Filha de pais gregos, Sula Kiryacos Mavrudis passou a infância de cidade em cidade pelo interior do Brasil, morando em canteiros de obras. Migrante e nômade, teve a oportunidade de conhecer de perto a cultura popular, e encontrou no circo um espelho de sua própria identidade. “O circo vem, se apega, toca o coração das pessoas, é tocado em cada comunidade. Mas vai embora e não volta mais. É uma vida de saudade e de perdas.” Adulta, virou professora de balé e de música, contadora de histórias e fazedora de oficinas para crianças que moravam em obras, como ela. Até que percebeu que muitas daquelas famílias circenses que conheceu estavam sumindo. E decidiu procurá-las.
Diretora da área de circo do Sindicato dos Artistas de Minas Gerais [“Como voluntária, viu?”], Sula deu-se conta de que, por sua natureza nômade, os artistas de circo não conseguiam lutar por leis que melhorem sua condição de vida. Virou intermediária entre o circo e a cidade. Desde então, acumula grandes preocupações e algumas alegrias. À frente de projetos como a “Encircopédia” e a “Cidade do Circo”, ela quer manter viva essa tradição que está se perdendo. Atualmente, enfrenta uma batalha contra o crescente movimento que pretende proibir os animais nos circos.
Nesta conversa em Belo Horizonte, ela falou de suas pesquisas sobre a cultura circense, explicou por que os circos se afastaram das cidades grandes e detalhou o preconceito que persegue esses artistas, ciganos e pobres. “Me sinto como aquelas pessoas que escondiam judeus na época do nazismo.”
REVISTA DE HISTÓRIA – O que acha da campanha para proibir animais em circo?
SULA MAVRUDIS – Tudo começou por causa do acidente com o leão do circo Vostok, em Recife [o animal enjaulado matou uma criança, em 2000]. Depois disso, fizeram uma lei municipal impedindo a entrada de circos com animais na cidade, e virou uma bola de neve: toda cidade começou a fazer leis iguais. O Palhaço Pardal, do picadeiro, viu o pai indo com o menininho e colocando perto da jaula. Não deu tempo de segurar o pai. Se fosse durante o dia não tinha acontecido isso, porque tem muita gente vigiando. Foi durante um espetáculo, em que toda a equipe do circo tinha uma função a fazer. Ele ia botar o menino lá para tirar uma fotografia. A pessoa vê o animal ali e acha que pode chegar perto.
RH – Agora estão votando uma lei nacional?
SM – Há quase dez anos existe um projeto de lei, do senador Álvaro Dias (PSDB-PR), que declara o circo patrimônio histórico, a ser protegido e amparado. No ano passado, quando ia ser votado, as ONGs que defendem a natureza procuraram um deputado que se chama Antonio Carlos Biffi (PT-MS) e ele entrou com um substitutivo da lei. No lugar da lei que garante aos circenses os direitos de cidadão, o substitutivo simplesmente proíbe o exercício de números com animais.
RH – O outro projeto foi engavetado?
SM – Ficaram os dois. O da Lei do Circo não proíbe o exercício de trabalho com animais, mas regulamenta. Você perde o seu bicho se ele não tiver tal área, se não tiver tanta alimentação por dia, se não tiver veterinário, se não estiver registrado no Ibama. Ou seja: tudo o que já acontece. O Ibama sempre exigiu que todos os bichos sejam registrados, tomem vacina, sempre fiscalizou. Não está vacinado, não tem alvará, acabou. Quem entende de cuidado com animal são justamente as famílias de circo que vieram de fora e trouxeram esse know-how. Eles cuidam bem dos seus animais. Inclusive costumam ser chamados pelos zoológicos quando algum animal de grande porte fica doente. Veterinários comuns não sabem tratar elefante, leão.
RH – E no dia da votação houve problemas?
SM – A lei ia ser votada dia 21 de agosto. O Le Cirque foi acompanhar a votação, e eles têm animal. Como em Brasília a lei proíbe circo com animais, veio a Polícia Federal apreender os bichos, botaram metralhadora na cabeça das crianças, das mulheres.
RH – Existe preconceito contra os artistas de circo?
SM – O circo é pobre, e o maior preconceito que existe no mundo é contra pobre. Os circos estão escondidos nas cidades pequenas porque não podem entrar nas grandes. Circo pobre espanta o público. A aparência do circense pobre espanta o público.
RH – Mas eles são proibidos de entrar nas grandes cidades?
