Tem boi na linha

Nelson Aprobato Filho

  • “Após 111 anos, cai veto a carro de boi em São Paulo”. Sob este título intrigante, o jornal Folhade S. Paulo, em 18 de novembro de 2005, publicou um artigo sobre a revogação de 3.680 leis antigas, criadas entre 1892 e 1947. O mais surpreendente é que grande parte delas se referia à presença de animais na cidade.  A lei sobre os carros de boi é apenas uma entre dezenas. Se hoje pode provocar risadas, quando entrou em vigor, em 31 de outubro de 1894, pretendia resolver problemas de suma importância para a população e para os governantes.

    Os animais faziam parte do cotidiano da capital paulista no final do século XIX. Dos carros de boi às tropas de mulas; das carroças às montarias; das boiadas aos inúmeros rebanhos de cabras, ovelhas e porcos; dos bandos de pássaros às galinhas, cães, gatos, ratos, sapos, formigas, cobras, urubus... As mais variadas espécies podiam ser vistas em todos os espaços públicos e privados da cidade. Nas feiras semanais para venda de madeira, realizadas na região central de São Paulo, cerca de 300 carros de bois circulavam pelas ruas. Mas, a partir de 1870, principalmente por conta da urbanização, esse quadro começou a mudar.

    O poder público, antes mesmo da lei de 1894, tentara regular o trânsito sempre crescente de carros de boi. As medidas legais eram tomadas, em grande parte, por causa das reclamações que começavam a surgir. Havia quem não suportasse os estridentes chiados produzidos pelos veículos puxados pelos animais. Outros não toleravam o acúmulo de estrume. Em um único dia, podiam-se recolher mais de 36 carroções do produto. Sem contar que os pesados carros aos poucos iam destruindo o frágil calçamento da cidade.

    Diantedesses incômodos, a decisão tomada na lei de 1894 era clara: esses veículos estavam terminantemente proibidos de transitar em um grande perímetro formado pelas ruas Florêncio de Abreu, 25 de Março, Libero Badaró, XV de Novembro, José Bonifácio, Colombo, Tabatinguera, Carmo e Boa Vista; e pelos largos de São Bento, de São Francisco, do Palácio e Municipal. A medida provocou um caos no sistema de transportes. Seis meses depois, uma nova lei diminuiria drasticamente o perímetro, limitando-o ao triângulo central formado pelas ruas Direita, São Bento e XV de Novembro. Embora indesejáveis, os carros de boi ainda teriam de ser tolerados e continuavam sendo de vital importância para o processo de modernização urbana. Não existia, na época, nenhum outro veículo tão resistente para transportar o material pesado, como madeira e pedra, utilizado na construção da São Paulo moderna.

    A partir do início do século XX, aos poucos o carro de boi foi substituído pelos primeiros bondes elétricos, automóveis e caminhões. Mas, por um longo período, o veículo continuaria vivo na memória da população, de políticos e escritores. Para muitos representantes do pensamento considerado moderno, ele simbolizava uma vergonha, a marca de um passado rural, arcaico e colonial. Em um trecho do livro Mundoda lua e miscelânea, redigido na década de 1920, o escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948) se manifesta sobre a questão: “A conversa na botica versava ontem sobre os Estados Unidos, suas grandezas, seus milhões, seus arranha-céus, seu Teodoro Roosevelt (...). E degenerava num hino de sofreguidão ao progresso yankee quando a chiada rechinante de um carro de bois que passava o interrompeu. E todos, apontando o carro, tiveram a mesma frase: Nós! (...) É isso mesmo. O Brasil é um carro de boi.” Muitos paulistanos do século XIX e do início do XX eram bastante cuidadosos quanto à própria imagem e à de sua cidade. Associá-los a hábitos rurais, mesmo antes da acelerada urbanização, poderia ser visto como uma ofensa.

    A formiga, assim como os bois, é outro exemplo de presença incômoda na São Paulo em transformação. Os poderes públicos travaram uma verdadeira guerra na tentativa de exterminar esses insetos. A luta começou ainda no período colonial, em 1788, quando o capitão-general D. Bernardo José Maria de Lorena e Silveira (1756-1818) fez valer uma lei que enfrentava o sério flagelo provocado pelas formigas. Em sua opinião, “o inseto era tão voraz que comia mais pastos do que toda a pecuária”. Os habitantes da cidade foram obrigados a acabar com todos os formigueiros que aparecessem em suas propriedades. Se não o fizessem, seriam multados. Talvez tenha sido essa uma das primeiras tentativas, em São Paulo, de controle de pragas. O principal objetivo era econômico e de sobrevivência, uma vez que os insetos simplesmente ameaçavam destruir as plantações que alimentavam os moradores da cidade.

