- No meio do caminho tinha uma tempestade. E o barco de Sir Thomas Gates, que havia saído de Londres rumo à colônia britânica da América do Norte, na Virgínia, acabou indo parar nas ilhas Bermudas. Demorou um ano para que a embarcação tivesse condições de encarar novamente o mar. Até que, em maio de 1610, com o navio já reformado, ele partiu de novo e conseguiu chegar ao destino. Ninguém mais acreditava que a tripulação tivesse sobrevivido. A notícia cruzou o oceano e se espalhou por Londres através de três histórias distintas, que ficaram conhecidas como Bermuda Pamphletes (Panfletos das Bermudas).
O primeiro folheto, de uma testemunha ocular chamada Silvester Jourdain, foi rapidamente seguido pelo relatório oficial do Conselho de Virgínia. O terceiro deles era uma carta escrita por William Strachey, secretário de Sir Thomas Gates, a um destinatário desconhecido. Embora não tenho sido impresso antes de 1625, o documento circulou de forma privada e chegou às mãos de William Shakespeare (1564-1616), que tinha conexão com pelo menos uma pessoa da Companhia da Virgínia: seu patrono, o Conde de Southampton. Um ano mais tarde, em 1611, quando o dramaturgo termina sua última peça, A Tempestade, fica claro que a obra faz referência às aventuras de Gates nas Bermudas.
Assim como descrevem os panfletos, A Tempestade de Shakespeare começa com uma terrível tormenta no mar, em que todos os passageiros e a tripulação parecem condenados à morte. Já na segunda cena, no entanto, revela-se que o temporal é, na verdade, um feitiço criado pelo mago Próspero para naufragar seus inimigos e demonstrar o seu poder. Anos antes da turbulência que causara em alto-mar, Próspero fora deposto do ducado de Milão por seu irmão Antônio e por Alonso, rei traiçoeiro de Nápoles. Ele havia sido deixado à deriva no oceano, em um barco capenga e acompanhado da filha Miranda, que acabara de chegar ao mundo. Com a ajuda do bondoso Gonzalo, Próspero consegue chegar ileso a uma ilha quase deserta.Já em terra firme, o personagem governa os únicos dois outros habitantes da ilha: o cooperativo Ariel, “um espírito etéreo”, e o relutante Caliban, “um escravo deformado e selvagem”. A história gira em torno dos projetos de Próspero na ilha, que são basicamente dois: fazer com que seus inimigos se arrependam e ele consiga recuperar seu ducado, e unir o jovem príncipe de Nápoles, Ferdinand, à sua filha Miranda. Na cena final, Próspero declara sua intenção de renunciar à magia e retornar a Milão, embora o silêncio de Antônio sugira que ele não se reconciliou com o irmão.Se os panfletos das Bermudas foram uma fonte primária para o enredo de A Tempestade, conectando-a historicamente com a América do Norte, a peça também traz fortes referências à América do Sul. Após o descobrimento do Brasil pelos portugueses, em 1500, os franceses, sob o comando naval de Villegagnon, invadiram a Baía de Guanabara em 1555. A ocupação durou apenas doze anos, mas durante esse curto período o franciscano André Thevet e o protestante Jean de Léry, que acompanharam Villegagnon, escreveram suas impressões sobre os índios tupinambás. Ainda que criticassem muitas práticas que consideravam selvagens e pagãs, eles também encontraram motivos para admirar os nativos. Em comparação com a corrupção e a crueldade da Europa cristã, os indígenas pareciam levar uma apreciável, quase idílica existência.No ensaio Dos Canibais, de 1580, o escritor francês Michel de Montaigne deu continuidade à discussão, popular na época, sobre o quanto a natureza necessitava de uma “mãozinha” da civilização. Os argumentos e a linguagem similares denunciam que o francês já havia lido as memórias brasileiras de Thevet e de Léry. O autor, porém, insiste que suas fontes eram únicas: afirmou ter conversado com dois tupinambás que foram para Rouen com Villegagnon e com um marinheiro que esteve na expedição e já tinha convivido com nativos.