SM – Faltam pessoas da área de circo na hora de criar as leis. A regulamentação urbana não previu o circo. As cidades conquistaram praças, teatros, ginásios, zoológico, parque. Mas não têm um terreno para os circos. O segundo problema é a regulamentação para eventos públicos, que exige alvará para tudo. Como o circo pode ter documento para evento, se ele não é um evento? As características de um circo são diferentes. Ele não tem só o picadeiro. Tem as cadeiras em volta, tem a lona, tem a pracinha de alimentação, tem os trailers, tem a moradia. Como conseguem autorização para entrar com tudo isso? As exigências de segurança são enormes. A primeira é ambulância na porta. Como é que um circo pequeno vai pagar uma ambulância na porta toda noite para o espetáculo? Se o bombeiro for fazer vistoria de um mato com uma lona furada e umas cadeirinhas mirradinhas, vai dizer que não tem segurança. E para o bombeiro ir lá fazer a vistoria, primeiro o circo tem que conseguir laudos técnicos: elétrico, acústico e de segurança. O laudo de um engenheiro custa 1.500 reais.
RH – Você nunca trabalhou em circo. Como surgiu sua paixão por ele?
SM – Passei minha infância e adolescência inteiras assistindo espetáculos circenses, nos canteiros de obras. Meus pais são gregos e vieram para o Brasil depois da Segunda Guerra. Ele foi trabalhar como eletricista na construção de grandes obras. Em quase todas as hidrelétricas que tem por aí papai trabalhou. Era onde a gente morava, nos acampamentos. Eu nasci no Paraná, tenho uma irmã mineira e um irmão piauiense. Morei em Goiás, no Maranhão, em Foz do Iguaçu... Pessoas como eu, filhos de “barrageiros”, tiveram a oportunidade de conhecer muito da cultura do Brasil, da cultura popular, inclusive porque a gente não tinha acesso a outras coisas. O que fazia diferença na minha vida era o circo, e as oficinas. Todas as construtoras, quando têm pessoas ilhadas em alguma obra, tentam dar uma programação cultural. Eu fazia aulas de música, de teatro, de dança. Quando vinham os circos, meu pai instalava a luz para eles, botava água, consertava o globo. E ganhava convites, porque eles ficavam muito gratos. A gente ia ao circo toda noite. Meu privilégio especial era conhecer todos os circos, todas as famílias, todo mundo que passava. Depois que eu cresci, comecei a ver que essas famílias não existiam mais. Aí fui tentar achar.
RH – Quando começou a decadência do circo?
SM – No início da década de 1980. As cidades começaram a crescer, e as cidades vizinhas copiavam as leis de Belo Horizonte, por exemplo. O circo-teatro acabou porque eles não conseguiam dinheiro para manter o figurino e o cenário básico.
RH – Como era o circo-teatro?
SM – Esse foi um diferencial no Brasil: o Benjamin de Oliveira (1870-1954) levou o teatro para dentro do circo. Ele nasceu em Pará de Minas e era pequeno quando fugiu com o circo. Era um grande ator, pegava clássicos do teatro e encenava. Como não aceitavam atores pretos, ele pintava a cara de branco. O circo-teatro era assim: começava com pequenos números de acrobacia, saltos, malabares, trapézio, mais ou menos uma hora de duração, e depois mais uma hora com um drama ou uma comédia. Toda noite era uma história diferente para que o público pudesse ir várias vezes. Eles tinham repertório para ficar na cidade dois meses, cada dia com uma peça diferente.
RH – Criadas por eles?
SM – Ou adaptadas. Quando apareceu o cinema, eles adaptavam os filmes de sucesso. Mas tinham também escritores e encenadores. Minas teve um grande encenador, o J. Silva. Ele era bravo, exigente, as pessoas tinham que ensaiar inúmeras vezes e o contra-regra tinha que repassar tudo o que ia fazer pelo menos umas dez vezes. Se um circo quisesse ter bilheteria, contratava o J. Silva. Era só a cidade saber que o J. Silva estava naquele circo, que as pessoas vinham em massa. Outro grande encenador foi o Mário Lúcio Augusto, que ainda está vivo e nos ajuda a recuperar esses dramas e essas comédias.
RH – Eles não estão registrados?
SM – Poucos estão. Conseguimos recuperar 51 textos. Alguns nunca foram publicados. “A Louca do Jardim” foi publicada pela prefeitura do Recife, junto com cinco dramas. É um clássico.
RH – É um clássico?
SM – É, era encenado em todo o Brasil. “Lágrimas de Pai” também. Foi escrito por Álvaro Marinho, o Palhaço Alegria. Os dramas do circo têm muita lição de moral. Passam a questão do amor ao pai, do respeito à mãe, da gratidão, valores familiares. Tem um clássico que se chama “Maconha, a Erva Maldita”. O circo-teatro se desenvolveu no Brasil porque as famílias estavam gabaritadas para trabalhar com texto. Afinal, aqui os palhaços falam.
RH – Como assim?
