Tempos panfletários

Lorenzo Aldé

  • Panfletos políticos que circularam no Brasil e em Portugal entre 1820 e 1823, e incluíam cartas, análises, sermões e poesias em tom inflamado a favor e contra a independência. (Imagem: Divulgação)
    Por que haveria Dom João de querer ficar no Brasil, “um gigante, em verdade, mas sem braços, nem pernas; não falando do seu clima ardente e pouco sadio”, “reduzido a umas poucas hordas de negrinhos, pescados nas costas da África”, “terra dos macacos, dos pretos e das serpentes”? O lugar do rei é em Portugal, “país de gente branca, dos povos civilizados e amantes de seu soberano”, completa um homem que assina “Compadre de Lisboa”.
     
    Indignado com tal “carta impolítica”, escrita por “um gárrulo mesquinho, um declamador insolente, um verme obscuro”, resolve respondê-la Joaquim Lopes de Lima, tenente da Armada Nacional. Escrevendo do Porto, sai em defesa dos brasileiros, “não como Órgão da Nação Luso-Europeia (absurdo condenável!); mas como testemunha ocular, e auricular da pura estima, do sincero afeto, que vos tributam vossos Irmãos d’além do Oceano”.
     
    A “produção infame, parto da inveja e do ódio”, não fica sem resposta também no Brasil. É o “filho do Compadre do Rio de Janeiro” quem lhe dá “justa retribuição”, enaltecendo as riquezas e o povo daqui, composto por brancos nobres, colonos suíços, índios, pardos, negros e crioulos. E contesta o absurdo de querer fazer “o Brasil voltar para o antigo estado de colônia”.
     
    Essa linguagem carregada nas tintas é típica dos panfletos, que se tornam poderoso instrumento de comunicação em períodos de crise, tensão social, revoluções ou reviravoltas políticas. Como o que viviam Brasil e Portugal entre 1820 e 1823. 
     
    “Panfletos são uma literatura de circunstância, com conteúdo de crítica política e social. São escritos para serem discutidos numa esfera mais ampla, para alimentar o debate público em períodos de transformação. A Revolução Francesa é imbatível, com mais de 4 mil panfletos publicados. Eles também circularam muito nas independências dos Estados Unidos e da América hispânica, e contra Napoleão”, explica Lucia Bastos, professora titular de História Moderna da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
     
    Ela é uma das organizadoras da coleção Guerra literária – panfletos políticos da independência, recém-lançada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O projeto foi concebido pelo historiador José Murilo de Carvalho e levou 15 anos para reunir uma compilação inédita de 385 panfletos do período. Lucia Bastos foi convidada a participar por ser a principal especialista brasileira no assunto, ao analisar cerca de 200 panfletos do governo em sua tese de doutorado “Corcundas e Constitucionais: A cultura política da Independência (1820-1822)”, defendida na USP em 1992. A missão, agora, era ir em busca de panfletos particulares. Além de José Murilo e Lucia Bastos, a equipe ganhou o reforço de Marcello Basile, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E só. Foram anos de dinheiro do próprio bolso (ou bolsas) viajando entre os estados brasileiros e Portugal na pista do material. Na reta final, foram “adotados” pela UFMG, que viabilizou a publicação e cedeu estagiários para ajudar nas notas finais.
     
    O resultado é um impressionante testemunho, em quatro volumes, da intensidade do debate político do pré e pós-independência. A partir da Revolução Liberal do Porto (1820), da volta de Dom João para Portugal e das pressões, por um lado, pelo retorno de D. Pedro I e, por outro, pela independência do Brasil, os panfletos refletem o clima de agitação e disputa em torno dos significados de conceitos como Constituição, eleição, representação, divisão de poderes, pacto social, soberania, povo, cidadão, direitos, liberdade, igualdade, pátria, nação, opinião pública, revolução, monarquia e despotismo, entre outros.
     
    Os formatos também eram diversos: havia cartas, sermões, discursos, diálogos, catecismos (perguntas e respostas), manifestos, protestos, apelos, elogios, dicionários e orações – pois até nas missas os padres entravam nos embates políticos. Em uma sociedade de poucos letrados, os panfletos investiam na oralidade, para serem lidos em voz alta, nas ruas ou nas “casas de pastos”, ou restaurantes, pontos de encontro de então. “Os panfletos cumpriam o papel de uma pedagogia cívica, para instruir os segmentos mais baixos da população, sem acesso a cidadania, mas que vão passar a ter. E eram mais ágeis que os jornais, permitindo respostas imediatas”, comenta a historiadora.
     
    A coleção Guerra Literária – Panfletos políticos da Independência foi lançada pela Universidade Federal de Minas Gerais após 15 anos de pesquisa e compilação inédita de 385 panfletos dos anos 1820. (Imagem: Divulgação)O acesso a essa quantidade inédita de fontes ainda há de ser absorvido pela historiografia, propiciando análises novas e desdobramentos. Mas Lucia Bastos, claro, já tem algumas impressões a compartilhar. “Me chama a atenção que até meados de 1822 os panfletos não falavam de independência. Discutiam muito com Portugal as medidas das Cortes de Lisboa contra o Brasil, mas sempre falando em ‘nossos irmãos portugueses’. Isto enfraquece a ideia de que a independência já estava sendo gestada desde o século XVIII, com a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana. Tem até um inconfidente entre os autores dos panfletos, mas ele também não menciona a independência”.
     
    República era palavra usada apenas no sentido da coisa pública. Era comum terminarem com “Viva o Rei, Viva a Dinastia de Bragança”. Um deles chega a afirmar que “não existe rei sem povo, mas pode existir povo sem rei”, mas não fala de proclamação da República. A Revolução Francesa inspira pelo ideal de liberdade, mas não pela parte das cabeças cortadas. 
     
    Entre as curiosidades, há panfletos de mulheres brasileiras que, em 1823, fazem uma representação para a imperatriz Leopoldina reclamando que seus maridos portugueses são discriminados e perseguidos. Alegam que, em casos inversos (maridos brasileiros com mulheres portuguesas), isso não acontece, e exigem o mesmo tratamento. Há também panfletos da região da Cisplatina (atual Uruguai, na época ainda parte do Brasil), escritos em espanhol, debatendo autonomia e independência. 
     
    A historiadora confessa que o trabalho é interminável. Recentemente descobriu panfletos manuscritos no Maranhão, que não deu tempo de incluir no livro. Sem falar naqueles da coleção do historiador Oliveira Lima, armazenados pela Universidade de Washington, católica e particular, uma “pedra no sapato” da pesquisa: pediram um preço absurdo para digitalizar, e o material ficou de fora.
     
    Como um estranho eco vindo do passado, Guerra literária – panfletos políticos da independência cumpre ainda uma função relevante para nossos dias: relembrar como os períodos de extremismo político produzem discursos exacerbados, mais preocupados em ganhar adeptos para o seu lado do que em buscar ponderação e equilíbrio. Guerra é guerra.