Na tela “Sagração de D. Pedro I”, Jean-Baptiste Debret caprichou nos detalhes decorativos da Igreja Nossa Senhora do Carmo – hoje, Antiga Sé. Lustres, candelabros, molduras trabalhadas e o vestuário de luxo dos convidados mostram o requinte do ambiente preparado para a coroação de D. Pedro I, em 1822. Ao fundo, está uma joia da história musical brasileira: o órgão de tubos, o mesmo que foi tocado por grandes organistas, como o português Marcos Portugal (1762-1830) e o brasileiro padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830).
Hoje, daquele instrumento que participou de importantes comemorações do Império restam algumas referências, como a fachada. Mas 2013 promete... Um novo órgão está sendo construído para ocupar o coro da igreja. E ele não tem apenas pompa, como o imperial, tem também 4.000 tubos e recursos tecnológicos que contribuem para que o instrumento seja ainda mais grandioso, o mais modernoda América Latina. Trata-se de um projeto de R$ 2,4 milhões, financiado pelo BNDES para a Associação de Amigos da Antiga Sé (Samas). Com cerca de sete metros de altura, o “gigante musical” será sustentado por quatro vigas de ferro de 12 metros. Não é para menos: o peso estimado do instrumento se aproxima de 20toneladas.
O órgão terá uma transmissão de dados eletrônica, dos teclados para os tubos, que permite que o organista – normalmente pouco conhecido pela plateia por ficar “escondido” – fique visível para o público. Além disso, o console poderá ser conectado a um computador. O organeiro francês Daniel Birouste, responsável pela construção do instrumento, conta uma história que ilustra bem as possiblidades desse recurso tecnológico: “Há alguns anos, eu tinha acabado de finalizar um órgão no interior da França. Um menino entrou na igreja, plugou seu laptop no console e o órgão tocou uma composição de sua própria autoria. Foi muito emocionante”.
Birouste tem verdadeira paixão por sua profissão, um trabalho que une as habilidades de um artesão e as de um engenheiro – são muitos os cálculos para a confecção de cada tubo de madeira e de metal –, com muita sensibilidade musical. Com 36 anos de ofício e agraciado pelo governo francês com os títulos de Cavaleiro das Artes e das Letras e Cavaleiro da Ordem do Méritopor sua atividade, ele se dedica ao novo órgão da Antiga Sé desde 2010. Mesmo localizada em uma rua muito movimentada do Centro do Rio de Janeiro, a Primeiro de Março, em plena Praça XV, a igreja impressionou o organeiro por sua acústica. “O som pode ser ouvido de uma forma muito limpa aqui. Trata-se de uma acústica rara”, afirma Birouste enquanto circula pela igreja, onde também está instalada sua oficina.
No espaço reservado para a construção do instrumento há mais cinco trabalhadores coordenados por Birouste. O dia a dia dessa equipe não é mole: medir, lixar, furar e serrar cada pedaço de madeira para alcançar a perfeição sonora. “Encontrei o órgão praticamente destruído. Toda a parte de madeira foi comida por cupins. Por isso foi preciso construir um novo”, diz o organeiro, que estudou obsessivamente as várias fases do órgão dessa igreja. A primeira coincide com a designação da Igreja Nossa Senhora do Carmo como Capela Real Portuguesa em 1808, com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro. O órgão, do início do século XIX, tinha características ibéricas, com timbres que serviam à liturgia latina. “Neste tipo de execução, há um diálogo entre o canto dos clérigos e o som do órgão”, explica Birouste. Por volta de 1920, sob a direção do cardeal Arcoverde (1850-1930), a igreja ganhou um instrumento que veio da Alemanha. “Fiquei surpreso ao encontrar uma imagem barroca na fachada com um instrumento alemão. Na verdade, o órgão acompanhou a evolução das orquestras, passando a ter um som mais grave para acompanhar o coro. Agora vai ter 75 timbres diferentes”, conta.