SM – Existem dois tipos de palhaço: o refinado, de origem européia, e o brasileiro, que lá atrás, de alguma forma, também teve influência de fora, mas se misturou com o índio, com o africano. Ao contrário do europeu e do americano, que são mímicos, o palhaço brasileiro brinca, fala, conversa, é muito safado, muito malicioso. Coisa de circo pequeno.
RH – Em circo grande é diferente?
SM – É, porque os circos europeus e americanos são enormes, chiquésimos, têm mil pessoas, 2 mil pessoas. Como o palhaço vai falar? E no Brasil o circo grande tem uma cultura safadinha, de que o palhaço só serve para a hora da troca dos números. Vou botar a rede do trapézio, preciso de alguém para distrair o público, aí entra um palhaço fazendo bobagens. O triste é que muitos deles já foram grandes palhaços. Encenavam comédias toda noite. O palhaço era a estrela do circo-teatro.
RH – Como é o trabalho do dicionário?
SM – Comecei pensando em registrar o vocabulário específico, que eu escutava quando pequena e vi sumir. Depois, como as famílias também estão sumindo, resolvi registrar a história das famílias. Os números artísticos também estão sumindo. Vamos registrar os números artísticos. Tem um escritor que batizou o dicionário de Encircopédia. Para registrar tanta coisa vai precisar que se façam muitos dicionários e muitas enciclopédias.
RH – Quais foram os grandes circos brasileiros?
SM – Garcia, Stancovich, Stevanovich, Orlando Orfei. Quando o Orfei chegou ele nem tinha lona. Veio com os números artísticos, foi se equipando como circo e andou demais. O Garcia não era nascido em circo, mas criou gerações depois dele. Tem o Circo Portugal, que depois se dividiu em Portugal, Estoril e Transcontinental, quando a família cresceu demais. Os irmãos Portugal são iguaiszinhos, como se fossem nove gêmeos. Os Simões também, todos parecidinhos.
RH – As famílias de circo são sempre grandes?
SM – Sempre, porque as pessoas vão ficando: avós, tios, primos. Os circenses se casam muito cedo e entre eles, entre primos. Acham que primo não é parente. Se um rapaz se casa com uma moça de fora, bacana: agregou uma pessoa, mais um trabalho, mais um artista, mais uma ajuda. Mas se a moça se apaixona por um rapaz de fora e quer sair do circo, aí o circo não permite. Eles iam perder. Não só perder um parente, mas perder o artista. Se eu faço número de pirâmide, não posso sair [risos].
RH – O circo de Beto Carreiro pode ser chamado de tradicional?
SM – Sim, porque Beto Carreiro fez uma contribuição importante. Ele salvou os circos. Comprou o circo de famílias tradicionais que talvez tivessem deixado de existir se ele não tivesse feito isso. Passaram a ser empregados dele, mas quem continuou administrando eram os circenses. Ele só botou dinheiro e o nome dele.
RH – O trabalho do Marcos Frota também é importante?
SM – Ele também pegou famílias tradicionais muito boas. A família Santiago, do seu Vitor Santiago, abriu a primeira escola de circo no Brasil nas arquibancadas do Pacaembu, na década de 1980. Se chama O Piolim. Hoje eles estão todos com o Marcos Frota.
RH – O que acha dos projetos sociais de inclusão pelo circo?
SM – Olha, nem todo mundo quer ser artista. As pessoas vão porque não têm outra alternativa. O certo é o Brasil desenvolver mais escolas formais, porque a escola informal não é para botar profissionais no mercado. A arte na vida das pessoas é para a formação humana. Nem todo mundo que está na escola de balé é para ser bailarina. Quando meus pais se matavam para a gente fazer uma aulinha de balé ou de música era para a gente ter uma formação humana. Não precisa ser cobrado das escolas de circo que esses meninos têm que entrar no mercado como circenses. Até porque vão morrer de fome. Mesmo que cada escola brilhantemente forme algumas pessoas, onde elas vão trabalhar?
RH – Que números existiam antigamente e estão sumindo?
SM – A báscula, por exemplo. É uma prancha com um tonel embaixo, a pessoa pula de um lado, a outra salta e vai parar lá. Ainda tem, mas muito pouco. Tem percha, que é o homem forte que sustenta um cano de 6 metros, a 10 metros de altura, aí vai a mocinha lá em cima e faz números de contorção, salto de equilíbrio... Isso é muito raro. Os circos pequenos de Minas têm coisas fantásticas ainda. Até o nome dos números é engraçado. Por exemplo, escada copal.
RH – Como é isso?
SM – É sensacional. É uma escada onde uma moça vai passar fazendo contorção, mas equilibrando um copo com água. A platéia fica eletrizada.
RH – Foi inventado em Minas?