    A situação virou caso de polícia. Além de uma série de leis, muito dinheiro público foi gasto, por anos a fio, na tentativa de controlar a proliferação da praga. A Intendência de Polícia e Justiça seria escolhida, em 1892, para cuidar da extinção de formigas, cães e, como dizia a lei, outros “animais daninhos”. Tanto a presença física das formigas como as metáforas a elas associadas – representação viva do passado rural da cidade – começaram a destoar do ideal de modernidade que representantes da elite política e econômica paulistana queriam imprimir à capital.

    Masas tradições e os paladares muitas vezes eram mais fortes do que os ideais progressistas. Nem Monteiro Lobato resistiria, como fica claro em uma carta escrita no ano de 1903: “Não és capaz, nunca, de adivinhar o que estou comendo. Estou comendo… Tenho vergonha de dizer. Estou comendo um companheiro daquilo que alimentava São João no deserto: içá – a rainha das saúvas – torrado! (...) Está diante de mim uma latinha de içá torrado que me mandam de Taubaté. Nós, taubateanos, somos comedores de içás. Como é bom, Rangel! Prova mais a existência do Bom Deus (...). Só um ser Onipotente e Onisciente poderia criar semelhante petisco.”

    Ao mesmo tempo em que se tentava controlar a proliferação de animais, começou a aparecer quem pensasse que deveria haver um órgão que os protegesse. Denúncias contra maus-tratos às mais diversas espécies ocupavam as páginas dos jornais com bastante frequência. Políticos, escritores e intelectuais discutiam, fazia algum tempo, a criação de uma entidade que defendesse aquelas criaturas. Alguns legisladores municipais também se manifestavam. Em 1875, quem fosse flagrado matando corvos seria multado. Em outra lei, de 1880, proibia-se o uso de dinamite em pescarias.

    Atéque, em uma de suas andanças pela cidade, em 1893, o suíço Henri Ruegger ficou petrificado com o que viu: numa praça, um homem, com total frieza, quebrava tijolos na cabeça de um indefeso cavalo. Furioso, o viajante não teve dúvida: saiu à procura da Sociedade Protetora dos Animais, que, para sua surpresa, ainda não existia no Brasil. Somente dois anos depois, em 30 de maio de 1895, foi fundada, na capital, a União Internacional Protetora dos Animais (Uipa).

    A primeira lei específica que proibiu os abusos e os maus-tratos contra os animais foi promulgada em 9 de outubro de 1895. Pelo teor e detalhamento das proibições, pode-se facilmente imaginar o grau de sofrimento que era infligido às mais variadas espécies. A nova lei proibia, por exemplo, o emprego em serviços “de animais mancos, doentes, feridos ou em estado de extrema fraqueza”. A partir daquele momento, também ficava proibido cortar orelhas e caudas, assim como “abandonar sem alimento” animais extenuados, aleijados ou mutilados. Mas havia de se criar algum mecanismo que determinasse que bichos poderiam circular pela nova cidade civilizada, moderna e progressista. [Ver RHBN nº 60] Alguns seriam, certamente, descartados ou perseguidos, mas outros passariam por um longo processo de readaptação para serem usados em exposições, concursos, pesquisas, indústrias,pet fashion weeks... Embora muitas dessas manifestações tivessem começado a surgir em meados do século XIX, foi no XX que elas receberam um grande impulso, e somente no século atual algumas delas atingiram seu apogeu. O Parque da Água Branca, por exemplo, foi criado em 2 de junho de 1929, e um de seus principais objetivos era realizar exposição de animais de raça.

    As leis e instituições de proteção aos animais só foram criadas porque as crueldades eram, e infelizmente ainda são, práticas comuns nas ruas, fábricas, empresas de transporte, criadouros e matadouros. Um dos maiores desafios para aquela modernidade paulistana tem sido, há mais de 100 anos, a busca de mecanismos que ensinem as pessoas a respeitar e a proteger os animais de maneira mais eficaz e condizente com os padrões de uma sociedade avançada.

     

    Nelson Aprobato Filhoé autor da tese “O couro e o aço. Sob a mira do moderno: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, finaldo século XIX/início do XX” (USP, 2007).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    DUARTE, Regina Horta. “Pássaros e cientistas no Brasil: Em busca de proteção, 1894-1938”.Latin American Research Review, v. 41, nº 1, fevereiro de 2006.

    JÚNIOR, Alfredo Ellis. “O Ciclo do Muar”, em Revistade História, São Paulo, ano I, nº 1, p. 73-82, janeiro-março, 1950.

    THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.