Criaturas notívagas riscadas no papel. Um jogador de baralho, um seresteiro, prostitutas, um gato fazendo charme e até um poste. Personagens das rodas boêmias de um passado recente desenhados por um dos maiores pintores brasileiros. Mas não é só isso. Fios fazem parte da obra, às vezes só perceptíveis pela sombra. Cordéis que parecem guiar os movimentos desses seres imprósperos como fantoches: Fantoches da Meia-Noite, publicado em 1921 e assim batizado por Di Cavalcanti (1897-1976), seu autor. No álbum, 16 desenhos repletos de ângulos, sombras e vazios, em nanquim e guache sobre papel, indicam a proximidade com o expressionismo europeu. Ao mesmo tempo, a insistência num submundo abrutalhado revela a distância do ideal refinado da belle époque carioca.
Nascido no Rio de Janeiro, na Rua do Riachuelo, região central da cidade, Di viveu entre as rodas boêmias e os círculos de vanguarda, entre o Rio e São Paulo, cidade onde a série dos fantoches foi lançada. Foi um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922 e teve sua obra marcada pela vida noturna. É constante a presença de símbolos brasileiros em suas telas, que acabaram lhe rendendo o título de “Pintor das mulatas”.
Editado por Monteiro Lobato, o livro apresenta uma contribuição de um amigo de Di: Ribeiro Couto, que assina o prefácio, um diálogo entre os dois artistas – o pintor e o poeta – nas noites boêmias do Rio de Janeiro do começo do século XX. O texto pode ser interpretado como uma espécie de roteiro dos desenhos:
Pela fatigada praça do bairro vicioso, onde os lampiões allumiam desvãos com luz erma, arrastam vultos. Numa esquina, ao fundo, ha um bar. Vem das portas amplas o barulho confuso das vozes e a sacudida plangência do piano fanhoso. Passa rapido, na direcção do caes, um auto levando gente a cantar, numa alegria de sabbado caxeiral. E volta o sossêgo a fatigada praça, ao fundo da qual as portas fixam a sua grande mancha clara e sonora.
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Somnolento, o rondante olha o luar. Depois, caminha uns passos, atravessa a calçada, agarra pelo hombro uma senhora que dormia. A sombra vai sentar-se mais longe, noutra soleira de porta. E o rondante, distrahido, volta á contemplação do luar, bocejando.
Mulheres, sahindo dos beccos equivocos que desembocam na praça fatigada, param perto de homens, murmurando convites.
(...)– Fantoches da meia-noite...Como são infelizes, trágicos!
– Infinitamente, meu caro pintor.
Devemos ter o ar vagabundo dos philosophos sem importância. Começamos a dizer baixo reflexões penosas.
– Nós também somos fantoches.
– Evidentemente.
– São todos, somos todos fantoches...Não vês os cordéis do destino a movê-los, a mover-nos? São cordéis imponderáveis... E o destino sabe articular-nos com habilidades de contra-regra cruel...
(...)
– A meia-noite é o principio da vida differente. Depois da meia-noite, todas as creaturas têm a sua finalidade trágica marcada no rosto, ou no gesto, ou na voz. Todas se confessam, sem querer.
– Todas mostram os cordéis...
Seguimos pelo caes, á sombra das arvores. Cada vulto que encontramos nos dá a sensação de uma personagem inconsciente a desempenhar isolada o seu papel.– Fantoches!
– Si eu fosse o contra-regra...
E o luar, como uma gambiarra excepcional, illumina do alto a farça monotona...
Rio, dezembro de 1921,
Ribeiro CoutoA rara primeira edição de Fantoches da Meia-Noite pode ser encontrada na Biblioteca Nacional, sob a tutela da Divisão de Iconografia. (Por Maria Mostafa)
Somos todos fantoches
Maria Mostafa