SM – Eles não sabem. É tradição oral: “Quem te ensinou? Meu pai e meu avô. Quem ensinou a eles? O bisavô e o trisavô”. Todos fazem: os que vieram do Norte, os de Minas. Como a origem dos brasileiros todos é de fora, os números são iguais. Os malabaristas, a escada copal, a percha. Dizem que a Rússia tem um forte peso nos números de equilíbrio. Tem muita coisa da China. Os saltos acrobáticos e números de força têm suas raízes na Grécia. Dá para ir rastreando pela semelhança.
RH – O circo brasileiro veio com os ciganos?
SM – As famílias tradicionais são de cultura cigana. Eles trouxeram sua arte, seu artesanato, faziam coisas belíssimas. Eu sei muito dos ciganos porque minha mãe me ensinou. Eles são muito presentes na cultura grega. Aprendi histórias e músicas que falam dos ciganos como personagens que levam aventura ou romance à vida das pessoas. Aqui no Brasil a visão é diferente: as pessoas têm medo, “vai roubar a criancinha”, é perigoso.
RH – Os circenses sofrem isso na pele?
SM – Ah, claro. Um dia o Circo Garcia chegou a Foz do Iguaçu, há uns 25 anos, e desapareceu uma criança na cidade. Logo se disse que foi o circo que roubou a criança. “Alguém viu ele pelas bandas do circo.” O pai do menino foi lá, levou a polícia, cercaram o circo, queriam atirar, queriam bater. O circo teve que pedir proteção para sair da cidade, saiu fugido. Passou-se pouco tempo, o pai do menino se retratou dizendo que a mulher dele tinha fugido com o menino: iam se separar e ela pegou a criança. Outro caso terrível foi com o Circo Stancovich. Estavam no interior de Goiás e sumiu o cachorrinho de alguém. O dono ouviu dizer que o circo dava cachorros para os leões comerem, foi lá e deu um tiro no dono do circo, matou. Veja o que é o preconceito para levar um cidadão a matar uma pessoa porque não encontrou o cachorro.
RH – Existe uma estimativa de quantas pessoas já foram envolvidas com o circo e quantas restaram?
SM – O IBGE nunca fez esse mapeamento. As estimativas vêm de conversas entre os circenses. Chegaram à conclusão de que havia uns 2 mil circos há poucos anos, desses tradicionais de famílias e mambembes. Agora podem existir, com otimismo, uns 500 circos. Esses 500 devem envolver umas 50 mil pessoas.
RH – E não devem ter quase nenhum direito...
SM – Nenhum. Não podem abrir conta em banco porque não têm endereço, não podem ter previdência social porque nem conseguem pagar o INSS. Não têm carteira de trabalho porque não conseguem se registrar para uma profissão. São amadores a vida inteira. Aí chega aos 80 anos, quer aposentar e não tem nem um papelzinho, nada.
RH – Há um projeto para fazer um museu do circo?
SM – A gente não quer usar o nome museu para não parecer que o circo acabou. Será algo como centro de referência do circo. As escolas vão fazer visitas guiadas conhecendo a história do circo no Brasil, as histórias das famílias, os números, o vocabulário, aparelhos que ninguém usa mais, que estão jogados por aí em fundo de quintal, figurinos, algumas poucas relíquias que eles guardaram. E será uma cidade do circo, com camping 24 horas. Se o circense não tem onde deixar sua família, deixa lá, entre um alvará e outro. Vai ter serralheria, oficina mecânica. Vai ser maravilhoso ter um funcionário ali atendendo as pessoas, ter um lugar em que elas possam comer, e ter uma assistência. O centro de referência poderia ser auto-sustentável com a visitação das escolas.
RH – O que acha do circo como megaespetáculo, do tipo Cirque du Soleil?
SM – O circo de grande negócio sempre existiu lá fora. Sempre existiram superestruturas. Pessoas como Orfei tinham visto lá fora e tentaram trazer para o Brasil. A única diferença é que eles nunca tiveram incentivo para isso. O Beto Carreiro queria fazer grandes circos. O Garcia quis muito que o dele fosse um grande circo. O Vostok foi um grande circo. Como é a lei de Darwin? Os fortes sobrevivem. E os circos fortes eram os que tinham bichos. Agora estão proibindo os bichos. O que o circense sentia de vergonha porque o chamavam de cigano e ladrão, está sentindo agora porque tem bicho. Não mudou nada. Eu acho que sou como aquelas pessoas que escondiam judeus na época do nazismo. Estou virando isso. Precisa ter uma pessoa do sindicato entre a cidade, a polícia, o Ibama e o circo, para dizer que ali não tem bandido e que eles não machucam os animais? O que é isso? Que tempo é esse?