A variedade de sons desta nova versão tem um motivo: a ideia é não restringir o instrumento à execução de música barroca. Segundo Ricardo Tacuchian, diretor musical da igreja, por ser muito polivalente, poderá ressoar “obras desde o barroco até a música contemporânea do século XXI”. “Um instrumento de tal importância vai atrair o interesse da comunidade organística internacional. Grandes artistas vão se encontrar no Rio”, profetiza Tacuchian, que também é compositor e professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para Tacuchian, a importância histórica da música tocada na Antiga Sé está além do fato de ter participado dos principais eventos da Corte no século XIX. Foi naquele coro que o padre José Maurício Nunes Garcia tocou boa parte de suas composições. “José Maurício é para nós uma figura fundamental, o maior músico sacro da história musical brasileira. Ele faz uma linha de continuidade com Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos”, diz o músico, que promete incluir o repertório do padre nas apresentações da Antiga Sé. “Pretendemos fazer seis concertos na inauguração, cada um com duas sessões, com artistas brasileiros e internacionais”, garante. A secretária geralda Samas, Daisy Ketzer, gosta da ideia: “Aqui aconteciam grandes apresentações de músicos. D. João era musical”.
Os historiadores confirmam. Para Paulo Castagna, professor da Universidade Estadual Paulista, uma nova onda musical envolveu o Rio de Janeiro no início do século XIX. Segundo ele, o aumento da procura por espetáculos musicais durante a estada de D. João na cidade – de 1808 a 1821 – foi extraordinária: “Dos compositores passou-se a exigir a criação de obras religiosas mais virtuosísticas e o trabalho com gêneros profanos ainda pouco praticados no Brasil, como a ópera e a música instrumental. O Rio de Janeiro assistia à chegada de um estilo cortesão de consumo musical”, escreveu o professor.
Segundo o historiador Maurício Monteiro, a partir de 1808, “as obras religiosas ganharam outro status, não só social, mas também estilístico”. “A vinda da família real para o Brasil, juntamente com alguns dos compositores e intérpretes portugueses que serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo e as práticas desses músicos coloniais, ‘construindo’ uma nova percepção do gosto e uma nova maneira de observar o mundo das artes”, escreveu Monteiro.
Quanto ao papel social da música na igreja, Paulo Castagna chama a atenção para a sua função simbólica: “A música era também uma demonstração de poder da Igreja e do Estado, manifestando artisticamente a hierarquia desejada na sociedade. O órgão preenchia o espaço sonoro de todo o templo, como a Igreja e o Estado preenchiam toda a cultura humana. Um alaúde ou uma flauta não conseguia fazer isso e, por isso, o órgão foi introduzido nas igrejas medievais, quando a Igreja e o Estado surgiam como as grandes instituições europeias de controle social. O órgão foi o instrumento de maior volume sonoro, até o advento da amplificação por meios elétricos, na década de 1920”.
Com ar palaciano ou não, o fato é que a Antiga Sé pretende dar a largada em um novo circuito musical na cidade. Fazer da igreja um ponto de encontro para se ouvir música não é novidade em alguns países europeus, como França e Alemanha. A catedral de Berlim, por exemplo, faz pelo menos 100 concertos por ano. Professor e organista da catedral de Berlim, Andreas Sieling diz que muitos turistas vão à igreja para apreciar a música. E o repertório pode ser abrangente: “Todo tipo de música”, diz Sieling. Também, pudera, este órgão tem 7.269 tubos, com 113 registros. Mas os números não significam muito quando o assunto é música: “Oinstrumento é bom quando o som do tubo alcança a alma do ouvinte”, garante o organista.
Aliás, na Alemanha, assim como na França, é difícil não encontrar um órgão de tubos dentro de uma igreja, católica ou protestante. Há mais de 100 fábricas do instrumento na Alemanha. Na França, há registros de cerca de 10.000 órgãos. Parece, e é, uma imensidão perto do que temos por aqui. Só no estado do Rio de Janeiro há cerca de 40. Mas os que funcionam são lembrados de cor por Tacuchian, como os da Igreja Nossa Senhora da Glória da Lapa, da Santa Cruz dos Militares, do Mosteiro de São Bento, Salesianos, de Santa Terezinha e Luterana. Fora do circuito religioso, há o órgão da Escola de Música da UFRJ – inaugurado recentemente.
Pelo visto, depois de integrar o circuito histórico da cidade, a Antiga Sé será incluída também no circuito musical. As novas tecnologias estão servindo à preservação da história cultural da Igreja, uma cultura que o pesquisador Maurício Monteiro credita à herança portuguesa: “Os portugueses podem ter sido um povo muito estranho, mas eles gostavam de música”.
Saiba Mais - Bibliografia
MONTEIRO, Maurício. A construção do gosto: música e sociedade na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1821. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
MORAES, José Geraldo Vinci de. SALIBA, Elias Thomé. História e música no Brasil. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010.
Som de peso
Vivi Fernandes de Lima