“Sou cachorrinha muito dengosa, mas quando mordo sou venenosa”. Se não tivesse vindo a público nos idos de 1880, a frase se encaixaria perfeitamente na letra de um funk capaz de contagiar multidões. Mas A Cachorra não é o título de uma música do gênero. É simplesmente o nome de um jornal que surgiu no Recife para ridicularizar a divisão dos liberais de Pernambuco em duas facções rivais: a dos “leões” (membros da família Leão) e a dos “cachorros” (“democratas”).
O convite à leitura parecia irresistível: “vende-se a 40 réis – é barato e gostosa”. A Cachorra, porém, teve vida curta: circulou somente nos dias 18, 26 e 28 de agosto de 1880, deixando no acervo de Periódicos Raros da Biblioteca Nacional apenas o número dois, e um imenso desejo de conhecer os outros. Afinal, não é sempre que no editorial de um jornal um animal assume a condição de político: “Eu bem sei que é para causar admiração os irracionais serem políticos, porém como o mundo é assim mesmo, sou uma política de quatro costados” – palavras, ou melhor, latidos d’ A Cachorra.
Mas o bom-humor dos redatores e “proprietários” da Tipografia da Cachorra tinha um propósito: achincalhar, sob a proteção do anonimato, políticos de Pernambuco – principalmente os membros da família Leão –, de outras províncias, e as próprias instituições políticas do país, especialmente o Senado: “estou danada, não é história, toda a questão é a senatoria”.
Nessa época, o Império estava na 17ª legislatura (1878-1881). Com o falecimento do senador pernambucano Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque, visconde de Suassuna, os “leões” se mobilizaram para eleger um novo representante no Senado. A tensão se instalou no Recife e em outras cidades da província e a situação caminhava para as vias de fato. Apesar disso, em nenhum momento o jornal deixou transparecer o clima pesado da disputa. Mesmo quando os “cachorros”, aliados dos conservadores, perderam a briga com a eleição de Luiz Felipe de Souza Leão, ex-deputado geral, provincial, e grande proprietário de terras de Jaboatão. A escolha do “leão” alvoroçou os adversários e A Cachorra começou a latir: “Já que a natureza organizou-me para ladrar e não falar, ladrarei – au, au, au, au!” O evento foi alvo de troça na coluna “O cachorrinho filho da cachorra”: “mamãe você já chegou? (...) Mamãe já viu uma cousa! O que é menino? É que com o telegrama dando notícia da escolha do Luiz Leão, vi pelas ruas muitos cachorros com as caudas entre as pernas! (...) Ah! Você, mamãe, está cotó!”
Fora de Pernambuco, o que se passava nos bastidores do poder foi alvo de zombaria na coluna “O jantar fraternal (continuação)”. Nela, o jornal dava prosseguimento à crônica jocosa de um fato ocorrido, ao que tudo indica, na Corte, narrando “alguns incidentes” ou verdades que melhor seria se permanecessem ocultas: “o [senador gaúcho] Silveira Martins, inspirado ou não por deus Baco, o que é certo é que disse: protesto contra a independência e patriotismo da Câmara [dos Deputados], pois é subserviente e só faz o que o governo quer”. Ato contínuo, “os deputados ofendidos saíram resmungando: aquilo que disse o Silveira é uma verdade, pois que tudo que o governo quer, nós queremos, porém todas as verdades não se dizem! A isto eu lati – au, au, au, au!”
As “inconvenientes” declarações ironicamente atribuídas a Silveira Martins insinuam que certas imposturas são históricas, dadas as semelhanças com os banquetes oferecidos nos dias de hoje nos círculos do poder, nos quais se come bem e se bebe melhor ainda. Depois da saia justa em que o senador gaúcho colocou o imperador e seus comensais – “Ah! Quem é que não sabe qual foi a confusão!” – , o faro d’ A Cachorra entrou novamente em ação: “Quem se regalou foram os criados e aqueles deputados que não tomaram freio nos dentes e encheram as bochechas de empadas, de fiambres, de carne do Rio Grande com feijão preto”, ou preferiram se empapuçar com “bom presunto, champanhe, chambotim, porto, xerez, madeira seca, mok, orfila, marrasquinho, abicinth etc.”
Ao mesmo tempo em que revelava as contendas entre grupos locais famintos de poder, A Cachorra reflete também um pouco da arte de fazer política em âmbito nacional. Falando sério, por meio das páginas deste efêmero jornal é possível olhar criticamente o passado e perceber certas permanências no comportamento dos representantes da nação. E, por que não, incorporar o leão à nossa fauna política.
Soltando as cachorras
Fabiano Vilaça