sua estalagem, como indica a permissão deixada com o casal, datada de 22 de junho de 1655.
Por segurança, muitos donos de hospedaria repassavam as promissóriascomo garantia de pagamento da dívida. Essas notas registravam elevadas somas de dinheiro que só podiam ser sacadas em um escritório de pagamento nos Países Baixos. Eles esperavam meses, e às vezes anos, para reaver o dinheiro investido, o que significava que obtinham lucros menores que o esperado. Caso o recrutado morresse ou desertasse, o portador da promissórianão poderia sacar o dinheiro. Como muitos mantenedores não eram ricos e precisavam pagar pela comida, bebida e equipamentos comprados a crédito, a saída era repassar a cédula por valor mais baixo, mas em espécie.
Os donos de alojamento também se empenhavam em arregimentar ex-empregados das companhias, principalmente quando eles voltavam para a Europa. Muitos desses homens desembarcavam dos navios, sacavam o dinheiro de suas contas e em seguida se instalavam em hospedarias e bordéis, onde passavam algumas semanas vivendo luxuosamente. Essa estada faustosa lhes rendeu o apelido de “nobres das seis semanas”, referência ao tempo médio em que torravam todo o dinheiro acumulado em anos de trabalho nas Índias.
Vendedores e compradores de cédulas lucravam com o recrutamento, mas quem pagava a conta eram os contratados das companhias. Apesar das desvantagens, o sistema não era totalmente desaprovado e funcionou sem maiores problemas até 1740, quando a má fama dos aliciadores passou a interferir no negócio. O fato de o sistema oficioso ter sido utilizado para contratar homens para os exércitos gerou vantagens: milhares foram enviados para as Índias Ocidentais e Orientais. A fama conquistada pelas companhias comerciais holandesas, fruto do comércio lucrativo, existe até hoje. Mas contrasta com o esquecimento a que foram condenados os protagonistas do sistema, os compradores e vendedores de almas.
Bruno Romero Ferreira Mirandaé autor da tese “Gente de guerra: Origem, cotidiano e resistência dos soldados do exército da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654)”(Universidade de Leiden, Holanda, 2011).
Negócio das Índias
Enquanto Portugal e Espanha concentravam no Estado a fiscalização, o usufruto e as transações relacionadas às colônias, o governo holandês concedia a mercadores o monopólio comercial com a América e a África – assim foi criada, em 1621, a Companhia das Índias Ocidentais (em holandês, West-Indische Compagnie ou WIC). A exemplo da Companhia das Índias Orientais, que desde o início do século XVII punha os Países Baixos em disputa com outras nações no cobiçado comércio com o Oriente, a versão ocidental fez dos holandeses uma potência marítima.
A WIC se beneficiou da existência de uma estrutura monetária e fiscal bem-sucedida, herdada do início das atividades da Companhia das Índias Orientais. O Banco de Amsterdã, utilizado pelos comerciantes reunidos nas companhias, havia sido fundado em 1609, época em que os impostos sobre as mercadorias já enchiam os cofres holandeses.
Além de deter o monopólio do comércio holandês com a África e a América, a WIC acabou funcionando como instrumento de conquista e colonização de terras, notadamente em regiões sob administração portuguesa. Aproveitando a situação vulnerável de alguns pontos das colônias portuguesas, uma armada da WIC conquistou Olinda e Recife em 1630. A região era muito cobiçada devido à adequação da cana-de-açúcar ao solo e ao clima, e o poder sobre aquelas terras significava o controle de uma parte importante do comércio mundial de açúcar, um dos produtos mais valiosos no mercado no século XVII. O fracasso da invasão de Salvador (1624-1625) contrastou com a ocupação holandesa no Recife, que durou 24 anos, consolidando a Holanda como uma grande potência colonial. (Alexandre Belmonte)
Saiba Mais - Bibliografia
BOXER, Charles Ralph. Os holandeses no Brasil: 1624-1654.Recife: Cepe, 2004.
MELLO, Evaldo Cabral de (org.). O Brasil holandês (1630-1654). São Paulo: Penguin Classics, 2010.
MOREAU, Pierre. História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979.
ZUMTHOR, Paul. A Holanda no tempo de Rembrandt. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1992.
Soldados sem soldo
Bruno Romero Ferreira Miranda