Verdade ou não, em 1603 o ensaio foi traduzido para o inglês e parece ter interessado profundamente a Shakespeare: um dos discursos de Gonzalo em A Tempestade tem paralelos estreitos com Dos canibais. Ambos questionam se a humanidade é intrinsecamente boa ou se ela precisa de uma educação moral para desenvolver suas virtudes.No século XVIII, estudiosos chamavam a atenção para a importância dos panfletos das Bermudas, cujo interesse cresceu fortemente nas peças históricas conectadas com a América do Norte. Apontada como a peça colonial de Shakespeare, A Tempestade é seu único drama que explora essas complexas relações e lutas pelo poder entre o velho continente europeu e o novo mundo. Por isso mesmo, a obra teve um forte apelo entre os leitores americanos, que procuravam nela uma metáfora para sua própria história. E ainda no século XX a obra reverberava.Prova disso é a peça homônima que o diretor de teatro brasileiro, Augusto Boal (1931-2009), escreveu em 1979. O texto toma o original de Shakespeare como ponto de partida apenas para contestá-lo em todos os seus aspectos. Na versão de Boal, Próspero não é melhor que o seu perverso irmão Antônio, seu amigo íntimo Alonso e o restante de sua corte. Todos representam a violenta dominação colonial e cultural, seja vinda da Europa ou dos Estados Unidos. A filha de Próspero, Miranda, e o príncipe de Nápoles, Ferdinand, fazem uma aliança não por amor, como na peça de Shakespeare, mas sim por interesses capitalistas. Ariel aparece como um mero cúmplice egoísta dos crimes colonialistas. Somente o rebelde Caliban, representante de todos os povos colonizados da América do Sul, resiste... até ser, finalmente, derrotado. Os vilões permanecem na ilha do continente sul-americano para escravizá-lo.Enquanto Boal colocava no papel sua A Tempestade, a censura do governo militar brasileiro seguia cortando as asas dos artistas. O teatrólogo acabou exilado à força. Ironicamente, o trabalho subversivo do diretor foi publicado pela primeira vez justamente em Portugal, poder colonial do qual o Brasil proclamou independência em 1822.Muito antes da empreitada de Augusto Boal, a permanência das conexões entre a peça de Shakespeare e o novo mundo já eram exploradas com frequência por estudiosos. No final do século XIX, o influente crítico inglês Sidney Lee referia-se ao personagem Caliban como um verdadeiro índio americano. Na América Central e do Sul, a reação a A Tempestade tomou um rumo mais simbólico. Um texto-chave com enorme repercussão na América Hispânica foi o ensaio chamado Ariel (1900), do uruguaio José Enrique Rodó. Nele, embora o indígena Caliban seja ganancioso e bruto, seu comportamento é atribuído aos usurpadores de sua ilha – e Rodó não se refere apenas aos europeus: o autor sugere que os Estados Unidos também poderiam levar os nativos do Uruguai à ruína. A figura de Ariel, que expressa o que há de melhor no velho e no novo mundo, é a esperança do autor para a América do Sul. Próspero ainda é o sábio filósofo que vem de uma tradição clássica europeia e cujos objetivos são virtuosos.
Com a publicação de Psychologie de la colonisation (Psicologia da colonização), em 1950, Octave Mannoni faz surgir novos papéis para os protagonistas, que contrariam as interpretações tradicionais desses personagens. Nesse estudo sobre a psicologia dos colonizadores e dos povos colonizados, Próspero é apresentado como o invasor que, por pura inadequação pessoal, trata com dureza as pessoas mais fracas que ele. Já Caliban torna-se o símbolo de uma população indígena descontente. Sua rebeldia, portanto, é uma luta justa e saudável para a independência nacional. A escolha do título do escritor cubano Fernández Retamar – Caliban (1971) – para seu ensaio de apoio a Fidel Castro parece ter sido selecionada para refutar a obra Ariel, de Rodó: os povos da América do Sul, ele declara, são realmente como Caliban. Esta é a interpretação da peça que tem perdurado na América do Sul nos últimos 60 anos e inspirado subversões radicais do texto para refletir preocupações políticas e sociais contemporâneas em todo o continente – como é o caso da obra de Augusto Boal.De todas as peças de Shakespeare, A Tempestade é provavelmente aquela que deu origem às releituras mais radicais. Mesmo depois de séculos, continua dando pano para manga.Elizabeth Oakley é professora aposentada de literatura inglesa e de teatro e Robert John Oakley é professor aposentado da Universidade de Birmingham (Reino Unido) e autor de Lima Barreto e o destino da literatura (Editora da Unesp, 2011).Saiba MaisVAUGHAN, Alden T. & VAUGHAN, Virginia Mason. Shakespeare’s Caliban. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.FilmesThe Tempest (Dir. John Gorrie. Reino Unido, 1979).The Tempest (Dir. Derek Jarman. Reino Unido 1979).
Tempestade no Novo Mundo
Elizabeth Oakley e Robert John Oakley (Tradução: Carolina Ferro)